A sociedade do herói solitário
De tempos em tempos, os americanos são abalados por uma tragédia devastadora, como a que aconteceu recentemente no Arizona. Jared Lee Laughner disparou contra um grupo de pessoas que se reuniam em torno da deputada federal Gabrielle Giffords.
Esses massacres coletivos fazem parte da vida social nos Estados Unidos. Homens crédulos, de boa-fé, talvez fossem surpreendidos pela ausência, na mídia de todos os cantos, de textos que tenham registrado a persistência de um padrão tipicamente americano de resolução de conflitos pessoais e políticos. Entre tantos episódios
da mesma natureza no jornalismo dito investigativo, poderia relembrar que, há poucos anos, no Arkansas, dois meninos, armados e paramentados como se fossem participar de uma operação de guerra, atiraram e mataram alunos e professores da escola onde estudavam. Se massacres como esse tivessem ocorrido apenas uma vez, já seria caso de a sociedade americana ficar com a pulga atrás da orelha.
As matanças no atacado repetem-se com tal frequência e regularidade que não haveria surpresa se um americano, em vez do minúsculo inseto, encontrasse um elefante passeando atrás de seus ouvidos. É fácil descobrir que certa “cultura da violência” é instilada nos lares pelos meios de comunicação. A dita cultura da violência, disseminada, de fato, pelos âncoras e comentaristas radicais da Fox News, não é produzida nos bastidores das emissoras de televisão ou nas redações dos jornais. Ela é gestada no interior da sociedade americana.
Há, nos EUA, um culto à violência e não é difícil perceber as razões. Suas origens estão na concepção peculiar do povo sobre algumas questões cruciais. A liberdade individual, por exemplo, está acima das conveniências sociais. Quantas vezes o cinema e a literatura americanos não celebraram a figura do cavaleiro solitário, aquele indivíduo dotado de uma coragem e um senso de justiça extraordinários, destinado a impor a ordem e a moralidade à sociedade corrupta e às instituições ineficazes. Nos filmes de faroeste, quase sem exceção, a moral da história era esta: o xerife é covarde, os juízes são corruptos e os bandidos, audazes. Se a coisa é assim, nada mais resta ao homem de bem senão executar, pelas próprias mãos, os ditames da moral e da justiça, inscritos na ordem natural, e, portanto, carregados na alma, desde o útero materno, pelos indivíduos.
Isso significa que o indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, pelo contrário, são corruptas e corruptoras. Não são outros os fundamentos da ideologia do Tea Party. Para esse aglomerado de gente desinformada, de baixo nível cultural e convencida da excepcionalidade americana, os compromissos típicos da democracia que afirmam defender são obstáculos para a realização da “verdadeira justiça”, aquela que está, desde a concepção, no coração dos homens. As instituições da sociedade, sobretudo o Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição insuficientemente rigorosos, vão transformando a Justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz.
Não por acaso, são tão bem esculpidas as figuras do xerife ou do policial que se desembaraça das limitações dessas instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza da cidade. A sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário pode salvá-la, consultando sua consciência, recuperando, portanto, a força da moral “natural”, aquela que Deus infunde no coração de cada homem.
O herói solitário, ao contrário do comum dos mortais, não permite que a pátina de compromissos e tolerância, acumulada pela vida social, encubra a lei moral inscrita na alma humana.
A crise econômica e as hesitações de Obama e dos democratas lançaram os desempregados, os semiempregados, os desesperados e desesperançosos de todo gênero nos braços dos apoiadores de Sarah Palin, cuja retorica é, sim, digna de Goebbels se, por acaso, ele tivesse sido vitimado por uma atrofia mental. Os grupos patrióticos estão armados não só de pistolas e metralhadoras, mas dos métodos e convicções do assim chamado fascismo participativo, a ideologia agressiva da extrema-direita americana hoje. Não foi Sarah Palin e sua retórica agressiva que deram origem ao Tea Party. Muito ao contrário, foram as condições sociais e econômicas dos últimos anos que engrossaram as hostes dessa caricatura do individualismo intolerante.
Ao vingador tudo é permitido. Até mesmo matar inocentes. Aliás, não há inocentes, porque os complacentes com o Estado corrupto são igualmente corruptos.
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Fonte: CartaCapital