Superar o subdesenvolvimento
Mas esses avanços não se propagam igualmente no tempo, tampouco na mesma dimensão e intensidade em todos os países e população. Justifica-se, assim, o uso recorrente do termo subdesenvolvimento para expressar a condição de países e regiões com elevada iniquidade no padrão de vida no interior de suas populações. Razão disso decorre, certamente, do deficiente e desigual ritmo de expansão econômica e social e do déficit de autonomia na governança interna do progresso técnico.
O contexto interno e externo heterogêneo tende a persistir por meio da significativa divisão entre o bloco de poucas nações desenvolvidas e o conjunto abrangente de muitos países na condição de subdesenvolvido. Embora diversas causas possam contribuir para a existência do subdesenvolvimento em cada país e região, podem ser destacadas pelo menos duas dimensões de sua manifestação.
A primeira, de ordem técnico-produtiva, associa-se aos diferentes processos de geração e propagação do progresso técnico no interior da estrutura de funcionamento do sistema econômico. Se o progresso técnico se constitui no principal elemento sadio da elevação dos ganhos de produtividade e, por consequência, lucros, salários e impostos maiores, observa-se que suas deficiências na inovação e difusão tecnológica na economia de um país podem aprisioná-lo à condição de subdesenvolvido. Ainda que setores de ponta tenham capacidade de deter algum grau de inovação técnica, predomina, em geral, profunda heterogeneidade na estrutura produtiva, com gigantescos diferenciais de produtividade setorial, regional e por escala dos empreendimentos.
Mesmo durante a industrialização, a contida possibilidade de endogeneização do progresso técnico impõe à estrutura produtiva a expansão desprovida de maiores surtos de inovação tecnológica. A internalização de novas tecnologias tende a ocorrer de forma contida e fundamentalmente por intermédio da importação e da presença de corporações transnacionais, o que caracteriza a condição do subdesenvolvimento dependente do acesso ao progresso técnico.
A segunda dimensão sócioprodutiva do subdesenvolvimento expressa a exacerbada desigualdade na repartição dos resultados econômicos alcançados. Ou seja, a manifestação de brutal concentração da renda e riqueza tanto entre patrões e trabalhadores (distribuição funcional da renda) como no interior da população (distribuição pessoal da renda) revela uma sociedade anacrônica. A desigualdade na divisão dos resultados econômicos resulta geralmente da descontinuidade do regime democrático, o que torna frágil o papel das instituições e das organizações da sociedade civil (partidos, sindicatos e associações), bem como contido o poder de representação dos interesses dos segmentos não proprietários. Além disso, tem importância a atuação do Estado na regulação do poder de mercado nos diferentes setores econômicos e na oferta universal de políticas públicas redistributivas e compensatórias, especialmente aos segmentos necessitados.
Após a vigência por mais de duas décadas de baixo dinamismo econômico e elevada oscilação desde a grave crise da dívida externa (1981-83), o Brasil voltou a sinalizar mais recentemente o caminho do seu desenvolvimento. A opção anterior pela recessão e contenção do mercado interno favoreceu a geração de saldo exportador voltado ao pagamento de juros dos serviços da dívida externa. Somente na primeira metade da década de 2000, o Brasil libertou-se da dependência externa, permitindo passar da posição de devedor para a de credor do Fundo Monetário Internacional. Mesmo assim, o quadro geral de semiestagnação da renda per capita levou ao empobrecimento do povo e a prevalência da desigualdade pró-rico. Isso não foi ainda pior graças ao abandono do regime autoritário, em 1985, fundamental ao fortalecimento das instituições democráticas e das organizações de representação da sociedade civil em defesa de interesses do conjunto da população.
Por intermédio da Constituição Federal de 1988, houve importante reestruturação das políticas sociais, cada vez mais convergentes com a construção do chamado Estado de bem estar social (enormes complexos públicos de saúde, educação, assistências e previdência social, trabalho). A sustentabilidade do crescimento econômico nos últimos anos e o aperfeiçoamento das políticas sociais favoreceram o melhor enfrentamento da dimensão sócio-distributiva do subdesenvolvimento brasileiro. O Brasil ainda está longe do ideal de superação do atraso originado e reproduzido por uma sociedade extremamente desigual, porém já não mais se encontra no mesmo patamar trágico do final do século 20 de nação campeã em desigualdade. A continuidade e fortalecimento das políticas públicas permanecem como verdadeiros desafios ao rompimento sustentável da dimensão sócio-distributiva do subdesenvolvimento nacional.
Por outro lado, segue ainda com destaque a dimensão técnico-produtiva do subdesenvolvimento brasileiro, dada a frágil e diminuta autonomia nacional em gerar e propagar o progresso técnico. Inegavelmente, o Brasil tem setores tecnológicos de ponta e de referência internacional, como na exploração de petróleo, na aviação civil, na agricultura tropical, no segmento bancário, entre outros, mas prevalece na maior parte do sistema produtivo o contido investimento em inovação técnica. Esse parece ser um dos principais resultados da recente pesquisa do IBGE sobre inovação técnica (Pintec), cuja dependência às importações e às grandes corporações transnacionais tende a postergar o aprisionamento na condição de subdesenvolvimento.
Não obstante os avanços obtidos pelas políticas de desenvolvimento produtivo e de inovação tecnológica, há ainda muito que ser feito, especialmente quando se observa o movimento em curso em países não desenvolvidos como China e Índia. Uma aliança estratégica entre a geração do conhecimento (universidades e centros de pesquisa) e o mundo produtivo está por ser consolidada.
O Brasil tem condições de superar o subdesenvolvimento que o acorrenta há séculos. Mas isso pressupõe a continuidade das ações mais sofisticadas de atenção à dimensão sócio-distributiva e do enfrentamento em novas bases da dependência tecnológica.
*Marcio Pochmann é presidente do Ipea, professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp
Fonte: Valor Econômico