Um dos grandes filósofos políticos do nosso tempo, Slavoj Žižek investiga nesta obra o cerne das chamadas “políticas totalitárias” do passado. A fim de examinar os dilemas do momento presente e propor alternativas, coloca-se como observador da história para, calcado nas bases teóricas críticas da psicanálise e do marxismo, resgatar o que ainda podemos aprender com as chamadas “Causas perdidas”. Momentos de mudança radical ocorridos a partir de grandes causas são férteis, candentes de idealismo e capazes de abrir e iluminar caminhos, ainda que seus meios provem-se equivocados.
Com seu estilo sempre contestador e sagaz, Žižek desfaz ponto a ponto a trama das análises prontas e desgastadas, elaborando sua defesa das causas perdidas para, de acordo com ele, não “defender, como tal, o terror stalinista, mas tornar problemática a tão facilzinha alternativa democrático-liberal”.

De acordo com o jurista e filósofo Alysson Leandro Mascaro, que assina o prefácio da obra, Žižek faz a passagem entre a constatação factual e a plena intervenção política, alcançando o estágio que denota a maturidade política de um filósofo: o apontar dos caminhos. Tudo isso sem deixar de lado as provocações que o tornaram conhecido do grande público, articulando Lacan, Hegel e Marx, o cinema, a música, a cultura popular e os objetos de consumo.

O livro consolida uma perspectiva de filosofia política que ganha ares de proposição específica: a defesa das causas perdidas e o encontro das visões filosóficas não liberais existenciais e marxistas. Para além de Lacan e Marx, Žižek alinha Heidegger e Foucault em sua empreitada política. Ao discorrer sobre as formas de luta pela emancipação universal e a iminente crise ecológica global, reivindica a possibilidade de reinvenção do terror revolucionário e da ditadura do proletariado.

A proposta de ruptura teórica com o bem-estabelecido tem em vista que o capitalismo só pode vicejar em condições de estabilidade social básica. Esse pano de fundo ideológico precisa ser gerido por um forte aparelho cultural e educacional que mantém a confiança simbólica intacta, produzindo indivíduos que não só aceitam a própria responsabilidade por seu destino, como também confiam na “justiça” básica do sistema.

Repetir o passado não é provar a fraqueza do que se busca novamente, mas sim demonstrar a necessidade premente de concretizar sua grandeza, buscando no mínimo errar menos nessa nova retomada do processo revolucionário. A defesa das Causas perdidas não está envolvida com nenhum tipo de jogo desconstrutivo, seu objetivo é aceitar com coragem a concretização total de uma Causa, inclusive o risco inevitável de um desastre catastrófico. “Parafraseando a memorável frase de Beckett, à qual voltarei várias vezes adiante, depois de errar pode-se continuar e errar melhor, enquanto a indiferença nos afunda cada vez mais no lamaçal do Ser imbecil”, conclui Žižek. De acordo com Mascaro, “Em tempos dinâmicos que chegam até a plena manipulação tecnológica da natureza, onde a única grande estabilidade é a própria exploração capitalista, contra a qual já se luta e já se perde há tempos, trata-se de mostrar que é possível fazer a defesa das causas perdidas, para agora perder melhor ou, quiçá, plenamente ganhar”.

Trecho

Restam somente duas teorias que ainda indicam e praticam essa noção engajada de verdade: o marxismo e a psicanálise. Ambas são teorias de luta, não só teorias sobre a luta, mas teorias que estão, elas mesmas, engajadas numa luta: sua história não consiste num acúmulo de conhecimentos neutros, pois é marcada por cismas, heresias, expulsões. É por isso que, em ambas, a relação entre teoria e prática é propriamente dialética; em outras palavras, é de uma tensão irredutível: a teoria não é somente o fundamento conceitual da prática, ela explica ao mesmo tempo por que a prática, em última análise, está condenada ao fracasso – ou, como disse Freud de modo conciso, a psicanálise só seria totalmente possível numa sociedade que não precisasse mais dela. Em seu aspecto mais radical, a teoria é a teoria de uma prática fracassada: “É por isso que as coisas deram errado…”. Costumamos esquecer que os cinco grandes relatos clínicos de Freud são basicamente relatos de um sucesso parcial e de um fracasso definitivo; da mesma forma, os maiores relatos históricos marxistas de eventos revolucionários são descrições de grandes fracassos (da Guerra dos Camponeses Alemães, dos jacobinos na Revolução Francesa, da Comuna de Paris, da Revolução de Outubro, da Revolução Cultural Chinesa…). Esse exame dos fracassos nos põe diante do problema da fidelidade: como redimir o potencial emancipatório de tais fracassos evitando a dupla armadilha do apego nostálgico ao passado e da acomodação demasiado escorregadia às “novas circunstancias”.

Sobre o autor

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real!, em 2003, Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917), em 2005, e A visão em paralaxe, em 2008.

Prefácio

Acompanhe a seguir o prefácio de Alysson Mascaro.

No livro Em defesa das causas perdidas, Slavoj Žižek inscreve-se, definitivamente, como um dos grandes filósofos políticos do nosso tempo. Desde a década de 1980 um pensador de intervenção constante na cultura, na psicanálise, nos impasses políticos do presente, arguto contestador do pensamento bem-estabelecido da contemporaneidade, Žižek alcança nesta obra – fazendo a passagem entre a constatação factual e a plena intervenção política – o estágio que denota a maturidade política
de um filósofo: o apontar dos caminhos. E, contra toda a cômoda visão do pensamento político atual, que ou está parada ou marca passo sem sair do lugar, o caminho apontado por ele é um passo para trás, a fim de ganhar o futuro.

Tal dinâmica peculiar de sua proposta não é um mero elogio do ontem. Trata-se, sim, de tornar problemática a afirmação do presente, bombardeando sistematicamente seus fundamentos com energias que, desde o passado, ainda não se esgotaram.

Contra o pensamento confortável do presente, para Žižek, duas perspectivas de mundo restaram engajadas na busca da verdade, tanto como teorias quanto como luta concreta: o marxismo e a psicanálise. Para ambas, a relação entre teoria e prática é dialética. Marxismo e psicanálise se insurgem como críticas radicais ao presente. Em face da complacência pós-moderna, são consideradas, por muitos, causas perdidas. O pensamento social crítico pleno, vinculado às lutas sociais revolucionárias,
tem-se reduzido à defensiva, mas aí não pode ficar adstrito: para sua afirmação contra a média bem-assentada da atualidade, deve-se fazer uma luta sistemática, no ataque. Žižek propõe uma ruptura teórica com o bem-estabelecido.

Seu passo de vanguarda não será apenas o passo para trás: a defesa das causas perdidas é um largo passo para a frente. É contra o presente que fala Žižek. O passado é apenas um calço para firmar a caminhada do futuro. O pensamento presente, democrático, liberal, contrário aos autoritarismos,
afirmando-se em muitos casos como pós-moderno, sempre respeitador dos direitos humanos e defensor das minorias, tem se vendido como um valor muito melhor que o passado das lutas comunistas. A filosofia atual, consensual e construída nos limites internos da democracia, não apenas age no negativo, refutando o totalitarismo, mas principalmente no positivo, oferecendo sempre alternativas boas e responsáveis ao mundo. É um universo da ordem, institucionalizado e normatizado,
mas tão complacente e frágil que até a exceção à norma já se encontra prevista na regra, o que só enfraquece ambas. No mundo pós-moderno, a transgressão já é imposta diretamente pela lei. Trata-se do pensamento de um mundo sem decisão.

Ao se abominar a avaliação forte, fica-se tão distante de uma apreensão da verdade das coisas que até os direitos humanos são afirmados por meio de uma fragilidade essencial: não é da natureza humana que tiramos sua determinação, mas sim de uma postulação advinda de uma mera vontade axiomática. Para Žižek, as experiências de resistência atuais, como a que se extrai do lema do Fórum Social Mundial – “Um outro mundo é possível” –, relacionam-se ambiguamente com a estrutura já posta do capitalismo. O esforço por arrancar das rebarbas da reprodução capitalista algo um pouco diferente dentro do mesmo todo só demonstra que o possível tem sido utilizado, na verdade, como uma contenção das plenas possibilidades. As grandes impossibilidades é que são as atuais causas ganhas. Defendendo as causas perdidas, Žižek se apresenta na tangente entre as duas opções filosóficas majoritárias de recusa das causas ganhas: de um lado, o existencialismo – decisionismo extremado e, de outro, o marxismo. Dessa tangente, sua opção conclusiva é o marxismo, embora boa parte da construção de sua argumentação seja feita pelo caminho existencial-decisionista. Por causa de tal balanço teórico sempre tangencial, o autor consegue também, imediatamente, a peculiar atenção de um público que não se conforma com as causas ganhas, mas que também se incomoda com os “maus hábitos” marxistas. Nisso está uma das insólitas atenções despertadas por ele no cenário mundial atual, mas também o mais interessante uso político progressista que faz de sua função de intelectual público: toma a si o papel de tornar sedutor o marxismo a partir de todos os elementos filosóficos alheios que possam lhe ser aproximados pelo plano da radicalidade, contra o convencionalismo liberal bem estabelecido.
A posição de Žižek é diferente daquela do pós-marxismo da década de 1980, que lançou pontes ao existencial-decisionista como forma de salvar algumas poucas coisas boas do marxismo restante, entregando-as à pura adoção nesse colo que era, à época, mais novo, forte e facilmente aceitável pelo público intelectual e pelo universo político. Para ele, são as coisas boas existenciais-decisionistas que vêm reforçar o marxismo, que agora inverte sua posição de adotado para adotante. Há nessa
mudança uma constante tensão. Por estar sempre na tangente entre os dois mundos da crítica radical, Žižek é um pensador processual, que caminha em um fluxo de ajuste situacional, não necessariamente linear. Sua posição não se orienta apenas por conta de algumas certas causas: é também pelo fato de estarem atualmente perdidas que elas aumentam a circunstancialidade e a dinâmica dos posicionamentos žižekianos.

Os passos e suas direções

Žižek não deixa de ser, nesta obra, o provocador filosófico já conhecido do grande público, articulando Lacan, Hegel e Marx, analisando o cinema, a música, a cultura popular e os objetos de consumo. No entanto, neste livro ele consolida uma perspectiva de filosofia política que, se estava anteriormente unida por um amálgama provisório, agora ganha ares de proposição específica: a defesa das causas
perdidas é um caminhar em conjunto das visões filosóficas não liberais existenciais e marxistas. Para além de Lacan e Marx, Žižek alinha Heidegger e, complementarmente, Foucault em sua empreitada política.

Para ele, nessa longa lista dos rejeitados pela filosofia democrática, liberal ou pós-moderna atual – Marx e os marxistas, Heidegger, Foucault, Schmitt –, todos dão passos certos, embora alguns na direção errada. São, como diz, os intelectuais radicais. O radicalismo é o passo certo; determinados propósitos políticos, a direção errada.

Tenho proposto nos últimos anos, em especial no livro Filosofia do direito1, que se pode enquadrar a leitura da filosofia do direito e da filosofia política contemporânea a partir de três grandes horizontes: o liberal, o existencial-decisionista e o crítico, que podem ser lidos, especificamente para o campo do direito, como o juspositivismo, o não juspositivismo e o marxismo. No campo do liberalismo e do
juspositivismo, sua derradeira manifestação é de caráter ético, como no caso dos pensamentos de Rawls e Habermas. No campo do não juspositivismo, fundado numa percepção do poder existencial-decisionista, são Heidegger, Gadamer, Schmitt e Foucault seus grandes teóricos. O terceiro grande campo, o da crítica, é o do marxismo.

Žižek se encaminha por reconhecer que, além do horizonte liberal, institucionalista e juspositivista, abrem-se justamente mais duas correntes do pensamento contemporâneo, e o que as unifica é o passo radical (ainda que o marxismo supere o existencial-decisionismo na orientação correta de seu passo). Heidegger é o grande pensador do passo certo na direção errada. É contundente e a princípio incômoda
a apreciação žižekiana nesse sentido: “a verdade difícil de admitir é que Heidegger é ‘grande’ não a despeito, mas por causa de seu envolvimento com os nazistas, que esse engajamento é um constituinte fundamental dessa ‘grandeza’”. As próprias etapas do pensamento heideggeriano são contadas de outro modo por Žižek: “quando Heidegger mais errou (seu envolvimento com o nazismo) foi quando
chegou mais perto da verdade”. O mesmo que vale para o Heidegger que se retirou do Dasein para a poesia é também válido, no critério žižekiano, para Foucault, quando ao final de sua vida abeirou-se da ética e dos direitos humanos. O arrependimento posterior desses grandes intelectuais é um ato intelectual de menor qualidade que as suas anteriores apostas corretas no extremo.

Em defesa das causas perdidas apresenta um Žižek que não afirma o pensamento de Heidegger como tem feito a tradição conservadora ou reacionária: costuma-se dizer que o combate ao comunismo é que teria dado legitimidade de objetivos ao nazismo e ao heideggerianismo, mas não aos seus meios. Para Žižek, trata-se do contrário. Os meios radicais podem ser plenos, o erro está justamente no objeto. O
nazismo, querendo ser radical, na verdade nunca o foi, porque manteve intocada a estrutura social capitalista. Assim, sua coragem é má, o que vem a ser, no fundo, uma forma de covardia política. “A ‘coragem’ dos nazistas foi sustentada por sua covardia na hora de atacar a principal característica de sua sociedade: as relações de produção capitalistas”.

É porque também somam a si a direção correta que Žižek aponta para a afirmação dos passos radicais no seio do marxismo e das lutas revolucionárias. A Revolução Francesa, que tem sido historicamente narrada pelos conservadores como um incômodo, na verdade deve ser lida como um evento inconcluso porque não levou ao limite o terror revolucionário. Žižek denuncia que a fórmula liberal e conservadora
“1789 sem 1793” é a petição por uma revolução descafeinada… Por isso, deve-se afirmar que foi por carência de Robespierres, e não por excesso deles, que a Re volução Francesa fracassou. Para Žižek, é preciso afirmar o inumano. Nas equações políticas que presidem nosso tempo, do par humanismo ou terror, “o terror e não mais o humanismo é o termo positivo”. Nesse momento, mais uma vez Lacan, com
o inumano do próximo, e Althusser, com o anti-humanismo teórico, passam a lhe servir de fundamento filosófico.

A história do terror revolucionário, da Revolução Francesa à derrocada do bloco soviético, cobre o arco que vai de Robespierre a Mao, ambos objetos de recentes intervenções teóricas de Žižek. As transubstanciações do marxismo revelam sua face mais avançada, e também o mais alto estágio para analisar suas contradições e seus problemas. Se o extremo revolucionário foi dado sob Mao, cria-se ao marxismo o embaraço de que, na China, com a Revolução Cultural, houve solos mais férteis que
os da classe operária. Tal inesperado revolucionário, que não se limita exatamente à classe, pode ser visto de modo melhor, para Žižek, na proposição de Alain Badiou de que, ao contrário do que afirmam as lutas anticapitalistas e antiglobalização atuais, o inimigo é a Democracia: “Hoje, o que impede o questionamento radical do próprio capitalismo é exatamente a crença na forma democrática da luta contra o capitalismo”.

Para Badiou e Žižek, embora o econômico seja o campo último e fundamental de batalha, o político é o atual espaço da intervenção revolucionária. Žižek se aprofunda na busca e na defesa dos passos perdidos, resgatando o radical em tempos de bom-tom liberal mediano. No campo do marxismo, destrincha as mesmas contradições, surpreendendo ao alterar proposições tradicionalmente consolidadas. A respeito de Mao, para Žižek, talvez seja necessário ponderar se o radicalismo é mesmo o problema principal. O senso comum contemporâneo rejeita a Revolução Cultural porque seus propósitos socialistas podiam até ser bons, mas os meios foram péssimos. Žižek inverte a proposição: e se o radicalismo maoista foi apropriado e o erro tenha sido justamente o horizonte do que se pressupunha ser a específica forma de luta socialista que se travou contra o capitalismo? Os acertos na direção é que revelarão a salvação do passo firme. No pensamento de Žižek, a questão do radicalismo, que faz com que um liberal contemporâneo rejeite em bloco o
nazismo e o socialismo, deve ser objeto de uma diferenciação substancial. O nazismo representou uma vontade autotélica de extermínio dos judeus e não pode ser considerado parte de uma estratégia racional, ao contrário da radicalidade socialista. 

Embora extremos, os passos se deram em direções contrárias, sendo uma delas
total e absolutamente errada. Para Žižek, comparar o radicalismo revolucionário socialista ao nazista já é, de início, um movimento pela relativização ou, até mesmo, pela absolvição do nazismo. Embora este tenha empregado muito menos agentes de repressão do que o socialismo da Alemanha Oriental, para a análise žižekiana isso não quer dizer que a natureza do socialismo seja mais repressora que a do fascismo. Pelo contrário, o nazismo era muito mais totalitário; porque contava com uma repressão conectada à própria sociedade. A repressão stalinista se dava contra um povo que utilizava,
como resistência, a ideologia oficial de liberdade real, solidariedade social e verdadeira democracia que, na verdade, o Estado não praticava. Do comunismo para o nazismo, é a forma que muda: não a luta política, mas sim o conflito racial; não o antagonismo de classe, mas o corpo estranho judeu que perturba a harmonia comunitária ariana. Se o nazismo estabelece algum vínculo com o socialismo, isto se dá apenas como reação: “o nazismo foi uma repetição, uma cópia do bolchevismo; em termos
nietzschianos, foi um fenômeno profundamente re-ativo”.

Assim, para além de uma genérica identidade do poder, é por uma especificidade da forma que o marxismo se levanta em face de todas as radicalidades da história contemporânea. É a crítica à forma mercantil que faz o marxismo superar definitivamente o existencial-decisionismo. Como o chão de Žižek, de início, é um solo comum, será apenas em alguns momentos que ele se aproximará com mais detalhe do aparato dessas críticas da lógica marxista, que desmontam as instituições jurídicas e políticas por conta de sua natureza especificamente capitalista. 

A defesa das causas perdidas é também um inventário do passado para, justamente, dele afastar o que se acusa e não é próprio, como única condição possível para extrair o que plenamente garanta o futuro. No contexto da análise do pensamento de Ernesto Laclau, Žižek dá esse passo para trás a fim de propor um outro novo à frente: “Um dos tópicos mais comuns do pós-marxismo é que, hoje, a classe operária não é mais o sujeito revolucionário ‘predestinado’, as lutas emancipadoras contemporâneas são plurais, sem um agente específico que reclame um lugar privilegiado. A maneira de responder a essa advertência é ceder ainda mais: nunca houve esse privilégio da classe operária, o papel estrutural fundamental da classe operária não envolve esse tipo de prioridade”.

O que se há de fazer?

Repetindo ao seu modo a crucial pergunta de Lenin e do marxismo do século XX, Žižek, na parte final de Em defesa das causas perdidas, faz um balanço das possibilidades políticas que se apresentam ao nosso tempo. A maior parte delas encontra-se refém das próprias estruturas capitalistas, que não estão sendo postas em questão. São poucos os movimentos que, nos últimos dois séculos, restaram his toricamente consagrados como plenamente libertários, como foi o caso dos sovietes – que receberam a admiração até de liberais como Hannah Arendt. Mas, com o fim do mundo estatal soviético, também sucumbiu o modelo dos sovietes. Dirá Žižek, provocativamente, que “o modelo dos conselhos do ‘socialismo democrático’ era apenas um duplo espectral do ‘socialismo real’ ‘burocrático’, sua transgressão inerente sem nenhum conteúdo positivo substancial próprio, isto é, incapaz de servir de princípio organizador básico e permanente de uma sociedade”. O mesmo Žižek estende o problema do atrelamento ao Estado às práticas atuais de democracia direta, às culturas digitais pós-industriais, comunidades de hackers etc.: “todas têm de basear-se num aparelho de Estado, isto é, por razões estruturais não podem ocupar o campo todo”. Mesmo querendo afastá-lo, o Estado ainda é a precondição, no campo de fundo, de várias práticas atualmente toleradas ou apontadas como libertárias.

A articulação entre democracia, populismo, excesso totalitário e ditadura do proletariado de Žižek é inovadora. Não está perfilada ao lado de Habermas, Arendt, Rorty e Giddens, mas sim problematizando experiências concretas e insólitas como as de Chávez e Morales. As forças destes advêm dos vínculos privilegiados com os despossuídos das favelas. Chávez é o presidente deles, sua legitimação está no povo, embora respeite o processo eleitoral democrático. Para Žižek, em uma avaliação
que é crítica, “essa é a ‘ditadura do proletariado’ na forma de democracia”.

A defesa das causas perdidas de Žižek revela-se, ao final, também uma escatologia. Cristianismo, marxismo e psicanálise alinham-se nessa mesma necessidade de repetição a partir do fracasso. “Isso nos leva a mais uma hipótese: necessariamente, o Evento falha da primeira vez, de modo que a verdadeira fidelidade só é possível na forma de ressurreição, como uma defesa contra o ‘revisionismo’. (…) Quando surge um novo ensinamento, do cristianismo ao marxismo ou à psicanálise, primeiro
há confusão, cegueira a respeito do verdadeiro alcance de seu ato; as heresias são tentativas de esclarecer essa confusão com a retradução do novo ensinamento para as coordenadas antigas, e é só contra esse pano de fundo que se pode formular o âmago do novo ensinamento”.

Repetir não é provar a fraqueza do que se busca novamente, mas sim demonstrar a necessidade premente de volver ao passado para concretizar sua grandeza, buscando, no mínimo, errar menos nessa nova retomada do processo revolucionário. O potencial emancipatório que ainda não se esgotou continua a nos perseguir, e o futuro que nos persegue pode ser o futuro do próprio passado. A irrupção da revolução passada se deu em um momento incerto, e sua repetição presente também
assim se apresentará, porque o ato revolucionário “é sempre ‘prematuro’”. Nunca haverá de se esperar um tempo certo para a revolução; então, para Žižek, o amanhã que é futuro do ontem pode já ser hoje.
Num tempo que naturalizou a dinâmica e o constante fluxo histórico, que considera a mudança como um cálculo da própria reprodução social, a pergunta crítica, para Žižek, é então: o que continua igual ? “É claro que a resposta é o capitalismo, as relações capitalistas”. Aí reside a matriz contra a qual há de se insurgir a radicalidade da mudança revolucionária. Sendo a mesma, cabe então, exatamente,
a repetição das causas perdidas.

Com base na sua formação filosófica hegeliana, Žižek aponta a relação dialética entre senhor e escravo como exemplar da possibilidade de superação dos tempos presentes. Ilustra sua interpretação revolucionária com o Cristo: “É nesse sentido que Cristo é nosso senhor e, ao mesmo tempo, a fonte de nossa liberdade. O sacrifício de Cristo nos liberta. Como? Não como pagamento dos pecados nem como resgate legalista, mas assim como, quando tememos alguma coisa (e o medo da morte é o medo supremo que nos torna escravos), um amigo de verdade nos diz: ‘Não tema, olhe, eu vou fazer. Do que você tem tanto medo? Eu vou fazer, não porque eu tenho de fazer, mas por amor a você. Eu não tenho medo!’, ele faz e, dessa forma, nos liberta, demonstrando in actu que pode ser feito, que também
podemos fazer, que não somos escravos…”.

Para Žižek, em tempos dinâmicos que chegam até a plena manipulação tecnológica da natureza, onde a única grande estabilidade é a própria exploração capitalista, contra a qual já se luta e já se perde há tempos, trata-se de mostrar que é possível fazer a defesa das causas perdidas para agora perder melhor ou, quiçá, plenamente ganhar.