O momento era muito simbólico. A presidenta Dilma Rousseff anunciava a construção de oito mil novas residências para os desabrigados da região serrana do Rio. Medida justa e até incrível em tempos de “ajuste”.

Mas, em seguida veio a pérola que faltava. Segundo a nossa presidente:
“Vamos manter o controle da inflação. Não vamos negociar com a inflação. O Brasil vai continuar crescendo sistematicamente”.

Mas não ficou por aí, como segue:

“ (…) nenhum país é grande sem reduzir desigualdade social e regional. É isso que queremos fazer, e isso demanda uma equação que equilibra crescimento econômico e política de governo”.

Centralidade do investimento

Nossa chefe de Estado tem razão quando relaciona redução das desigualdades regionais e sociais com a necessidade de crescimento e política de governo. Faltou falar mais acerca do dito “equilíbrio” entre uma coisa (crescimento) e outra (política de governo). Tudo bem, mas soa como música aos ouvidos levantar, antes um problema, essa contradição e sua síntese. Há muito tempo que a solução das questões social e regional em nosso país deixou de depender única e exclusivamente da interligação do grande mercado de mão de obra e determinados produtos primários nordestinos com a indústria do sul e do sudeste. A Revolução de 1930 – e a política de integração das hinterlands regionais a um grande mercado produtor e consumidor nacional – praticamente aniquilou as condições objetivas materiais para o surgimento de outros “Antônios Conselheiros” no semiárido nordestino. A Grande São Paulo passou a ser este lócus.

A realização do encaminhamento a soluções de grande magnitude engendradas nas questões social e regional passa, de forma necessária, pela maximização da única variável econômica independente, o investimento. Investimento em economia monetária pode ser sinônimo de algumas combinações. Entre elas a residente na liberação de energias via créditos de longo prazo e a ação coordenada entre planejamento e investimentos em infraestrutura, sendo a abertura de novos campos de acumulação uma grande expressão desta dita “ação coordenada”. A visão de conjunto destas variáveis serve de guarida à liberação de energias contidas (e reprimidas) do setor privado nacional.

Ao caso nordestino, essas combinações podem ser sintetizadas tanto na transposição do rio São Francisco, quanto em levar às ultimas consequências todas as possibilidades empreendedoras, individuais e coletivas, inerentes à transformação do vale do rio citado no maior complexo agroindustrial do mundo. É a solução da questão regional num outro patamar. No patamar do surgimento de um empresariado rural de tamanhos diversos e de uma classe média apta para o consumo num nível superior. As vicinais da ferrovia Transnordestina seriam as veias de ligação entre novos centros urbanos (Crato, Petrolina, Imperatriz etc.) não portadores de massas industriais de reservas, mas centrífugas de administração de grandes negócios e da geração de “empregos tecnológicos” ligados a centros como Recife e Salvador.

A instalação de grandes complexos siderúrgicos e de metal mecânica, além de todo ramo industrial petroquímico estaria na ordem quase natural dos acontecimentos. Um sistema financeiro nacional e regional portadora de carteiras de longo prazo seria a mola propulsora de todo este processo. Processo este que incluiria a expansão do metrô, túneis, viadutos e grandes obras de saneamento em todas as capitais nordestinas.

Intervenções como a descrita acima com similares em todos os pontos do território nacional trariam, numa reação de causa e efeito, uma majoração da taxa de investimento. Seria expressão da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento digno deste nome. Porém, o grande problema seria observar algo desta monta isento de contradições. O próprio desenvolvimento não é um mar de rosas. A contradição se coloca com toda sua força. Ser digno deste processo é demonstrar capacidade para grandes provações. Capacidade, de fato, de ser uma grande nação.

A contradição e o ciclo

Uma construção nacional disposta a sacrifícios para sua realização não é algo que se encontra a todo instante e hora. E o Brasil não é um caso diferente. O fato de o Brasil ter sido o país que mais cresceu no século passado não deve ser um exercício de “esconde”, pois as dores deste parto se fazem sentir até os nossos dias. A industrialização sem reforma agrária trouxe em sua conta problemas distributivos anexos a uma grande taxa de exploração e baixo nível de consumo dos trabalhadores.

Mas ao fim e ao cabo, a solução desta e outras contradições não poderiam prescindir da continuidade do processo iniciado com a Revolução de 1930. Nosso dilema tem semelhança ao japonês e alemão: “crescer ou crescer” sob o preço de afundar a herança prussiana, incluindo mais e mais trabalhadores na lógica do consumo através da abertura de novos campos de investimento.

Ao caso brasileiro, especificamente, como enfrentar os desafios diante de nós sem que o país pare diante das contradições surgidas no enfrentamento destes mesmos desafios? Como ir adiante sem se infortunar em demasia com as próprias insalubridades conjunturais? Em outras, palavras: será possível crescer sem inflação? Ou melhor: é possível fazer omelete sem quebrar os ovos?

A grande questão reside mesmo em certas figuras de linguagem. Buscar objetivos de longo de curto, médio e longo prazo, colocando o pé no acelerador na taxa de investimentos somente acelerará a chamada “roda do ciclo”. O crescimento levará sim a aquecimento da demanda sem a necessária contrapartida imediata da oferta. Virá a inflação, certamente. Mas existe o momento em que a relação entre oferta e demanda tende a necessária estabilidade. Seria o fechamento de um ciclo e entrada em outro. Cito dois pontos em comum nesta história toda de busca de afirmação nacional via afirmação industrial e econômica. Pode parecer simples, mas não simplista: 1) a inflação é um fenômeno cíclico, parte integrante do processo e não uma anomalia e 2) seu “combate progressista” se dá pela manobra planificada da variável “taxa de investimento”.

Remetendo à fala de nossa presidenta, lanço uma questão: Não negociar com a inflação. Mas e o investimento, onde fica?

A contradição e a questão moral

Trabalhando de forma mais historicizada e sofisticada toda essa problemática econômica nacional; levando em alta conta a própria dinâmica da relação e equilíbrio entre oferta e demanda e considerando os próprios movimentos em âmbito mundial, como julgar essa assertiva de não negociar com a inflação?

Como se percebeu na história recente da república, esta anotação da presidenta só acentua uma tendência objetiva: na falta de esmero, objetividade e até coragem de manipular planificadamente a variável investimento, a questão inflacionária foi transformada em questão moral, religiosa. Em processo social não existe a possibilidade de negociação direta com esta ou aquela variável e sim a convivência com a mesma. Em se tratando de inflação, esta convivência é forçada pelo simples fato de estarmos numa economia de mercado e de os monopólios, oligopólios, monopsônios e oligopsônios não estarem passíveis – momentaneamente – de superação. Superação esta só possível nos marcos de uma outra formação social superior a capitalista. Enfim, o que deveria ser tratada (inflação) como uma contradição a ser superada pela própria continuidade do processo de desenvolvimento, do alargamento da base produtiva e da estrutura de oferta, passou a ter tratamento maniqueísta – de bem contra o mal. E como tudo de caráter religioso, seu enfrentamento deve ocorrer no agora, neste exato momento de forma que todo o conjunto do organismo social seja governado sob a égide desta luta imediata. É a mistificação da própria filosofia: a parte sendo observada como um todo rígido, sem unidade de contrários, nem tampouco negação da negação. É o processo sendo negado como tal.

Sentido reacionário

Eis o sentido reacionário, pequeno e inconseqüente da ideia de “não negociar com a inflação”. No concreto, significa o postergamento do vislumbre do futuro e de nossa grandiosa construção nacional. De certo que o dinamismo brasileiro ainda sim se manifesta, colocando em maus lençóis os estagnacionistas de diversa monta. É o retrato de um país que se acostumou nos últimos 20 anos a ter um governo meramente administrador das coisas, combatendo a inflação como se fosse o ponto de união entre o céu e o inferno.

Elias Jabbour é doutor e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.