Em setembro do ano passado, eu escrevi um artigo sobre o mesmo tema. E já, à época, meio temeroso quanto à reação dos leitores, iniciava assim meio na defensiva:

“Eu bem que tento mudar de assunto a cada semana, mas a conduta dos responsáveis pela política econômica em nosso País me obriga a continuar aqui, na função de alerta. Aquela luzinha que pisca, quando há alguma situação que possa representar perigo potencial à frente. Pois então, vamos lá.” ("O Brasil e seu fundo soberano" – 25/09/2010)

Recomendo a leitura do texto mencionado para esclarecer a questão do Fundo Soberano, suas raízes, seu mecanismo de funcionamento, sua importância estratégica para o País no longo prazo, entre outros aspectos. Mas acho que não cabe reproduzi-lo aqui na íntegra.

Pois bem, mas o ponto é que novamente alguns dos que respondem pela condução da economia na equipe da Presidenta Dilma começam a sugerir que o governo poderia utilizar os recursos do Fundo Soberano para atuar na contramão dos movimentos de valorização de nossa moeda frente ao dólar norte-americano e demais moedas internacionais.

Já está mais do que tratado, inclusive pelos órgãos da grande imprensa, o mecanismo perverso do nó existente entre a política monetária ortodoxa e os prejuízos provocados pela valorização cambial. A imagem do cão correndo atrás do próprio rabo ilustra bem o dispêndio de tanta energia (e riqueza nacional) para acabar não saindo do mesmo lugar. A política de estabilização econômica baseada exclusivamente nas metas de inflação foi, e infelizmente continua sendo, responsável pela manutenção de uma taxa de juros oficial, a nossa SELIC, em níveis de elevada irresponsabilidade.

Além de se manter como campeão do mundo na modalidade, o modelo adotado no Brasil combina tal estratégia monetária ao postulado neoliberal ultrapassado da chamada “liberdade cambial”. E aí caímos numa verdadeira armadilha, o pior dos mundos.

A dinâmica é nossa velha conhecida. Atraídos pela maior remuneração financeira oferecida no mercado internacional por um Tesouro Nacional, os recursos migram para cá com a maior satisfação e sem nenhum controle.

Afinal, regulação de capitais especulativos é ainda vista por muita gente, por aqui, como proposta de mentes jurássicas, coisa de intervencionista atrasado que não tem mais o que fazer na vida… Em todo o caso, a enorme afluência de recursos externos para cá tem produzido, há vários anos, um fenômeno aparentemente inesperado no momento da formulação do modelo de estabilidade macroeocnômica. Verifica-se uma pressão permanente de venda de dólares em nosso mercado interno, pois esses recursos externos devem transformar-se em reais para aqui realizarem suas operações de elevadíssima rentabilidade. Com isso, a dinâmica oferta “versus” demanda faz com que o “preço” do dólar diminua, ou seja, sua cotação frente ao real caia. Com isso, a nossa moeda fica sobrevalorizada em relação às demais. O detalhe é que aquilo que nos é vendido como “taxa de câmbio resultante da relação das livres forças de mercado de divisas” não passa, na verdade, do resultado da ação de um número bastante seleto de grandes agentes operadores no mercado especulativo.

Ao que tudo indica a nova equipe econômica já está sendo convencida de que o Brasil não pode mais continuar refém desse modelo, em que só temos muito a perder e nada a ganhar. O custo de rolagem da dívida pública de quase US$ 2 trilhões é enorme, com a SELIC nas alturas. A Balança Comercial é seriamente afetada com a moeda sobrevalorizada, prejudicando nossas exportações e estimulando as importações de produtos industrializados. O Balanço de Pagamentos fica perigosamente deficitário, uma vez que são estimulados os movimentos de pagamento de juros e de remessa de lucros para o exterior. Isso sem mencionar a perda do bonde da oportunidade de ampliação de nossa capacidade instalada em função do real caro – essa é uma das razões para a grande diferença entre as taxas de crescimento da China e da Índia, por exemplo, e a nossa. O resultado é aumento do risco de desindustrialização e menor geração de emprego e renda.

O governo está avaliando algumas medidas com o objetivo de reduzir a valorização cambial. A primeira delas já foi anunciada: uma alteração nas regras de exposição cambial dos bancos. A intenção é evitar que o sistema fique muito “vendido”, como se diz no jargão do financês. Isso significa, em termos bem simplificadores, que os bancos estariam se arriscando demais no mercado cambial, em razão dessa tal aposta especulativa contra a necessária desvalorização do real. Com a medida anunciada pelo Banco Central, os bancos que se expuserem demais deverão recolher um depósito compulsório junto ao BC, com o objetivo de reduzir o risco do sistema. A idéia é boa, mas a Portaria n° 3520, de 6 de janeiro de 2011, é muito tímida. Ou seja, os efeitos são muito reduzidos e o ritmo para adaptação é muito lento. Os bancos têm até abril para se adaptarem e os valores envolvidos na redução do risco limitam-se a US$ 6 bilhões.

E até lá, e mesmo depois de abril, o que fazer com a taxa de câmbio que insiste em permanecer abaixo de 1,70 na cotação com o dólar há vários meses? O interessante é que poucos consultores financeiros gostam de recordar do período mais duro da crise recente (setembro de 2008 a junho de 2009), quando por quase um ano essa mesma cotação não ficou um só dia abaixo de 2,00 – com uma média próxima a R$2,30/US$. Não por acaso foi o período em que menos recursos externos vieram para cá, em função da enorme seca de liquidez nos países mais ricos – e olhem que nesse período a SELIC aqui bombava (chegando a 13,75% ao ano) e nem assim o dinheiro vinha.

Portanto, se o objetivo é mesmo conter a valorização cambial, o caminho mais simples e mais seguro é a redução do afluxo de capitais especulativos de curto prazo. E para tanto o governo tem a seu dispor um conjunto de opções de impostos para que a rentabilidade final não seja assim tão estratosférica, como a taxa SELIC. Já se tentou há pouco a elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), mas também de forma muito tímida e por pouco tempo. O fato é que com esse tributo ou mesmo com o Imposto de Renda a incidir sobre o ingresso de capital de curto prazo obtém-se um quadro mais realista a respeito da verdadeira intenção do investidor (pois o ganho líquido fica menor) e o Tesouro também termina por recolher uma receita extra. Outra hipótese é o estabelecimento de uma “quarentena” para o investimento financeiro externo, ou seja, um prazo mínimo que o recurso é obrigado a permanecer no Brasil, de forma a evitar corridas especulativas inesperadas e os problemas daí decorrentes em termos do Balanço de Pagamentos – a famosa “corrida ao dólar”

Mas alguns integrantes do governo voltam a insistir na hipótese de utilização dos recursos do Fundo Soberano para conter a valorização cambial. E agora eu recorro a um outro parágrafo do artigo acima mencionado:

“E agora, as últimas notícias falam uma espécie de “ameaça” feita pelas autoridades econômicas de usar os recursos do Fundo Soberano para enfrentar a valorização do real no mercado especulativo. Para quem conhece um pouco esse terreno minado, sabe tratar-se de uma brincadeira ou de uma irresponsabilidade. O volume total que o mercado de divisas gira diariamente em todo o mundo é de US$ 4 trilhões. Exatamente isso, a cada dia! Tão somente o mercado de compra e venda de moedas estrangeira. A parcela relativa ao dólar norte-americano, euro, libra esterlina e yen japonês é superior a 80% das transações realizadas. Nosso real fica com a modesta fatia de 0,3%. Lembra-me a imagem daquela formiguinha metida a valente querendo resistir à pisada da pata de um elefante… Definitivamente, não é assim que se vai conseguir enfrentar a especulação. Os recursos do Fundo Soberano correm o risco de virar pó!”

É verdade que o nosso nível de reservas internacionais é bastante elevado, tendo atingido atualmente um valor próximo a US$ 290 bilhões. Ou seja, quase um recorde a cada novo mês desde a marca dos US$ 38 bi de janeiro de 2003. São igualmente positivas as perspectivas futuras em relação ao crescimento do estoque do nosso Fundo Soberano, principalmente quando a ele forem dirigidos os valores da exploração do Pré Sal. Mas isso não significa que um governo minimamente responsável deva se dispor a brincar com esses valores, que podem facilmente ser reduzidos de forma significativa em qualquer movimento de especulação ou turbulência mais forte no mercado internacional, caso não o Fundo Soberano não seja tratado com muito cuidado e carinho.

A forma mais adequada de operar contra a tendência à valorização do real é por meio da redução do ingresso de recursos especulativos. E isso se faz via redução da SELIC e por meio da tributação do capital especulativo. Nesse quadro de incerteza e instabilidade das relações econômicas internacionais, que o próprio Ministro Mantega tem advertido como de “guerra cambial” e de “guerra comercial”, não há espaço para bravatas por parte do Brasil. Os recursos bilionários do Fundo Soberano devem ser tratados como uma reserva inter-geracional, um estoque de riqueza proporcionado pelas descobertas petrolíferas que podem constituir a fonte de recursos para que as crianças que estão nascendo hoje encontrem no futuro um País com melhores condições de saúde, de educação, de infra-estrutura, de ciência e tecnologia, etc. Enfim, uma Nação sem miséria e com condições de influenciar, aí sim, de forma mais efetiva nos destinos da Humanidade.

Dessa forma, cabe aos brasileiros e às brasileiras dar um grito de alerta a cada vez que se pretenda botar olho gordo nesse pote: Atenção! É proibido brincar com os recursos do Fundo Soberano do Brasil!

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Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Fonte: Carta Maior