Enquanto os egípcios se reúnem nas praças e ruas para exigir a renúncia do ditador renitente, o mundo desenvolvido assiste à derrocada dos ditos valores da civilização, triturados nas engrenagens da crise econômica e moral que avança célere em direção à barbárie humana e tecnológica. Não vou falar das aventuras do indefectível Berlusconi, trabalho que entrego ao Mino, mais qualificado do que eu para tratar do tema.

A imprensa independente do mundo está a publicar matérias sobre os episódios protagonizados por Rupert Murdoch e por certo Thilo Sarrazin. Alto funcionário do Bundesbank e membro do Partido Social Democrata (SPD), Sarrazin incendiou a Alemanha com a publicação de um livro que afirma a inferioridade genética dos muçulmanos e sua inadaptação à vida alemã. A primeira reação das autoridades e da liderança do SPD foi de repúdio ao pastiche pseudocientífico. Mas, numa rememoração de um passado que não passa, a caixa de e-mails do escritor ficou repleta de mensagens congratulatórias, as saudações nas ruas e nas praças eram cada vez mais numerosas e reconhecidas: Sarrazin exprimiu o que a maioria ariana já discutia nas mesas das cervejarias.

Vamos a Murdoch, o protagonista do Episódio Barbarie II, que poderia ser batizado de Out of Law and Disorder. Como sabem, ou deveriam saber os cidadãos bem informados, Murdoch é o tycoon dos meios de comunicação nos Estados Unidos, na Inglaterra e em outras partes do mundo. Esse australiano conquistador estendeu seus tentáculos para controlar todas as mídias. Ontem lançou uma publicação dedicada ao iPad.

Os jornais brasileiros noticiam a boa-nova com alarde. Mas não deitaram uma linha sobre as peripécias do criativo e inovador mogul das comunicações. Repórteres e jornalistas de seu jornal, o dominical News of the World, foram apanhados na prática do grampo ilegal, expediente empregado para bisbilhotar, dizem, a vida sexual de personalidades esportivas, políticas e celebridades em geral. Depois de hesitar, a outrora quase impecável Scotland Yard determinou investigações. Há indícios de que o inquérito da polícia vá concluir pela condenação do grampeador serial que estaria curtindo preventivamente uma cana.

A memória dos admiradores de James Bond, como eu, foi imediatamente mobilizada pela lembrança de uma das obras-primas da série Tomorrow Never Dies (O Amanhã Nunca Morre). Em entrevista, ao mesmo tempo brilhante e alucinada, concedida ao excelente Jorge Pontual da Globonews, o filósofo Slavoj Zizek afirmou que há mais questionamento político e social em alguns filmes de Bond (e em todos de Hitchcock) do que nas banalidades sentimentais de James Cameron, o diretor de Avatar. Em O Amanhã Nunca Morre, James Bond 007 (Pierce Brosnan) recebe a missão de investigar um tycoon da mídia e suas tramoias. Elliot Carver é o personagem empresário das notícias. Magnificamente representado por Jonathan Schell, o mandachuva pretende completar seu império global de comunicação. Para tanto, Carver precisa adquirir os direitos de operar seu complexo midiático na China. Os métodos de Carver são um tanto heterodoxos: ele engendra maquinações para provocar um confronto nuclear entre a China e a Inglaterra, nesse caso representando bravamente o Ocidente liberal e democrático.

As inclinações de Murdoch, comensal do atual primeiro-ministro britânico, o mauricinho David Cameron, são conhecidas. Os jornalistas de outras publicações inglesas pedem cautela na investigação porque há o risco, diante do crime praticado contra cidadãos ingleses de imposição de sanções e restrições à atividade jornalística. Esse foi o mote da manifestação do editor-chefe do Financial Times: rodou, enrolou e terminou no mais abjeto corporativismo, lançando às urtigas os direitos à privacidade dos grampeados. Um jornalista do Guardian observou que as demandas de respeito pelos procedimentos legais não correspondem aos desrespeitos sistemáticos da mídia de tabloides aos direitos dos cidadãos.

Nas democracias contemporâneas, censura prévia é inadmissível, mas usar a liberdade de expressão como pretexto para delinquir e escapar da punição é reivindicar um privilégio odioso.

Fonte: CartaCapital