Espiões industriais
A firma de inteligência econômica contratada pela Renault, em agosto passado, descobriu duas contas secretas usadas por dois dos executivos, uma em Liechtenstein, onde estavam depositados 130 mil euros, e outra na Suíça, com 500 mil euros. O dinheiro proveria da Power Grid Corporation, gigante da distribuição elétrica com sede em Pequim. Um terceiro executi-vo receberia 5 mil euros mensais. Michel Balthazard, chefe do conselho de direção e um dos acusados, se diz “chocado”.
Por sua vez, o ministro da Indústria, Eric Besson, declarou para a rádio RTL: “A França está enfrentando uma guerra econômica”. Apesar dos pronunciamentos populistas de Besson (ele é ex-titular do extinto e infame Ministério da Identidade Nacional), é compreensível sua preocupa-ção com a fuga de informações secretas da montadora. A indústria automobilística tem um peso significativo na economia francesa. Centenas de milhares de empregos dela dependem, e o Estado detém 15% da Renault. Trata-se, porém, de uma guerra econômica? A expressão pode parecer exagerada, mas nesse caso, diz o ministro, é “apropriada”. Nessa guerra, a França está prestes a aprovar uma nova legislação para proteger segredos industriais.
A espionagem industrial ganhou força nas últimas três décadas, explicou Christian Harbulot, especialista em inteligência econômica da École de Guerre Économique. Com a globalização, a concorrência internacional ganhou ímpeto em diversos setores: aeronáutica, defesa, indústria farmacêutica, transportes, e até no setor de brinquedos. Segundo Bernard Carayon, deputado da UMP responsável pelo projeto de lei para a proteção de informação econômica, as indústrias mais afetadas são aquelas com programas de maior duração. Por exemplo, são necessários dez anos para desenvolver um novo veículo e 25 para um novo avião de caça.
Mas o caso do mercado automobilístico não deixa de ser especial. Para o brasileiro naturalizado francês Carlos Ghosn, diretor-executivo da Renault e de sua parceira Nissan Motor Co., dentro de dez anos 10% dos automóveis serão elétricos. Ghosn já investiu 4 bilhões de euros no programa para carros elétricos. A Renault ainda não colocou sequer um no mercado, e nesse sentido encontra-se atrasada em relação a outras montadoras. Mesmo assim, a marca francesa do losango nutre a ambição de dominar o mercado- de elétricos. O Fluence ZE foi apresentado no Salão do Automóvel de Paris, em setembro. Trata-se de um dos quatro novos modelos a ser lançados neste ano.
O cerne desse tipo de veículo é a bateria, e o sistema eletrônico a ela associado. Crucial nesse tipo de automóvel é prevenir o superaquecimento. E buscar a maior capacidade energética para uma bateria com o menor peso possível. Todas as montadoras estão empenhadas em pesquisas tecnológicas para aumentar o atual limite de 150 quilômetros com um único carregamento da bateria.
Para Harbulot, essa busca por uma bateria ideal provoca enormes tensões na indústria. “Os construtores não sabem ainda qual é o melhor caminho a seguir, entre o híbrido, o todo elétrico etc.”, disse ao diário Libération. Rivais como a General Motors e a Toyota preferem produzir carros híbridos, com motores movidos a gasolina e eletricidade. Preocupada em reduzir as emissões de dióxido de carbono de seus automóveis, responsáveis por 70% da poluição nas maiores cidades, a China quer investir na tecnologia para carros verdes.
Segundo Patrick Pélata, diretor-geral de operações da Renault, a fuga de informações teria sido “séria”, mas não “crítica”. A química dos eletrodos, a arquitetura das baterias, o carregador, e detalhes sobre o próprio motor não teriam sido revelados para a Power Grid Corporation, em Pequim. Pélata ofereceu ao vespertino Le Monde: “Cremos que a informação vazada foi sobre a arquitetura do veículo,- custos e o modelo econômico de nosso programa para veículos elétricos”.
O ministro Besson e vários jornalistas econômicos apresentam a China como o grande vilão. No entanto, com base nos telegramas diplomáticos obtidos pelo WikiLeaks o diário norueguês Aftenposten- revelou na terça 4 o seguinte: a França, na dianteira da China e da Rússia, seria o país- mais ativo em termos de espionagem industrial. Na mesma nota vazada para o -Aftenposten, o patrão de uma empresa alemã de satélites teria dito: “A França é o império do mal no que concerne o roubo de tecnologias, e a Alemanha sabe disso”.
Mais objetivo que Besson, Olivier Darrason, do diário Le Figaro, pondera: onde a mão de obra é barata nos restam duas- armas, pesquisa e tecnologia. É preciso defendê-las. Há áreas, claro, onde espiões corporativos agem de forma legal. Empresas adquiriram mobilidade, houve uma internacionalização de equipes, terceirizações. Por tabela, a troca de “segredos” tornou-se mais corrente.
E como impedir um cientista europeu em busca de melhores salários (e parte da fuga de cérebros para países dispôs a investir maiores somas em pesquisa) a revelar “segredos” sobre a empresa onde trabalhava? Há ainda o caso das Pequenas e Médias Empresas (PMEs) de alta tecnologia a forjar parcerias em países emergentes: ocorrem então transferências de tecnologia para esses países. Por vezes, os patrões dessas PMEs recebem ofertas irrecusáveis e vendem suas empresas. O que fazer? “É preciso criar uma verdadeira vontade e também um verdadeiro interesse para se criar na França e aqui permanecer”, oferece Darrason.
Os “ataques” acima pertencem à categoria “branca”, ou “aberta”. São legais como recolher informações sobre uma empresa num jornal ou na internet. A informação cinza se inscreve num outro contexto: é desleal. Um caso típico seria o do espião corporativo que se faz passar por jornalista para adquirir informações. A categoria de informações negras é aquela em que se roubam dados de uma empresa de forma ilegal. Em lixos, por exemplo. Roubos de celulares ou de dados de um disco rígido são outros métodos. A pirataria na internet para se obter ilegalmente dados de uma empresa torna-se cada vez mais sofisticada.
A montadora Renault quis resolver o caso sem recorrer aos serviços oficiais de segurança. De fato, a Direction Central du Renseignement Intérieur (DCRI), o serviço de inteligência a susbstituir a Direction de la Surveillance du Territoire (DST), a extinta contraespionagem, inteirou-se do caso Renault por meio de jornais. Desde a criação da DCRI, a França não possui mais um esquema de contraespionagem propriamente dito (o serviço tem menor importância no seio da polícia nacional). O terrorismo ocupa o topo da agenda da DCRI. Talvez isso parcialmente explique o fato de a Renault ter recorrido antes a um serviço privado de inteligência.
Segundo Harbulot, da École de Guerre Économique, a lei de 1992 sobre a espionagem consta do Código Penal. Ela protege os interesses fundamentais da nação, incluindo a espionagem industrial. Contudo, os magistrados são pouco “sensíveis” a essa lei. De fato, o direito francês nem sequer define o que é uma informação. Uma nova legislação possibilitará a implantação de um posto de alto responsável de inteligência econômica. As penas impostas serão semelhantes àquelas contra violações de segredos de defesa. De acordo com a lei, disse Besson para a rádio RTL, seria considerada crime qualquer ofensa “para obter, manter, reproduzir ou transferir informações secretas de natureza econômica para terceiros não autorizados”.
Mesmo assim, um novo serviço de contraespionagem e uma nova legislação para combater os roubos de segredos corporativos terão de lidar com os avanços tecnológicos. Existe sempre um fator favorável para as autoridades: a negligência humana. Nos anos 60, a DST sabia que Sergei Pavlov, executivo da companhia de aviação Aeroflot, roubava segredos da Concorde. Mas a DST deixou-o exercer sua função de espião até 1965, quando finalmente o prendeu com dossiês da Concorde numa maleta. Pavlov foi expulso da França.
O caso de Marwan Arbache é mais recente. Ex-engenheiro da Michelin, número 1 mundial da pneumática, em meados de 2007 tentou vender dados confidenciais da empresa para a rival japonesa Bridgestone. Arbache, sob o nome de Pablo de Santiago, pediu 115 mil euros para seu contato na Bridgestone, o senhor Fukuda. Arbache não sabia o seguinte: a Bridgestone contatou a Michelin e o serviço de inteligência da Michelin inventou o senhor Fukuda. Julgado em 2010, Arbache, então com 36 anos, poderia pegar dez anos de prisão e 150 mil euros de multa. A sentença final: dois anos de prisão em liberdade condicional, e 5 mil euros de multa.
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Fonte: CartaCapital