Diversos aspectos ligados à cultura contribuem sobremaneira para a reprodução de uma sociedade dividida pela tecnologia, podendo se dizer que são ao mesmo tempo sua causa e consequência, pois se não podemos afirmar a existência de revoluções tecnológicas sem transformações culturais, também não podemos negar o papel da tecnologia na conformação cultural da sociedade.

É possível afirmarmos que as sociedades criam um imaginário através do qual se reproduzem, identificando o grupo social, distribuindo identidades e papéis, expressando os desejos e objetivos coletivos, de modo que todas elas se auto referenciam a partir de suas normas e valores fixados simbolicamente, como diz Pierre Ansart (Ideologias, conflitos e poder. Zahar, Rio, 1978).

Segundo o PNUD/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, cultura não pode ser considerada como um conjunto cristalizado de valores e práticas, por recriar-se permanentemente à medida que as “pessoas questionam, adaptam e redefinem os seus valores e práticas em função da mudança das realidades e da troca de ideias”.

De qualquer modo, é possível pensar-se em cultura como um conjunto de aspectos, processos, rituais, hábitos, crenças e valores que garantem o reconhecimento de uma identidade a um determinado grupo social. Infelizmente, entretanto, a cultura é quase sempre vista como propriedade dos grupos hegemônicos, que buscam a desqualificação dos setores dominados, classificando suas manifestações culturais como folclóricas, atribuindo-lhes assim, um cunho depreciativo.

Ainda segundo o PNUD é possível identificar-se duas formas de exclusão social: a do modo de vida, que nega o reconhecimento e aceitação de um estilo de vida de um grupo, ao insistir em que cada um viva como toda a sociedade e; a da participação, quando a discriminação das pessoas as coloca em desvantagem nas oportunidades sociais, políticas e econômicas em função de sua identidade cultural.

Assim, considerando a cultura como um dos elementos fundamentais, no processo de dominação e entendendo ainda que as ações do aparelho cultural, embora cumpram o papel de garantir a manutenção e reprodução da ideologia dominante e, consequentemente, da estrutura socioeconômica dominante, também podem levar ao questionamento desta estrutura de dominação, sendo evidente a necessidade de se atuar neste campo, em busca da superação das situações de dominação vigentes.

Tais observações nos levam a afirmar a necessidade de se garantir o acesso dos setores dominados ao seio da cultura da sociedade, como uma das formas de superação da situação de dominação existente, num processo que pode ser denominado de “alargamento cultural”, no qual é absolutamente necessário que os aspectos, processos, crenças, etc. destes grupos também sejam levados aos grupos hegemônicos – ou seja, o processo de alargamento cultural deve ocorrer em via de mão dupla.

O exemplo das universidades que vem utilizando o sistema de cotas de acesso para negros, que passaram a sofrer uma explicável e justa pressão para incorporarem em seus currículos conteúdos sobre a história da África e da participação dos negros no desenvolvimento da cultura do país é um forte indicativo da importância deste duplo sentido do processo de alargamento cultural.

Gramsci utiliza o conceito de hegemonia para explicar o controle do Estado burguês sobre ideias e instituições no exercício da dominação política, observando que o controle que as classes dominantes exercem sobre a classe dominada, no campo da cultura, reduz a necessidade de uso da força física, o que nos leva à afirmação de que os fatores ligados diretamente ao processo produtivo não são os únicos responsáveis pelo exercício do poder, daí a importância de se travar uma forte luta pela superação de uma situação de dominação, ao nível das ideias e das formações culturais.

É possível afirmarmos que este início de século vem se caracterizando pela ocorrência de grandes transformações de cunho econômico e social, que acenam com uma possibilidade concreta de superação do quadro de forte exclusão social, gerado por uma sociedade caracterizada por uma cultura em que as tecnologias de informação e comunicação cumprem um papel de divisoras sociais e não de integradoras.

Ao observar o mundo através de sua cultura o homem tende a considerar o seu modo de vida como o mais correto e natural. Esta tendência ao etnocentrismo pode ser responsável pela ocorrência de inúmeros conflitos sociais ao promover a discriminação dos que são diferentes, pertencem a outro grupo, etc., levando a que suas práticas culturais sejam tratadas de modo depreciativo.

Pensar em uma sociedade mais justa implica em trilhar um caminho que conduza à modernização, com base em um sistema produtivo que não se caracterize pela acumulação selvagem de capital, resultante de um processo violento de espoliação de valor do trabalho e, consequentemente, de desprezo pelo homem, mas sim, baseado em um sistema produtivo que não apenas respeite o homem como elemento fundamental desse sistema, mas principalmente, que o trate como o objetivo central do processo.

Para tal, é necessário construir uma sociedade cujo fundamento ético seja o respeito à dignidade humana, o que implica, obviamente, na adoção de políticas de distribuição de riquezas coerente com o desenvolvimento produtivo, as quais permitam à sociedade como um todo, e não apenas a uma reduzida parte desta, se beneficiar do esforço coletivo.

Falar em distribuição de riquezas evoca, inicialmente, a ideia de melhor remuneração do trabalho, distribuição de lucros e outros mecanismos econômico-financeiros. Entretanto, tais mecanismos podem ser considerados voláteis, à medida que podem se desvanecer com o tempo, enquanto que outras formas de distribuição, que se processem através da educação e da cultura tendem a ser permanentes em seus efeitos.

Daí a importância do desenvolvimento de um processo de “alargamento cultural”, no qual se destaca a necessidade de se criarem meios de acesso dos grupos oprimidos à cultura do grupo hegemônico e vice-versa, possibilitando aos primeiros, a partir do conhecimento desta cultura dominante e das interferências provocadas nesta, pela inserção de sua própria cultura, a realização de transformações sociais necessárias ao rompimento da dominação política, econômica, social e cultural.

Como, entretanto, em qualquer sociedade não é possível que um indivíduo ou grupo domine todos os aspectos de sua cultura, a participação dos diversos grupos componentes da sociedade, nas definições sobre política ou políticas culturais a serem implementadas no país, torna-se imprescindível, não apenas como garantia da real ocorrência de um alargamento cultural, mas como base de sua própria articulação com os demais membros da sociedade, o que implica na necessidade de democratização radical das ações do Ministério da Cultura, através da convocação dos diversos grupos para a discussão e decisão a respeito das políticas a serem implementadas.

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Aluizio Belisário é Professor Adjunto da UERJ. Doutor em Educação-PROPED/UERJ, Mestre e Bacharel em Administração Pública-EBAPE/FGV.

Fonte: CartaCapital