Depois das revelações do filme Inside Job, entendo que os economistas, seguindo a orientação de Max Weber, deveriam ab initio declarar seus valores, preferências e pertinências. O documentário narra o fracasso dos figurões da economia em antecipar a eclosão da crise financeira e suas causas. O filme é uma diatribe contra as pretensões científicas de profissionais e acadêmicos graúdos­ da ciência triste que, infelizmente, aluga­ram suas opiniões aos poderosos de Wall Street, deixando na mão o públi­co em geral. Por essas e outras, devo uma advertência ao leitor deste artigo, se é que haverá algum: as análises expostas abaixo podem ter sido contaminadas por um “desvio de simpatia” em relação ao governo do presidente Lula e sua política econômica dos últimos anos. Simpatias críticas, como verão.

Feita a advertência, vou iniciar a empreitada que Mino Carta me solicitou: avaliar os desafios que aguardam a equipe econômica da presidenta Dilma Rousseff.

Começo pelos antecedentes. Nos idos de 2002, um clima de terror invadiu as eleições presidenciais. Assustados com a crise argentina, os investidores forâneos e nativos desataram seus temores e lançaram o País num frenesi especulativo. Os mercados e seus porta-vozes projetaram cenários apavorantes para os quatro anos de governo Lula. O risco-Brasil foi a 2,4 mil pontos-base, descolou da pontuação dos outros emergentes. Percebi que juízos e preconceitos estavam apoiados na suposição de que o Brasil poderia repetir a façanhas dos hermanos argentinos que, no desvario do corralito, haviam anunciado a reestruturação da dívida pública contratada em moeda estrangeira e vendida no exterior, sobrecarregada com cupons que alcançavam a casa dos 18%.

Diante desse estado de espírito dos mercados e de seus porta-vozes, a equipe do presidente Lula concebeu a Carta aos Brasileiros. A transição, para surpresa de muitos e decepção de outros, foi feita com habilidade e prudência. Isso, sem dúvida, foi proporcionado por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável. A ascensão econômica da China e dos asiáticos­ em geral, com dotações de recursos naturais diferentes da nossa, mudou a configuração do comércio internacional. Nesse ambiente benfazejo, o governo Lula, sobretudo no segundo mandato, manteve a estabilidade e alentou o crescimento. As reservas cambiais saltaram para 289 bilhões de dólares, turbinadas pelo preço das commodities e pela entrada de capitais dispostos a apostar no futuro do emergente sul-americano. Mas há bens que vêm para o mal: a taxa de juros e a taxa de câmbio continuaram fora do lugar.

A política econômica do governo Lula atingiu seu ponto de máxima ao adotar tempestivamente um conjunto de medidas destinadas a combater a crise do subprime, restaurando a confiança de empresários e consumidores. Em parceria com o professor Júlio Gomes de Almeida escrevi nestas páginas um artigo que buscava descrever a ação contracíclica do governo e suas consequências.

Depois da quebra do Lehman Brothers em setembro de 2008, um choque adverso de expectativas afetou o Brasil: o financiamento externo simplesmente desapareceu, bloqueando o acesso dos exportadores brasileiros às linhas de ACC e, quase imediatamente, deflagrando a contração do crédito doméstico, sobretudo no segmento do middle market. O mercado de carros usados e o crédito à pequena e média empresa ficaram

Dizíamos, então, que, diante da natureza do choque negativo, o governo utilizou com moderação a política fiscal e cuidou de recompor o fluxo de crédito. O ano de 2009 terminou com uma queda de 0,2% do PIB, com uma variação entre o último trimestre de 2008 e o derradeiro de 2009, de 4,3%.

O Brasil começou 2010 com forte aceleração do crescimento, acompanhada de elevação da inflação medida pelo IPCA­ e uma trajetória de déficits crescentes em transação correntes. O real manteve sua tendência à valorização. Esse fenômeno repercute a conjuntura internacional marcada pelas intervenções de liquidez e compra de ativos engasgados nas carteiras dos bancos privados por parte dos grandes bancos centrais do mundo. Tais manobras de “salvamento” suscitaram alterações na composição desejada da riqueza por investidores e instituições financeiras: os yields­ extraordinariamente baixos dos treasuries americanos são sintomas de expectativas negativas em relação à recupe­ração do investimento e do consumo, sentimentos explicitados na convergência entre demanda e oferta de crédito anêmicas do setor privado.

Essa crise não é apenas financeira, mas um episódio que revela a existência de sobreinvestimento concentrado nos emergentes que se empenharam em conjugar crescimento industrial acelerado e ganhos importantes nas exportações de manufaturados. Não há que subestimar os efeitos causados pelas mudanças da geoeconomia mundial: a expansão sino-asiática vai continuar ameaçando as estruturas industriais do Velho e do Novo Mundo. As políticas sino-asiáticas de promoção de exportações e integração industrial estão alicerçadas não só em ganhos expressivos nas relações produtividade/salário e sálario/câmbio na manufatura, mas também em políticas agressivas de desoneração fiscal. Esse processo é amparado por um sistema de crédito voltado para o investimento manufatureiro privado e para a sustentação dos programas públicos de gastos em infraestrutura.

Nessas circunstâncias, a valorização cambial do real brasileiro é um erro fatal, assim como a hesitação em promover políticas adequadas de expansão das exportações. A macroeconomia convencional e a versão bastarda do keynesianismo foram incapazes de avançar no desvendamento das mudanças ocorridas nas relações entre a gestão da dívida pública, a “estabilidade monetário-financeira” e a livre movimentação de capitais. Os movimentos de capitais, diga-se, exaltaram o caráter financeiro da taxa de câmbio que, hoje, sobredetermina sua outra dimensão, a de preço relativo.

A coordenação entre as políticas fiscal e monetária deve estar voltada para a “administração” do poder dos mercados financeiros. Isso significa propor um crescimento dos gastos correntes inferior à taxa de expansão do PIB, garantindo os recursos para o investimento público. A turma do Inside Job clama por um superávit primário maior, ao mesmo tempo que decreta que ele dificilmente será obtido. Assim, os economistas do mercado podem apostar (e ganhar) com mais segurança numa elevação da taxa de juros.

No caso do Brasil, mesmo depois da estabilização, não foi possível liberar a riqueza líquida (as “poupanças” das famílias e das empresas) do circuito das operações compromissadas, ou seja, do curtíssimo prazo. O problema maior é a realimentação da ciranda viciosa, nascida nos tempos de inflação elevada, que juntava remuneração elevada ex-ante e liquidez. A sobrevivência desse mecanismo, depois da estabilização, combina liquidez e remuneração real elevada ex-post, bloqueando a formação de um mercado de capitais e a expansão do crédito privado de longo prazo.

O debate em voga no Brasil, excessivamente concentrado em questões macroeconômicas de curto prazo, dá a impressão de que os tupiniquins, de um lado e de outro, não fizeram um esforço para compreender a natureza das transformações ocorridas nos últimos 30 anos. A nova equipe econômica não deve confinar suas ações ao enfrentamento das questões de curto prazo, mas estará diante de “emergências estruturais”, como é o caso das carências e distorções na infraestrutura em geral, particularmente na matriz energia-transporte que deveria privilegiar a combinação transporte sobre trilhos-hidreletricidade, portos, para não falar dos gastos destinados ao aprimoramento do sistema educacional. Já a formação de um sistema de financiamento de longo prazo vai demandar tempo, habilidade e paciência.

A gestão da política monetária constituiu-se no principal foco de tensões do governo Lula. A nova equipe econômica parece disposta a buscar uma combinação mais equilibrada entre juro, câmbio e resultado fiscal, um arranjo capaz de nos proteger contra as importações predatórias, invasão de capitais de curto prazo e de proporcionar o avanço das exportações e do investimento nos segmentos de maior intensidade tecnológica.

Uma economia urbano-industrial formada há anos não pode apoiar o crescimento e a estabilidade na exportação de commodities, cujos efeitos sobre o emprego e sobre a renda são limitados. O crescimento da indústria é almejado porque impõe a diversificação produtiva e torna mais densas as relações intrassetoriais e intersetoriais, proporcionando, ao mesmo tempo, ganhos no comércio exterior e na economia doméstica.

Sob o acicate da concorrência chinesa – a China tornou-se um centro manufatureiro global –, os preços dos manufaturados despencaram e tornaram ainda mais urgentes a desvalorização cuidadosamente administrada do real, a defesa tarifária e a promoção de políticas industriais destinadas a incentivar ganhos de produtividade. No debate sobre a desindustrialização, os conformistas do livre mercado ignoram o movimento de empresas brasileiras que decidem produzir na China ou simplesmente substituem o fornecedor local pelo estrangeiro. Mais alguns anos de valorização cambial e os danos causados à indústria manufatureira serão irreversíveis.

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Fonte: CartaCapital