De outro lado, a transição democrática negociada por uma amplíssima frente, que contou com a maciça adesão de setores políticos tradicionais antes alinhados aos militares, manteve intactos setores conservadores, na época garantidos pelos votos das regiões mais pobres do país.

A Constituinte foi uma queda-de-braço, sem trégua, entre setores fortalecidos pela mobilização popular e uma aliança conservadora unida no grupo autodenominado "Centrão". Os movimentos populares que pressionavam parlamentares conseguiram grandes avanços de direitos individuais, mas perderam feio em outras questões, principalmente as que poderiam alterar estruturalmente o status quo de setores sociais e políticos antes ligados ao governo autoritário, e também nas que mudassem significativamente o papel de tutela das Forças Armadas sobre a sociedade civil.

A nova Constituição primou pelo reconhecimento de direitos, mas esteve longe de balançar a estrutura política que se alimentou historicamente de relações com governos autoritários e com uma máquina política azeitada para eternizar a hegemonia desses grupos conservadores. A reconstrução institucional brasileira foi feita sobre destroços do velho regime. Em situações mais delicadas, o equilíbrio precário das medidas democratizantes sobre as sobras autoritárias produz abalos. Na normalidade, o sistema institucional tecido pela Constituinte tem uma grande dificuldade de assimilar mudanças que ocorrem na base da sociedade. A qualidade das instituições brasileiras se reduz na proporção direta da dificuldade que elas têm de se modernizar.

Foro privilegiado é um desserviço ao sistema democrático

De outro lado, um sistema de freios e contrapesos introduzido por obra dos setores mais progressistas representados na Constituinte, tem sido outra fonte de desequilíbrios. Sem mudanças significativas nas relações entre o Executivo e o Legislativo, ou alterações grandiosas nas instituições políticas, a Constituição se armou de garantias contra um sistema político atrasado, ao mesmo tempo em que deu garantias a esse poder político que foi altamente vulnerável no período autoritário. No final das contas, prevaleceu um Poder Executivo ainda com muito poder; um Legislativo que resgatou prerrogativas mas conseguiu uma proteção imensa do foro privilegiado; partidos com fraca densidade orgânica; um Judiciário que tem o poder de ser a última palavra em qualquer assunto, inclusive os relativos à política eleitoral e partidária, e que também foi investido de uma autorização para legislar incomum em regimes democráticos; e instituições autônomas, como o Ministério Público, que rivaliza em poder com o Executivo e disputa com o Judiciário decisões que seriam afetas a governos eleitos.

No final das contas, as instituições tradicionais da democracia mudaram muito pouco, e as criadas como pesos e contrapesos nem sempre ajudam na melhora da qualidade dos poderes da República. A ideia de proteger as prerrogativas de parlamentares e juízes contra um Poder Executivo que prevalecia sobre todos os outros no período autoritário acabou se convertendo numa proteção individual, não política. O foro privilegiado por prerrogativa de função tornou-se um desserviço à democracia, porque tornou o Legislativo atrativo a pessoas com problemas na Justiça, ou negociantes da política que no futuro podem ter que se ver com o Poder Judiciário.

Nessas circunstâncias, o poder econômico garante uma parcela do Congresso a políticos de ocasião, sem vínculos orgânicos com setores sociais ou preocupação com a coisa pública. Regras partidárias que valorizam a ação individual – o político como dono do voto, sem a mediação do partido – fortalecem esse tipo de bancada.

Isso explica, por exemplo, a existência de partidos fracos e políticos fortes, ou as intensas crises partidárias em contextos de grandes derrotas políticas. O sistema político brasileiro preferiu dar garantias individuais plenas aos políticos – não mais ameaçados pelas perseguições de uma ditadura – e, para suprir as deficiências de controle inerentes a esse sistema, investir contra ele outros aparelhos institucionais que competem com o voto desses políticos, mesmo ao preço de imobilizar as demais instituições.

Trocando em miúdos, acontece o seguinte: o sistema político brasileiro não tem poder de controle sobre os seus atores, porque eles têm garantias de impunidade constitucionais que não são da instituição a que pertencem, mas particulares; para compensar isso, a Constituinte deu um poder de polícia e de intervenção política imenso para o Ministério Público, que em vários momentos podem resultar em medidas que interferem na decisão de voto do eleitor. O desprestígio das instituições presididas pelo voto direto, por conta de sucessivos escândalos – ou mesmo do senso comum de que a política é desonesta por princípio -, acaba legitimando o poder de interferência do Judiciário, do Ministério Público ou mesmo da Polícia Federal sobre as decisões de governo ou legislativas.

Esse descompasso não vitimiza políticos, mas as instituições. Na verdade, os políticos mal intencionados trocaram o prestígio e a autonomia de suas instituições por garantias individuais de impunidade. Existe, de fato, uma criminalização da política por parte de setores sociais, e a política é a essência da democracia. Mas, convenha-se, os políticos não reagem a isso da forma como deveriam: limpando a área para que o Legislativo deixe de ser atrativo aos mal intencionados e aos fora-da-lei.

________

Fonte: Valor Econômico