O MUNDO QUE CRIAMOS
Tenho o costume de acordar cedo.
Faço isso um pouco pelo trabalho, um pouco por hábito. Ao sair de casa, passo em uma padaria próxima para ler o jornal do dia e tomar um café com leite acompanhado de um pão com presunto, queijo e manteiga. O local é simpático e isso contribui muito para preparar o meu humor para um dia cansativo e, geralmente, cheio de trabalho e afazeres. Quando estou na padaria (ou em qualquer lugar), me preocupo bastante em observar as cenas que o acaso oferece à nossa vida. Numa dessas observações, algo me chamou atenção. Um momento, que, durante dias, morou em meus pensamentos por seu simbolismo e, também, por sua complexidade social.
Era pouco mais de oito da manhã. Estava eu sentado em uma pequena mesa localizada próxima ao balcão onde as pessoas, neste horário, costumam formar uma pequena fila para comprar pães. Eu lia um jornal de que trazia uma matéria sobre a modernidade e seus benefícios, falando sobre os avanços que o mundo atual trouxe para nossas vidas, como a comunicação instantânea (por exemplo) e pensando sobre o quanto o dia-a-dia nas nossas cidades é realmente “avançado”, no que diz respeito ao acesso irrestrito ao direito à cidade e às relações de convivência social. Foi nesta hora que resolvi, como num passe de mágica, prestar atenção nas pessoas que compravam pão.
A primeira a fazer o pedido era uma moça de aproximadamente quinze anos, que pediu sete pães. Demonstrava certa sobriedade e tímida alegria ao fazer o pedido. Depois dela, foi a vez de um senhor que, sem tirar os olhos das manchetes do jornal sobre o balcão, pediu doze pães e algumas bolachinhas de polvilho. Até aí, tudo parecia normal: uma padaria que vende pães para as pessoas tomarem café-da-manhã. O que poderia acontecer de incrível em um lugar desses para ser descrito neste espaço a você, nobre leitor?
A terceira pessoa da fila era uma mulher jovem, aparentava uns vinte e cinco anos de idade e, pela minha análise, era uma profissional da saúde, devido a suas vestes brancas características. Ela percebeu que eu estava olhando (e a atendente também) para acompanhar os instantes que marcam o momento do pedido.
O mundo ficou em câmera lenta.
Eu percebia um ar trêmulo. Um leve suor. A chave do carro que não parava em apenas uma das mãos, mas era jogada de uma para outra, como se quisesse jogar para o espaço a fora algo ruim que a atormentava. Vi nela um sorriso envergonhado por algum motivo que, em um piscar de olhos, se revelaria. Tentou, sem sucesso, dispersar nossos olhares, mas a funcionária da padaria precisava anotar o pedido e eu necessitava ver o mundo e como ele gira. Não podíamos, eu e a atendente, parar de olhar tudo aquilo.
A fila do pão já estava maior, muitas pessoas chegavam com suas caras de sono e seu apetite matinal, enquanto nossa nobre personagem continuava a se preparar para o pedido. A velocidade da projeção da vida aumenta e uma frase reveladora é produzida: “um pão, por favor”. “Um pão?” – repetiu a atendente, com ares de dúvida e espanto – “a senhora quer apenas um pãozinho?”. “Sim” – disse a cliente, agora completamente desconfortável com os olhares que viam de todos os pontos da padaria e do universo. A atendente buscou o pedido, colocou em um saquinho de papel e entregou para a moça. Esta, quase em fuga espetacular, entregou o dinheiro no caixa e desapareceu na imensidão da manhã. O mundo continuou a girar e a fila da padaria continuou a andar. Fiquei somente eu ali, sentado, a pensar sobre aquilo tudo que vi.
Em nosso mundo a solidão passou a ser a regra, e não a exceção. Viver sua individualidade se tornou sinônimo de viver isolado. As pessoas, cada vez mais, moram sozinhas. Envelhecem sozinhas e consideram isso um fenômeno dentro da normalidade, natural, quando, na verdade, é um dos grandes males da nossa sociedade: o isolamento social.
Homens e mulheres abrem mãe de terem família, por menor que seja, em nome de um individualismo exagerado, injustificável. Este isolamento se reflete também nos hábitos alimentares e de consumo, estimulando a má alimentação e a compulsão por comprar produtos inúteis. Reflete também nas relações humanas, reduzindo gradualmente a noção de comunidade e reforçando o “indivíduo” como um “todo” e não como uma parte deste, produzindo pessoas mais tímidas, infelizes e camufladas.
Aquela moça certamente foi para casa comer seu pão e olhar para sua parede preferida, enquanto sua vida caminha, lentamente, para desaparecermos no nada.
Se depender desta sociedade que criamos e alimentamos seremos sempre infelizes. Sempre solitários. Sempre pediremos um pão e acharemos normal. Talvez um dia pediremos um grande amor na padaria. Ou um filho no supermercado. Ou um cachorro na farmácia. Ou um pouquinho de amor próprio em uma boutique. Ou não pediremos nada, só pra não ter que conversar com alguém.
* Luiz Henrique Dias é escritor e tem um medo danado da solidão.