Sou frequentemente cobrado por meu tom ácido e agudo diante das opções que o Brasil tem feito, de forma sistemática, desde a década de 1990. Pessoas próximas a mim alegam que o Brasil “voltou a crescer”, que a produção industrial está em alta, que ano passado tivemos a maior taxa de crescimento dos últimos 30 anos e o país beira a uma situação (quase) inédita de “pleno emprego”. Tudo isso, argumentam, diferencia-se do passado, pois o “Brasil cresce distribuindo renda”.

Não vou, neste espaço, discutir os lucros astronômicos dos banqueiros e sua relação (desproporcional) com a política de “distribuição de renda”, nem que a taxa de crescimento nacional médio dos últimos oito anos é mais baixa que a média internacional do período (e um pouco acima dos tempos de FHC) e que o pleno emprego é uma realidade que está aí, mas sob a égide de empregos de baixa qualidade e baixa gradação salarial. Enfim, não discuto com fanáticos e a conjuntura é propícia – convenhamos – à proliferação deste tipo de comportamento religioso.

De fato, a situação atual no Brasil é um caso interessante. Um país que insiste em crescer, apesar de ajustes fiscais, política cambial e de juros que beiram a insanidade e uma política tributária que serve a tudo, menos a uma distribuição de renda mais séria e à indução de todo o potencial encerrado em nossa dinâmica iniciativa privada. Mais, o Brasil tem desmentido ano a ano, década a década aos prognósticos mais sombrios, a começar pelo dinamismo precoce de nossa agricultura que no século XIX foi capaz de inundar o mundo de café e hoje contamos com um parque pecuário capaz de alimentar três vezes a população do planeta.

Na época do golpe de 1964, pensadores que até hoje são diariamente homenageados e panegiricados davam conta da não possibilidade de desenvolvimento a partir então. A teoria da dependência que ainda impera no pensamento social brasileiro dava conta – para aquele período e ao atual – a máxima para quem, o imperialismo havia retirado o “convite ao desenvolvimento” do Brasil.A história tratou de mostrar o contrário e, com convite ou sem convite, em 1979 já dispúnhamos do oitavo parque industrial do mundo. Em 2003, idem. Os estagnacionistas davam como favas contadas a entrada do país em recessão com o aprofundamento da utilização dos juros para estancar a inflação.

Não aconteceu, apesar de somente a partir de 2006, as coisas em nossa economia terem melhorado com a entrada dos bancos públicos no mercado de crédito e os incentivos governamentais diante da crise externa. Não é de assustar que no auge do banditismo neoliberal no Brasil (governos FHC), o crescimento esteve longe de ser negativo, com média de 2.6% no período e com taxas de juros (SELIC) que bateram no teto de 45%. O país resistiu a tudo isso…

Enfim, explicar esse tipo de “grande movimento” com jeito de processo histórico e engendrador de leis objetivas à nossa própria formação social é um desafio nada simples. O que se pode aferir, em algumas palavras, é que em matéria de desenvolvimento (econômico e social) não existe grande margem para invenções. Tudo obedece a leis objetivas do processo de desenvolvimento. Nada inventado ou reinventado seja nas greves do ABC em 1979, seja na primeira eleição de Lula em 2003.

Atraso, dinamismo e paradoxos históricos

Um exame não-dialético do desenvolvimento histórico de nosso país poderá corroborar teses que dão conta de certa falta de organicidade histórica no encaminhamento de soluções aos problemas nacionais. Em outras palavras, não faltam aqueles para quem o “Brasil é uma grande bagunça, algo inexplicável”, ou mesmo, pessoas com comportamentos influenciados por uma conjuntura internacional complicada que possam repetir a prosa de que “esse país não é sério”.

Vejamos, não é realmente fácil de entender que o filho da dona Maria, a Louca proclamou nossa independência, muito menos que a filha do imperador aboliu a escravatura. Explicações simplistas da história nacional, não dão conta de explicar como um latifundiário feudal (Vargas) pode romper com a Inglaterra e fundar a nossa indústria. Ignácio Rangel, um dos gênios de nossa raça, com seu marxismo radical nos chamava a atenção para o fato de que por aqui criamos uma cultura que combinou elementos portugueses sob o lastro aborígene, ao contrário dos Estados Unidos que partiu para a dizimação de seus peles-vermelhas.

Essa combinação citada explica uma determinada unidade de contrários explicitada por Rangel em sua teoria da “dualidade básica da formação social brasileira”. Uma unidade de contrários que deu relevo à transformação em lei objetiva de nossa formação social da relação entre atraso e dinamismo. Logo, em franca oposição aos postulados da moda para quem nosso país é um mix de atraso e estagnação.

Interessante notar neste caso como o desmonte do complexo rural brasileiro, ao mesmo tempo em que criou condições para o surgimento de pequenas oficinas (departamento 1 artesanal) também não engendrou transformações de fundo nas relações de produção no campo. A lógica feudal do “nenhuma terra sem senhor” se manteve quase intacta ao mesmo tempo, num grande paradoxo histórico, em que nosso país pavimentava seu brilhante caminho no rumo do transito da Idade Média em 1930 à Idade Contemporânea em 1980. Essa lógica feudal tem sido posta em proscrição na mesma velocidade em que o Brasil constituiu um poderoso setor industrial de máquinas e equipamentos e uma indústria química capazes de colocar num outro patamar o nível de produtividade do trabalho no campo.

Transformando, assim, nosso país na maior potência agropecuária do mundo e colocando – internamente – em questão a lógica feudal para quem o poder é determinado pela quantidade de terras de um determinado senhor em prol de uma lógica para quem o poder pode ser proporcional ao nível da composição orgânica do capital, ou seja, de quem produz mais com menos terras.

Superestrutura e base econômica

Prestemos atenção. Analisar os fenômenos somente pela ótica do funcionamento do modo de produção pode ser um exercício um tanto quanto perigoso. Não é suficiente para compreender os impasses nacionais contemporâneos, daí minha insistência na categoria de formação social. Desta forma, acredito, devemos prestar guarida ao fato deste avanço todo verificado no século XX, atualmente não ter plena correspondência quando tratamos de outro campo de análise, notadamente nas contradições inerentes a entre forças produtivas e relações de produção e entre superestrutura e base econômica. Exemplo, apesar de estarmos assentados sob uma base econômica plenamente capitalista, não observamos a mesma correspondência na superestrutura de poder.

Daí termos um senhor feudal como José Sarney (seu bigode e óculos escuros são muito sugestivos) no comando do legislativo brasileiro é só um passo. Sarney não produz uma única agulha, não se conhece uma grande empresa industrial sob seu comando. Mas ele é dono de metade das terras do Maranhão, manda na TV e rádio locais e determina aos delegados de polícia no interior de seu Estado quem se prende e quem se solta. Temos um judiciário que mais se parece uma grande corporação feudal (aumentam seus próprios salários) e uma relação entre executivo e legislativo e executivo com Estados e municípios que nada lembra estas mesmas relações em países capitalistas avançados. A Lei de Responsabilidade Fiscal, a quebra do Pacto Federativo por FHC, a guerra fiscal e o enquadramento, de sua base parlamentar, pela presidenta da República diante da votação do salário mínimo são apenas indícios de que algo está em desarmonia entre a superestrutura e a base econômica brasileira.

Essa superestrutura em desarmonia com a base econômica tem expressão, como tenho dito, no sufocamento da iniciativa privada e na falta de ambiente para a plena realização da indústria nacional. Na vida social esse fenômeno é muito claro no fato de a maioria das pessoas não conseguirem realização profissional pelo setor privado. Passar num concurso virou um sonho de nove em cada dez brasileiros. Deste feitio, não é surpresa supor os perigos para uma nação onde a realização pessoal passa pela via de entrada no serviço público (eis, um dos fatores à débâcle da URSS). Quem de nós não sentimos a diferença em amigos nossos cujo comportamento mudou completamente após começarem a prestar serviços ao governo e ao Estado?

Fato é que a corrupção, antes de ser um fenômeno a ser abordado com preceitos morais é mais uma expressão da falta de correspondência entre base econômica e superestrutura. Na mesma proporção em que a quantidade de terras deixa de ser apanágio de poder é que deve se perceber que a continuidade do poder de gente como Sarney e outros, antes de se assentarem na “propriedade do grande capital” é expressão – também – da utilização do poder e dinheiro público para fazer política. Resumindo: na falta de capital industrial, o dinheiro público passou a ser o fiel da balança à medição de poder. No extremo oposto encontra-se um industrial bem-sucedido como José Alencar, cuja independência financeira feita fora do setor público o colocou em choque constante com a política monetária em curso. Ele não foi enfeudado pelo sistema financeiro, nunca precisou disso.

Paradoxos contemporâneos

Realmente não é fácil entender, ao mais desavisados, como um país ainda mantém patamares mínimos de crescimento e baixos índices de desemprego diante de contradições que nos impele ao sentido oposto. A lógica do “atraso x dinamismo” explica algo, como o fato de um trabalhador conseguir algum dinheiro emprestado e tocar sua vida com uma banca de doces na porta de escolas. É muito viva e presente em nossa sociedade a herança empreendedora (self made man) a nós colocadas pela imigração européia, sobretudo alemã. Ao lado de fatores desta natureza está uma imensa constelação de recursos naturais e uma demanda indiana e chinesa capazes de dar cabo à nossa agropecuária e mineração. Em tais condições o pleno emprego e índices que variam de 3,5% a 5% de crescimento econômico anual estão na ordem dos acontecimentos.

Sim meus amigos, O Chile ainda é objeto de propaganda do quão positivos são os resultados para quem cultiva princípios neoliberais e a transforma em política de Estado. Mas, o Brasil está no mesmo caminho: as coisas podem continuar a andar por aqui, mesmo com essa orientação macroeconômica.

Estamos nos tornando um Chile (inclusive na proscrição da indústria) em proporções gigantescas, pois o Chile não é o Brasil e o nosso país é tão rico que podemos sim nos tornar a quinta economia do mundo baseada somente na exportação de commodities e sob o imenso lastro financeiro do petróleo localizado na camada de pré-sal. Independente da situação periclitante de nossas contas externas, no médio e longo prazos a tendência é sobrar dinheiro para pagar salário mínimo e bolsa família para mais de 120 milhões de pessoas e ainda corromper políticos afeitos a uma “acumulação primitiva” no setor público e assim manter a “governabilidade” do projeto social-monetarista (alta rentabilidade para os fundos de pensão, bancos, rentistas e uma sobra capaz de manter o povão com suas três refeições diárias e uma pizza com a família na sexta-feira a noite). É o que chamei recentemente de “desindustrialização com distribuição de renda”.

Neste sentido, o projeto social-monetarista é uma continuação do projeto contrarrevolucionário iniciado com a eleição de Collor em 1989. Existem sim, continuidades e rupturas neste processo, mas a essência é a mesma (“combate à inflação”, “estabilidade monetária”, “corte de gastos”, arrocho de demanda via juros e câmbio flutuante) e desembocará – necessariamente – na perda de relevância do Brasil em projetos como o da integração sulamericana (os chineses com seu capital sobrante poderão tocar este processo de forma muito tranquila). Não nos colocaremos em condições plenas de defesa da paz mundial e de uma ordem multipolar a partir de uma poderosa indústria e da construção de uma bomba nuclear; afinal nas chamadas "relações internacionais" quem leva à sério países com parque industrial de porte médio e sem bomba nuclear?

Já as esquerdas brasileiras deverão se contentar em tomar seu pequeno papel atual de colocar no centro de seus projetos a defesa das mulheres, dos negros, homossexuais e da aplicação de “políticas públicas” e o combate à miséria ou vão tomar seu devido lugar como um dia definiu Gramsci de ser o “Príncipe Moderno”, o modernizador (a exemplo do Partido Comunista da China) em primeira e última instância, colocando que fora dos marcos da transformação do país em uma poderosa potência industrial não existe solução consistente tanto para os problemas das mulheres, negros e afins nem tampouco para a edificação do socialismo sob sólidas bases materiais?

Em meio a este complexo histórico – onde o próprio filho de Maria, a Louca proclamou nossa independência, a filha o imperador libertou os escravos e um senhor feudal deu estarte em nossa industrialização – existe espaço e imaginação para compreender as razões de um partido social democrata de tipo obreiro estar à testa do processo de desmonte de todo um esforço nacional (industrialização) iniciada, por incrível que possa parecer, por um senhor feudal gaúcho altamente conservador, porém nacionalista e capaz de dar se suicidar ante a pressão do imperialismo em defesa de seu país e seu futuro.

Paradoxos nada aparentes…

*Elias Jabbour é doutor e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois