Com o apoio de Jobim, a FAB quer sustar anistia a cabos de 1964
Formalizada com base em um parecer técnico da Advocacia-Geral da União (AGU), a portaria interministerial assinada por Cardozo desprezou a existência de documentos secretos da Aeronáutica, nos quais se explicita o caráter de perseguição política das medidas tomadas em 1964 contra os cabos. Também expôs uma completa mudança de opinião do ministro da Defesa, Nelson Jobim. Contrário à concessão das anistias no presente, Jobim deu um voto favorável às indenizações em abril de 2003, época em que ainda ocupava uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF).
A origem das reivindicações dos militares anistiados é o ano de 1962, quando o universo de praças, cabos e sargentos das Forças Armadas passaram a constituir associações de classe e a pleitear direitos políticos e individuais, até então negados. Uma delas era a Associação de Cabos da Força Aérea Brasileira (Acafab), ativa participante dos eventos políticos ligados à esquerda anteriores ao golpe de 1º de abril de 1964.
Em setembro daquele ano, o ditador Humberto Castelo Branco baixou a Portaria nº1.103 para expulsar da Aeronáutica todos os integrantes da Acafab. Na sequência, a FAB abriu um procedimento interno e passou a produzir normas por meio de boletins secretos. Esses documentos, recuperados pelos cabos afastados e enviados a CartaCapital, demonstram como foi pavimentado o caminho para outra portaria, a nº1.104, também de 1964. A norma alterou as regras de reengajamento até então válidas nas Forças Armadas, limitando o tempo de serviço dos cabos em, no máximo, oito anos. Eliminou, assim, qualquer possibilidade de surgimento de novas lideranças ligadas à Acafab na Aeronáutica.
Nos boletins reservados, o assunto é tratado pelos oficiais como o “problema dos cabos”. Em um deles, de 11 de maio de 1965, lê-se o seguinte: “É recomendável que sejam tomadas medidas para prevenir que se organizem outras entidades de caráter tendencioso como a ‘Acafab’”. Mais explícito, impossível.
Entre 2002 e 2006, a Comissão de Anistia ocupou-se em analisar o conteúdo da Portaria nº 1.104. Desde o início, considerou-a um ato de exceção com o objetivo político de expurgar militares considerados subversivos pela ditadura. Com base nessa avaliação, por decisão da Comissão de Anistia, os cabos atingidos pela medida foram anistiados e receberam indenizações retroativas, referentes aos postos que ocupariam caso tivessem seguido carreira na Aeronáutica, além de soldos mensais – boa parte deles, pensões a viúvas – agregados à folha de pagamentos do Ministério da Defesa. Uma despesa de aproximadamente 12 milhões de reais por mês.
Em 2003, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, enviou o assunto à AGU. No mesmo ano, o ministro da Defesa, José Viegas Filho, em acordo com Bastos, fez um ajuste para que fossem anistiados apenas os cabos que ingressaram na FAB antes de 1964. Assim, 495 anistias acabaram revogadas, embora os atingidos pela medida garantam ter entrado na força sem receber informações sobre os detalhes da Portaria nº1.104.
Um deles foi Océlio Gomes, de 61 anos, que sentou praça na Aeronáutica em 1968 e de lá foi expurgado, no posto de cabo, em 1976. “Eles (o Ministério da Justiça) partiram para cima da gente para satisfazer os militares, mas não adiantou nada”, avalia Gomes, atualmente corretor de imóveis no Rio de Janeiro. “Agora os militares passaram por cima de todas as evidências e vão querer rever as anistias, não só a dos cabos.”
Gomes é tesoureiro da Associação Democrática e Nacionalista de Militares (Adnam), entidade presidida pelo brigadeiro Rui Moreira Lima, de 91 anos, um dos últimos heróis da FAB (lutou na Segunda Guerra Mundial). Assim como eles, os técnicos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça estão apreensivos. A decisão de rever os processos decorrentes da Portaria nº 1.104 abre uma brecha para interpelações à política de anistia. “O interessante é que assassinos e torturadores não foram nunca incomodados, prosseguiram em suas carreiras e nem sequer foram identificados”, avalia o capitão de mar e guerra da reserva Luiz Carlos Monteiro, diretor da Adnam. “Para esses, o STF manteve a Lei da Anistia intocada.”
Em 2006, com base em denúncia anônima, o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu uma investigação sobre o processo de concessão de anistias. O Ministério da Defesa aproveitou a oportunidade e reafirmou considerar que a Portaria nº 1.104 tivera caráter administrativo e não visara perseguir politicamente os cabos. A Comissão de Anistia viu-se obrigada a realizar uma auditoria. Em seguida, Jobim, que no STF havia votado a favor das indenizações, abraçou com fervor a tese do comando militar e encaminhou ao Ministério da Justiça o pedido de reavaliação dos pagamentos. O então ministro Tarso Genro rejeitou o argumento.
Vale a pena registrar a mutação de Jobim. Quando ministro do Supremo, anotou: “Na prática, muitas dessas punições, supostamente disciplinares, tinham, na verdade, o caráter nitidamente político”. E mais: “O conteúdo político da mencionada portaria é induvidoso, pois editada num momento histórico em que se procurava punir os oficiais considerados subversivos, por suas concepções político-ideológicas, através de mascarados atos administrativos”. Qual opinião de Jobim vale: a de hoje ou a de antes?
Durante a campanha eleitoral, o caso permaneceu engavetado. Mas voltou à tona neste início de governo Dilma após o parecer da AGU. A análise burocrática do caso desprezou os documentos apresentados pela Comissão de Anistia, inclusive os despachos secretos da FAB e o voto de Jobim no STF. Recém-chegado, Cardozo parece ter optado por uma alternativa que lhe garante algum tempo. Pela portaria da quarta-feira 16, criou um grupo de trabalho de revisão formado por nove integrantes, cinco dos quais lotados em seu ministério. Não há prazo para o encerramento da comissão.
Fonte: CartaCapital