A Diferença entre as filosofias da natureza de Epicuro e Demócrito

Podemos afirmar que a tese de doutorado Diferença entre as filosofias da natureza de Epicuro e Demócrito era fruto do ambiente efervescente das universidades alemãs e do convívio profícuo com os “jovens hegelianos”, dirigidos por Bruno Bauer, que tinham como programa a realização da “síntese entre o hegelianismo e o liberalismo francês, criando um ideário que permitisse concluir a tarefa libertadora levada à prática pela Revolução Francesa”. Apesar da aparente desvinculação com a realidade alemã, já que o trabalho nos remete a um debate ocorrido na antiga Grécia, essa obra era bastante atual e representava, em certo sentido, um grito (a mais) da jovem geração alemã contra a submissão às leis, quer as de Deus quer as dos próprios homens.


O jovem Marx (1818-1883)

Nesse período Marx estava impregnado das ideias dos revolucionários franceses, que buscavam a realização da liberdade no indivíduo e não no social. Devemos neste caso concordar com o professor José Américo Motta Pessanha, que afirmou que o centro da tese de Marx era “muito mais o helenístico Epicuro que o helênico Demócrito. E se Demócrito aparece (…) é antes para servir de contra e para ressaltar contornos de Epicuro, enquanto diferença”. A liberdade para o jovem Marx era representada sim pelo átomo de Epicuro, e não pelo de Demócrito, este sim fixo, preso às leis da natureza (no caso, leis divinas).

A grande contribuição estaria no fato de que Epicuro admitia “um triplo movimento do átomo no vazio. O primeiro é o da queda em linha reta; o segundo produz-se quando o átomo se desvia da linha reta, e o terceiro deve-se à repulsão dos diversos átomos entre si. Ao admitir o primeiro e o terceiro movimento Epicuro entrava em acordo com Demócrito, mas diferenciava-se dele na concepção do movimento de declinação do átomo de sua linha reta, o desvio”. Aqui estava o fundamento da liberdade do indivíduo/átomo: a capacidade de desviar da linha reta do destino.

O jovem Marx da tese admirava Epicuro por sua repulsa à categoria necessidade (entendida enquanto leis às quais os homens estariam irremediavelmente presos). Baseado em Epicuro, Marx escreveu: “A necessidade que alguns convertem em dominadora absoluta não existe e há algumas coisas fortuitas, outras dependentes de nosso arbítrio. A necessidade não convence (…) Seria preferível seguir o mito dos Deuses que ser escravo do destino dos físicos, que nos apresentam a inexorável necessidade (…) Seria uma desgraça viver na necessidade (…) Por todos os lados se abrem vias, numerosas, curtas e fáceis, que conduzem à liberdade. Agradecemos o fato de (…) não existir qualquer limite à vida, o que permite dominar a própria necessidade”. Quão longe ainda estamos do velho Marx da Crítica da Economia Política.

Na ocasião Marx fazia suas as palavras de Cícero: “Que se deve pensar de uma filosofia para a qual, como para as comadres ignorantes, tudo parece suceder graças ao destino? (…) Epicuro libertou-nos dele e assim pôs-nos em liberdade”. Nesse período, salvo melhor juízo, Marx parecia não diferenciar a categoria filosófica necessidade da noção de destino – conceito metafísico ligado às ideias religiosas.

Pelo que já expusemos da vida de Marx e de suas influências, podemos entender como o pensamento de Epicuro se encaixava como uma luva nas construções teóricas desses jovens que lutavam, ainda no campo das ideias, contra o status quo prussiano e a vil subserviência a ele, cultivada pelos hegelianos de direita. Estes viam no Estado a realização da razão e afirmavam que era através dele que o Homem, necessariamente, deveria se realizar.

Para os “jovens hegelianos” os homens, como os átomos de Epicuro, eram corpos que se moveriam “não em linha reta, mas obliquamente; o movimento da queda era o movimento da não-autonomia”. Essa lei (ou anti-lei) não era uma determinação particular. Ela expressava uma constante em toda a filosofia de Epicuro “de tal maneira que a encontramos sempre que o exige a esfera onde aplicada (…) Assim como o átomo se liberta de sua existência relativa à linha reta – à medida que prescinde e se separa dela, assim também a filosofia epicurista se desvia do ser que a limita”.

Por tudo isso Epicuro, para Marx, adquiriu a dimensão de “maior filósofo das luzes da antigüidade clássica”. Repetindo o elogio que Lucrécio lhe dirigiu, escreveu Marx: “A humanidade jazia vergonhosamente na terra./ esmagada sob o peso da religião/ que nos céus, mostra a sua face/ e cujos olhos estarrece ameaçando do alto/ os mortais. / Pela primeira vez um homem, um grego, ousou/ levantar contra ela/ e assim a superstição foi deitada por terra/ e pisada aos nossos pés. / E essa vitória nos elevou aos céus”.

A filosofia de Epicuro instrumentalizou Marx num período em que ele, e todos os jovens hegelianos, voltavam suas atenções para a crítica da religião e para o estudo das obras de Strauss, Bauer e dos radicais Hess e Ruge. Estes dois últimos, pouco a pouco, se tornariam os preferidos das jovens gerações de intelectuais da esquerda alemã.

E, mesmo contra as indicações de seu amigo e mestre Bruno Bauer, que recomendava prudência na linguagem, Marx escreveu no prefácio de sua tese: “Enquanto uma gota de sangue bater ainda no coração da filosofia, esse coração totalmente livre que engloba o mundo, ela não deixará de gritar como Epicuro para seus adversários: – Ímpio não é aquele que reprova os deuses do vulgo, mas aquele que impõe aos deuses ideias do vulgo”. Marx asseverava ainda no mesmo prefácio que “A filosofia não dissimula a profissão de fé de Prometeu: – Eu odeio todos os deuses, eles são meus subordinados e deles sofro um tratamento iníquo”.

Os temores de Bauer eram justificáveis, mas para o jovem Marx eram inadmissíveis. Em abril de 1814 adquiriu o grau universitário de doutor com a seguinte nota de louvor: “A tese testemunha tanto (…) inteligência e penetração como vasta erudição, por isso consideramos o candidato digno de excelente”. Os caminhos da cátedra universitária estavam abertos, mas o “destino” cuidaria de traçar-lhe um outro caminho.

(Continua na parte 4)

Augusto César Buonicore, historiador e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e membro dos conselhos editoriais das revistas Princípios e Crítica Marxista. Este ensaio – cuja versão atual foi publicada originalmente em cinco partes na revista Juventude.br (números 1 a 5) – foi escrito há mais uma década e muitas das opiniões nele contidas não correspondem mais integralmente às posições do autor. A motivação principal de sua publicação é oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual inicial de Marx, algo de grande utilidade especialmente para as jovens gerações de comunistas, que conhecem pouco a vida e a obra do fundador do socialismo científico.