O presente livro reúne um conjunto de idéias apresentadas quando da realização, no mês de abril de 2008, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), do seminário “Marx: Atualidade e Controvérsia”. Esse seminário pretendeu, em parte, recuperar o interesse intelectual e institucional que um autor como Karl Marx parece ter perdido, em razão dos modismos que invadem a grande área de humanidades.

Pensador profícuo e original, nada em sua vida pode ser contado sem a força de seu espírito de vanguarda e de sua energia intelectual criadora. Pensador hábil e sagaz, Marx colocou em outras bases o debate intelectual sobre a natureza das ordens histórica, social e econômica. Em razão de seus ideais, críticos e simpatizantes veem-se há pelos menos 150 anos em um embate ferrenho sobre a natureza das motivações humanas e suas realizações.

Contemporaneamente, o seminário realizado na UFSM procurou atender a solicitações dos dois grupos acima referidos. De um lado, o público simpatizante do pensamento de Marx a reclamar o justo lugar que suas ideias deveriam ocupar no debate contemporâneo. De outro lado, os céticos, nem tão otimistas sobre a viabilidade de tais ideias, a ensejar o momento de defender esta hipótese há muito interiorizada como convicção: os tempos mudaram e, com isso, o pensamento marxista tornou-se obsoleto.

O evento reuniu cinco professores-pesquisadores da UFSM, de diversas áreas de conhecimento — História, Economia, Sociologia, Filosofia e Ciência Política. Nesse sentido, os capítulos do livro que ora se apresenta correspondem a ensaios que condensam as reflexões apresentadas por cada um desses profissionais. As intervenções feitas por alguns deles vão na esteira dos que enxergam na teoria e na metodologia marxistas um manancial ainda não esgotado de conceitos a conduzirem as investigações contemporâneas. Os demais conservam, em seus textos, um olhar crítico que salienta aspectos considerados incongruentes, seja do ponto de vista da constituição do edifício intelectual estritamente, seja do descompasso entre as idéias e a história política de inspiração marxista. Todos os textos, porém, materializam um olhar contemporâneo sobre o legado do pensamento de Marx, tentando responder a algumas das indagações mais básicas e sensíveis à formação das ciências humanas como um todo e dos sistemas explicativos da modernidade.

No capítulo primeiro, intitulado “Problematizando uma sedução discursiva antimarxista: pós-estruturalismo e atualidade do marxismo”, Diorge Konrad discute as várias concepções de História no bojo de uma propalada crise paradigmática e/ou epistemológica que devassa as ciências sociais, em geral, e a historiografia, em particular. Como historiador marxista, tenta compreender as ligações entre a crise no interior do sistema do conhecimento e sua moldura histórica, que aponta para uma crise profunda do mundo. O autor apresenta – e contesta – algumas das críticas mais bem elaboradas ao marxismo, que apontam sua insuficiência para lidar com os novos movimentos sociais, o anacronismo do operariado e da luta de classes, bem como da análise da realidade por uma totalidade dialética, e as limitações de um projeto inalcançável (o da utopia socialista).

Konrad percorre os meandros de uma corrente contrária ao marxismo, a qual ganhou muito espaço nas últimas décadas por sua riqueza e capacidade de persuasão, a saber: o irracionalismo pós-moderno. Essa visão (pós-moderna e pós-estruturalista) dirige um ataque frontal à concepção de ciência da História de Konrad. Daí o desafio que coloca para si: relativizar os argumentos de tal corrente, para fazer emergir uma ciência da História marxista ainda mais robusta. Os pós-modernos centram seu enfoque nas noções de simulacro e de representação, bem como na ênfase da realidade enquanto fragmento e microrrealidade, elegendo o método da análise de discurso e da interpretação do simbólico como senhas para a obtenção de imagens parciais e transitórias, mas suficientes, do real. Apregoa-se o declínio das grandes narrativas e da impossibilidade das totalizações teóricas de outrora, como a marxista. A História, nesse contexto, passa a não ser mais aceita como ciência, mas como uma forma de conhecimento mais próxima da literatura. Nessa balada, ecoa o relativismo de valores e a noção da decadência do futuro. Todos esses pressupostos têm como horizonte de crítica o marxismo, visto como projeto político e intelectual em ruínas.

Entretanto, para Konrad “a propalada ‘decadência do capitalismo e da burguesia’ e da teoria de Marx” não tem correspondência com o plano fático: findo o socialismo real, encontramos um mundo em frangalhos, resultado de uma equação entre o global e o local (com os regionalismos e nacionalismos diversos), os quais são sustentados por instituições do mercado de alcance mundial, a engendrar os piores indicadores do humano. E os “vencedores” não podem esconder as feridas da fome, dos conflitos agrários, dos conflitos urbanos, da saúde pública deteriorada, dos riscos (ambientais) a pairarem sobre as cabeças dos vivos. O autor esmera-se na argumentação de que uma metodologia baseada na noção de síntese dialética e totalizante do real é ainda viável, ou, segundo suas próprias palavras, é “incontornável” no tempo presente. É claro, sem os arremedos do dogmatismo, isto é, sem que se confunda totalidade com a possibilidade de um indivíduo conhecer tudo durante o tempo todo ou com a ideia de que, uma vez conhecida a explicação, essa será a mesma para todo o sempre. O marxismo que defende tenta contrapor-se ao dos críticos que isolam uma essência economicista, pois Konrad compreende existirem agentes sociais interessados em sustentar esses amplos processos.

Sérgio Prieb, no capítulo segundo, nomeado “A atualidade de O Capital – 140 anos depois”, reflete sobre o alcance e a atualidade do pensamento de Marx, centrando-se principalmente no Livro I da obra O Capital. Sublinha a descoberta do funcionamento do processo de criação de riqueza privada capitalista e o modo pelo qual Marx desviou a análise da esfera de circulação para a dimensão da produção, isto é, para o chão de fábrica, lócus das contradições agudas do capitalismo. A pesquisa de Marx tem seu início no que parece mais visível, a saber, a análise da mercadoria e de suas propriedades constitutivas, por apresentarem valor de uso e valor de troca. A inovadora Teoria do Valor de Marx recupera a categoria trabalho como central para a construção da identidade do humano, a fim de desvelar as relações humanas e de estruturação do mundo real, além de seu desenvolvimento. O valor das mercadorias é determinado pelo trabalho realizado em produzi-las, haja vista o trabalho ser, ao mesmo tempo, determinante de valor e de medida de valor e o lucro do capitalista, nada mais do que uma parcela da jornada de trabalho não paga ao trabalhador. Para além da utilidade das coisas traduzidas em preços, o valor está no tempo de trabalho exigido para a produção das mercadorias. Prieb vê em Marx a força teórica desmistificadora do papel dos indivíduos no processo objetivo, que faz com que esses mesmos indivíduos percam determinados sentidos, para ver o mundo como é e descobrir seu lugar nele.
O autor testa a validade do modelo de Marx no presente, tendo por horizonte a hipótese de que, com a terceira revolução industrial, a tecnologia assumiria o papel do trabalho como produtor de riqueza capitalista e de que a classe trabalhadora estaria fadada a desaparecer juntamente com o próprio trabalho. Seria o tempo do fim do trabalho como experiência central da vida individual e coletiva, assentado nos indicadores da emergência da sociedade do tempo livre. O que se vê, segundo o autor, é, contrariamente, um acentuado aumento da população trabalhadora no mundo todo, acompanhado do fenômeno mundial da diminuição da produtividade do trabalho, negando, assim, a máxima de que as inovações tecnológicas estariam conduzindo a uma expansão brutal da produtividade do trabalho e a um número menor de trabalhadores. Prieb discorre sobre as formas sofisticadas e perversas de superexploração do trabalho e sobre sua precarização criativa — flexibilização do trabalho pelas empresas, empregos temporários, subcontratação (em que os salários são mais baixos e os direitos dos trabalhadores cada vez menores), terceirização, trabalho informal e seu enraizamento nos países do terceiro mundo.

No capítulo terceiro, intitulado “Do ideário de Marx às práticas socialistas: desvio doutrinário ou decorrência lógica?”, Reginaldo Perez analisa o que para ele é um fato dado, a saber: o retraimento das esquerdas de inspiração marxista. O autor percorre os caminhos que levam a uma sintomatologia da crise do marxismo nas dimensões teórica e política, observada seja no plano de uma “crítica endógena: socialistas versus socialistas”, reveladora de um mal estar no interior do próprio campo marxista, seja no plano da “crítica exógena: liberais versus socialistas”, no veio liberal do debate. Perez espera provar que o marxismo, no sentido amplo de projeto intelectual e político, apresenta grandes dificuldades na origem, apontando os últimos 100 anos como a prova inconteste desses desequilíbrios no modelo.

Para o autor, a crítica endógena que sublinha a desconexão entre a teoria e a prática marxista evidencia o desvio doutrinário, enquanto a crítica exógena destaca incongruências, presentes desde a gênese dessa teoria, que contaminariam o conjunto das formulações de Marx. A crise ideológica do socialismo tem, assim, de acordo com Perez, origem no interior de seu próprio corpo doutrinário. Nesse sentido, as formulações mais sofisticadas dessa crise já estariam presentes nas teorias da esquerda antes da Revolução Russa de 1917. A ortodoxia propunha que o partido faria a revolução em nome da classe operária, em um formato de institucionalidade que se designou de “centralismo democrático”.

As críticas à ortodoxia retinham um conteúdo reformista, constituído ora por uma substância democrática, ora por um viés elitista. Esses conteúdos políticos se reportam às tensões entre vontade e ciência, elitismo e violência, bem como a teorias e programas sobre o partido e a revolução. A partir disso, recoloca-se a crítica a questões relativas à representação e/ou participação popular, aos marcos institucionais requeridos e à relação entre democracia e socialismo, entre justiça e mundo igualitário. A postura resignada de Perez é incontornável em face dos entulhos deixados pela elite burocrática do socialismo real.

A crítica liberal ao discurso marxista desconfia dos fundamentos da ação e intenção humanas em Marx, porque ele se encontra preso a equívocos sobre o modo como se daria a passagem do capitalismo para uma revolução. A idealização do transcurso histórico e os pressupostos políticos que levariam à estação final da história, onde se encontraria um homem emancipado, não apresentam correspondência com o plano fático, a não ser no reino dos regimes socialistas, com seus malabarismos semânticos para salvar a teoria. Perez retoma, sob a ótica da política, o caráter imponderável da hipótese do condicionamento do conjunto da vida social (incluindo a esfera da política) pela infraestrutura (sua lógica e instituições). Marx opera um reducionismo inaceitável da política, porque propõe sua quase extinção, diria eu, interpretando Perez. No ponto derradeiro de sua argumentação, o autor dirá que o marxismo “serve como um meio à decodificação de uma modernidade determinada pelo mercado e por suas peculiaridades”. Na perspectiva de Perez – que não pretende de modo algum extinguir o marxismo –, o pior dos mundos é aquele do qual temos uma única visão.

No quarto capítulo, intitulado “Explicação e Paixão em Marx”, João Vicente R. B. Costa Lima contextualiza o debate contemporâneo das ciências sociais sobre Marx, no respeitante às querelas epistemológicas que se constroem a partir de seu pensamento. Essas compreendem dois planos: (a) o plano do discurso, que se refere ao modo de argumentação mais especulativo, antepondo a persuasão à predição; e (b) o plano da explicação, que opera sobre evidências empíricas, por meio de lógicas indutivas e dedutivas, de explicações baseadas em leis gerais e em métodos através dos quais essas leis podem ser verificadas ou refutadas.

Lima propõe um dilema que, para ele, povoa o conjunto dos escritos de Marx: a convergência entre aspectos explicativos e a paixão no interior de sua teoria social e de seu ideal político projetado. Para o autor, se, por um lado, é perceptível que Marx se esmera na atitude de explicar o mundo por ele mesmo, por outro, nota-se que suas considerações se dão à luz de certo estatuto moral, gerador de obstáculos à análise objetiva que sempre pensou realizar.

Lima se utiliza das teorias sociais de Max Weber e Emile Durkheim para analisar a teoria de Marx, não com o intento de ignorar a coerência interna do sistema desse autor, mas para lhe cobrar substâncias que se encontram em outras formas de pensamento. De acordo com o autor, as teorias novas de Weber e Durkheim postulam novos aspectos da relação ação/estrutura e das condições sociológicas de produção de conhecimento, de maneira que tornam mais visível as inconsistências do projeto de Marx.
Lima prossegue a discussão sobre a teoria social e sociológica do conhecimento de Marx (de sua crítica exatamente), comentando as considerações de Geovani Sartori e de Raymond Aron. Segundo o autor, esses estudiosos não-marxistas reagem basicamente à centralidade dada por Marx à esfera econômica, sob os protestos, é claro, dos marxistas. As novas correntes sociológicas vão postular que a função econômica é parte de um ordenamento simbólico, político e societário, que está submetido às forças de determinação econômica, mas que, ao mesmo tempo, apresenta graus de autonomia e independência. A sociologia contemporânea pendeu predominantemente para uma institucionalidade e para uma ética do fazer sociológico de espírito durkheiniano e weberiano, em que se delimita uma separação entre o desejo de mudar a realidade, baseado em valores, e seu conhecimento estrito. Não cabe ao sociólogo dizer no que as pessoas devem acreditar, em termos de moral, nem mesmo à crítica “científica” julgar os fundamentos morais das ações dos indivíduos no cotidiano.

Na sociologia contemporânea, são conhecidas algumas iniciativas que buscam mapear aspectos analíticos do modelo de Marx, de maneira a minimizar os componentes de paixão e de vontade de mundo[GMC1] , como, por exemplo, no caso do marxismo analítico. Contudo, o humanismo de Marx tem o seu lugar como fundamento de uma crítica das instituições contemporâneas.

No quinto e último capítulo, nomeado “Marx e a violência revolucionária: problemas e conseqüências morais e políticas”, Ricardo Di Napoli elabora uma contundente crítica à defesa da violência política observada no pensamento de Marx, notadamente na noção de necessidade da “revolução” ou no emprego da violência como um dever moral. Para tanto, Napoli sustenta que, entremeados aos conceitos de luta de classes e de ideologia, os quais se fundamentam em certo determinismo econômico amparado numa visão de totalidade e de vontade (coletiva), subjazem elementos de uma teoria política redutora. O autor propõe que as experiências históricas revolucionárias posteriores, de inspiração marxista, produziram novas iniquidades, além de violência contra os seres humanos. Napoli identifica essa tensão no interior do pensamento de Marx, desde o momento em que esse, na crítica da ordem econômica e social, concebia como inevitável a destruição da ordem política liberal e de todas as suas instituições. Napoli mostra o quanto lhe é caro o parâmetro teórico e político da democracia liberal representativa, uma vez que se constitui em meio para a preservação da liberdade e antídoto contra os males dos totalitarismos socialistas à espreita.

Uma indagação permeia a análise de Napoli: guardaria o historicismo de Marx elementos de certo fatalismo, a retirar dos homens as faculdades de ser livre, de tomar decisões e de mudar as dinâmicas e instituições nas quais está inserido? Assim, o problema da ação política e de sua relação com a idéia da violência revolucionária, de posse de um chamamento para a libertação vindoura dos homens, fez com que Marx e os marxistas negassem e minimizassem as perseguições e mortes que os processos revolucionários produziram. O caminho de mão única estava legitimado como doutrina essencial para a compreensão do processo histórico.

Ao final, Napoli vê virulência e correspondência entre os rudimentos de uma filosofia política autoritária e o uso da violência política sob a máscara de legitimidade popular. Napoli pode, então, descansar sobre os pressupostos que o orientam: só nas democracias liberais pode-se buscar uma melhor conciliação entre liberdade e igualdade, a despeito das imperfeições de suas facetas ocidentais.

Certamente o leitor não encontrará nos textos dos autores que compõe este livro verdades últimas sobre o pensamento do controverso Marx. Os autores almejam mais reconstituir um espaço de debate, abrindo-se aos contrastes naturais do mundo das idéias, do que se fecharem nos pequenos reinos de seus próprios pensamentos.

Ademais, possa o leitor tirar suas próprias conclusões, conceber para si um novo quadro mental, recuperando, retroagindo, criticando, inovando e, mais importante de tudo, sentindo-se parte ativa do processo rico e diverso de situar-se em um mundo que precisa ser mais bem compreendido – processo esse que requer a compreensão do conjunto. Caberia aqui lembrar, então, o prefácio da 2ª edição de História da Loucura, em que Foucault discorre, dentre outras coisas, sobre o papel ativo do leitor no processo envolvente da leitura de uma obra. Foucault esforça-se para tirar do autor a pretensão de ser o centro de todo o processo intelectual. Para tanto, defende a autonomia da obra, desejando que ela, ao ser tomada como objeto-evento pelo leitor, acabe por se fragmentar, se repetir, se duplicar, se refazer.

Para encerrar, talvez possamos estender os limites da assertiva de Foucault, utilizando-a também para caracterizar o pensamento de Marx. Tal como no ideal de obra daquele, os escritos deste não parecem estar sob o jugo da tirania da intenção, uma vez que dificilmente poderão ser compartimentados em um único sistema de conhecimento e de poder. O maior legado de seu pensamento talvez seja, assim, o de descentrar os críticos e simpatizantes dos lugares seguros de interpretação, gerando um estímulo formidável: parecer a uns possibilidade real de compreensão e a outros um compêndio de ideias fora de lugar, mantendo-se sempre, porém, como um sistema de pensamento que continua a nos estimular com grande intensidade até os dias de hoje.

Santa Maria, novembro de 2008

João Vicente R. B. Costa Lima