Suspeitos de sempre patrocinam contrarrevolução no Egito
Como previsto, a contrarrevolução está em marcha no Egito, patrocinada pelos suspeitos de sempre: o exército egípcio, as elites ‘compradoras’ do mubarakismo e a tríade Washington, Telavive e capitais europeias. Passadas já mais de duas semanas de protestos nas ruas do Egito contra o presidente Hosni Mubarak, aí está o que significa a “transição ordeira” da Casa Branca – com Washington jogando de todos os lados, mesmo depois de a rua ter quebrado o espelho e desafiado a “estabilidade”/terrorismo imposta pelo lado escuro da força.
A contrarrevolução vai bem além dos comentários de Frank Wisner, homem do complexo CIA/Wall Street, enviado como agente secreto do presidente dos EUA ao Cairo, e amigo pessoal de Mubarak, sobre o quanto seria desejável que Mubarak ficasse e supervisionasse a transição. Aparece também, como que por acaso, nas palavras de Robert Springborg, professor de Assuntos de Segurança Nacional na Escola de pós-graduação da Marinha dos EUA, que disse à Reuters que “Os militares construirão uma sucessão.
O ocidente – EUA e União Europeia – estão trabalhando para isso. Estamos trabalhando em íntima união com os militares (…), para garantir que nada se altere no papel dominante dos militares na sociedade egípcia, na política e na economia”. Tradução: apague o povo, para garantir a “estabilidade”. A cidade de tendas na Praça Tahrir na capital, Cairo, sabe muito bem que décadas de o Egito existir como estado-cliente dos EUA, mais manipulações infindáveis pelo FMI/Banco Mundial, criaram a tempestade econômica perfeita que foi a causa-chave da revolução.
É também causa-chave para que a rua deseje – como se ouve num dos slogans principais – que todo o regime seja posto abaixo. Ligando os pontos, a rua sabe também que governo egípcio soberano, verdadeiramente representativo, põe abaixo todo o arranjo de poder vigente, controlado pelos EUA.
Historicamente, Washington sempre temeu o nacionalismo árabe, não os self-made jihadistas cabeça-fraca. O nacionalismo árabe é intrinsecamente, visceralmente, contrário aos acordos de paz de 1979 em Camp David, que neutralizaram o Egito e deixaram Israel com poder e mão de ferro para continuar o processo de estrangulamento lento dos palestinos; nas palavras de As’ad Abu Khalil, do blog “Angry Arab”, todos os especialistas que trabalharam para os acordos de Camp David, “ajudaram a construir uma monstruosa ditadura no Egito”.
Daniel Levy, ex-negociador israelense no ‘processo de paz’, e hoje da New America Foundation, disse com todas as letras ao New York Times: “os israelenses estão dizendo que “après Mubarak, o dilúvio (…). O problema para os EUA é que se pode fazer avançar a agenda israelense com autocratas árabes, mas com democracias árabes não, é impossível.”
Corrigindo: de fato, depois de Mubarak não será o dilúvio, será “o nosso torturador” – vice-presidente Omar Suleiman, chefe do Mukhabarat, chamado, nos cartazes da praça de “Sheikh al-Tortura”, porque prendeu, matou e arrebentou pelo menos 30 mil pessoas, suspeitas de serem jihadis, aceitou prisioneiros transferidos pela CIA e torturou os transferidos. Entre os inocentes torturados está Sheikh Libi que, sob tortura, ‘confessou’ que Saddam Hussein estava treinando jihadis da al-Qaeda; ‘informação’ que o ex-secretário de Estado Colin Powell não se envergonhou de usar no infame discurso na ONU, em fevereiro de 2002, no qual justificou a guerra ao Iraque.
Jogar Mubarak no Nilo
Essencialmente, é o que as ruas do Egito querem. Mubarak fora, já. Suleiman inicia diálogo nacional com uma coalizão de oposição, observado por delegação neutra da ONU. Depois, uma assembleia constituinte, com a missão de alterar os artigos 77, 78 e 88 da Constituição, para permitir que qualquer egípcio seja candidato à presidência. Fim do estado de emergência (vigente, de fato, há 25 anos). O judiciário estabelece corpos para monitorar futuras eleições. Um corpo de coalizão nacional, criado para monitorar a transição nos próximos seis meses e organizar eleições normais, pelos padrões internacionais. Novas regras para partidos políticos, que deixem de depender da aprovação do Partido Democrático Nacional do mubarakismo, e passem a ser regidos por corpo neutro independente.
O país recomeçará do zero, em estado de Direito e com judiciário independente. Os grupos de jovens, centrais na revolução, vão muito além disso. Querem: que todo o partido de Mubarak, o NDP, renuncie, inclusive Suleiman; um governo amplo, de transição, a ser nomeado por um comitê de 14 membros, constituído de juízes, líderes dos movimentos de jovens e membros do exército; eleição de um conselho de 40 intelectuais públicos e especialistas em direito constitucional, que esboçarão as linhas gerais de uma nova constituição, supervisionado pelo governo de transição, a ser aprovado pelos eleitores em referendo; eleições locais e nacionais; fim da lei de emergência; desmonte de todo o aparelho de segurança do Estado; e julgamento de todos os principais líderes do regime, inclusive Mubarak.
A rua simplesmente não confia no “Conselho de Sábios” que se autonomeou – e que inclui o secretário da Liga Árabe Amr Moussa; o Prêmio Nobel e conselheiro de Obama Ahmed Zuwail; o professor Mohamed Selim al-Awa; o presidente do Partido Wafd Said al-Badawi; o poderoso empresário do Cairo Nagib Suez e o advogado Ahmed Kamal Aboul Magd – e que apoia a ideia de Suleiman presidir a “transição ordeira”, sob o pretexto de que a oposição estaria dividida demais e não chegaria a nenhum acordo.
Mas para acreditar que Suleiman aceitará dissolver seu próprio partido, além do Parlamento e da Polícia política, e que alterará a Constituição, só se a rua estiver sob efeito de um sonho orientalista induzido pelo ópio.
No momento, o novo partido Wafd (seis assentos) e o Tagammu (cinco assentos) são os maiores partidos de oposição aprovados pelo regime com presença no Parlamento (518 assentos). E há também o partido al-Ghad (“Amanhã”), fundado por Ayman Nour (que contestou a última eleição presidencial e foi preso). A Geração Y que está nas ruas considera irrelevantes todos esses partidos; estão reunidos em torno do Movimento Kefaya (“Basta!”), e acaba de constituir uma Frente da Juventude para o Egito.
No momento o único grupo de oposição que dá voz às principais exigências no plano econômico é um ramo da nova Federação Egípcia dos Sindicatos Independentes [ing. Egyptian Federation for Independent Unions]. Querem salário mínimo mensal de 1.200 libras egípcias (cerca de US$204), aumentos anuais que acompanhem a inflação e direitos garantidos a bônus e benefícios.
Evidentemente, nada mudará no Egito sem uma nova constituição que assegure direitos políticos aos coptas, xiitas, Baha’i, núbios, beduínos e todos os demais, e são muitos. Ao mesmo tempo, os egípcios seculares, os cristãos, o novo ramo da Frente da Juventude para o Egito, nasseristas, partidários do novo Wafd, socialistas, todos parecem concordar que não há qualquer risco de a Fraternidade Muçulmana converter o Egito em país regido pela lei da Sharia.
O intelectual superstar Tariq Ramadan, cujo avô Hasan al-Banna fundou a Fraternidade Muçulmana em 1928, destaca que “[ver a FM como ‘ameaça’] é projeção ideológica para proteger interesses geopolíticos”. A Fraternidade Muçulmana, conforme todas as avaliações locais, não representa mais de 22% da população muçulmana; portanto não teria 78% dos votos. De fato, a sociedade egípcia já pratica o que se pode definir como modalidade muito moderada de Islã. O Islã é a religião do Estado; o hijab e o niqab são comuns entre as mulheres, como a galabiya para homens. E, para os que insistem em brandir o espectro da Revolução Islâmica de 1979 no Irã (e que não conhecem a diferença entre xiitas e sunitas), vale lembrar que a composição social e religiosa do Egito é completamente diferente da do Irã. Muito mais revelador, isso sim, é o que o próprio mundo árabe percebe como ameaça. Em pesquisa de agosto de 2010, da Brookings Institution, vê-se que apenas 10% dos árabes consideram o Irã como ameaça; verdadeira ameaça, para a maioria das populações árabes são os EUA (77%) e, ameaça ainda pior, Israel (para 88% dos árabes entrevistados).
Permitam-me aspergir um pouco de democracia
A rua tem pirâmides de razões para estar preocupada. Todas as evidências indicam que esses dias que abalaram o mundo podem evoluir para o que Washington definiu como “estabilidade”, com “transição ordeira” conduzida por torturador conhecido, com o regime onde sempre esteve, ganhando tempo, insistindo em discutir cada alteração crucial da Constituição – além do argumento interno segundo o qual Mubarak não pode ser defenestrado, seja porque seria inconstitucional seja porque, sem ele, haveria “o caos”.
Enquanto o impasse persiste – embora a rua continue completamente mobilizada – o que é apresentado como diálogo entre o regime e alguns poucos setores da oposição, incluídos aí os usurpadores da revolução, corre o risco de fracionar o já dividido e, de fato, sem qualquer liderança política, movimento de protesto. Essa alternativa de modo algum desagrada Washington. Nem, tampouco, outros estados-fantoches dos EUA.
A chefe da política externa da União Europeia Lady Catherine Ashton defende Suleiman – com quem conversou –, e que, para ela, teria “algum plano pronto” para atender algumas das reivindicações dos manifestantes. O adjetivo operador crucial, aí, “algum”. Imaginem se o resultado de tanto som e fúria, das centenas de mortos e milhares de feridos pelo regime – além dos jamais contabilizados milhares de mortos ao longo de 30 anos de ditadura – for essa “transição ordeira” asséptica, comandada pelo “Sheik al-Tortura”, elogiado por políticos e pela mídia-empresa em Washington, nas capitais europeias e em Telavive como vitória democrática da revolução popular e do desejo coletivo do povo egípcio… Reformas políticas/econômicas minimalistas já estão sendo apresentadas como cenouras podres – quando até jornalistas estrangeiros são presos nas ruas, bandidos armados aterrorizam os manifestantes e a imprensa estatal mubarakista continua em modo Revolução dos Bichos.
A opinião pública egípcia está sendo lenta, metodicamente, dividida. A junta militar é sólida como uma muralha. Suleiman e Annan são queridinhos de Washington. O ministro da Defesa marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi é queridinho de Robert “O Supremo do Pentágono” Gates. A ditadura militar certamente deseja que os EUA continuem a aspergir democracia sobre o Egito – na forma de dinheiro para comprar os tanques Abrams montados nos subúrbios do Cairo, helicópteros Chinook CH-47 fabricados pela Boeing, F-16s (contrato de $230 milhões) vendidos pela Lockheed Martin, Black Hawks vendidos pela Sikorsky, sistemas L-3 Ocean comprados para detectar ataques de submarinos, equipamento de rastreamento da CAE, em Tampa; sistemas de armamento C-130H vendidos na Florida, mais um influxo de 450 mísseis Hellfire II novinhos, para não falar das sempre úteis granadas de gás lacrimogêneo, compradas de Combined Systems Inc. (CSI), de Jamestown, Pennsylvania.
E não esqueçamos os contratos do Pentágono, que mostram os mais de $110 milhões de dólares que o Pentágono consumiu para comprar e fazer a manutenção de nove jatos Gulfstream da frota de Mubarak. Os que continuam na Praça Tahrir devem estar conjecturando: não se poderia usar um desses jatos Gulfstream, para ejacular Mubarak diretamente em Guantánamo?
O movimento de contrarrevolução pode ser muito proveitoso agora, exatamente para que a revolução mantenha-se em estado de alerta máximo. Quando a tal “transição ordeira” começar a ser vista exatamente como é, há grande probabilidade de não só o Egito, mas todo o mundo árabe virar uma bola de fogo.
Fonte: Vi o Mundo
Tradução: Coletivo Vila Vudu