No segundo caso, a indignação pode tanto servir de combustível para a luta por mudanças qualitativas, quanto para o “fechamento da mente” e o obscurecimento do movimento mais geral, histórico e de longo prazo. Convite perfeito para o isolamento e a derrota política. A vida é muito complicada, a realidade por deveras feia. A saída para isto está num olhar mais estratégico do problema, o que inclui a análise do processo histórico, pois sem história não existe solução para uma tática e uma estratégia justas e em conformidade com o nosso tempo e exigências. Ser radical é uma postura que obedece a critérios muito mais de forma que de conteúdo; algo que pode desembocar numa sofisticação da análise que somente a história poderá nos provar sua correção. E geralmente prova.

Não preciso dizer que o raciocínio acima deve ser direcionado quando relacionamos a construção de uma linha política com a conjuntura econômica. Se a democracia e a inclusão social determinam níveis de evolução civilizacional, a macroeconomia expressa a harmonia de um projeto político com esta mesma transformação e o nível de acúmulo de forças seja de uma única força política, seja de um condomínio político. A força do neoliberalismo reside justamente nisso: o nível de acúmulo de forças políticas com clara feição de classe, representando uma época histórica em que a hipertrofia do capital financeiro é a base material da classe que o sustenta. Algo que nem a crise financeira (em andamento) tem sido capaz de proscrever. Daí, no Brasil, é central perceber que a “reorientação da macroeconomia” tem sentido estratégico, não está ao alcance de nossas mãos e vontade. E as coisas em nosso país tendem a serem muito mais difíceis do que imaginamos. Vejamos.

***

Argentina, Bolívia, Venezuela e Equador tem sido grandes exemplos pelos quais tem servido de parâmetros para a análise do futuro. Independente de a Argentina tipificar seu modelo político de “nacionalismo popular”, enquanto os outros do grupo desfiarem loas a um objetivo transformador mais radical, socialista e bolivariana, a realidade é que transformações de fundo estão a ocorrer por aquelas bandas. É a América Espanhola e suas típicas “viradas de mesa”. Nada que lembre nossa herança portuguesa das transformações “para inglês ver” e da capacidade de nossas classes dominantes em adaptarem-se a situações inusitadas. Daí as meias-revoluções serem a tônica das transições lentas, graduais e seguras no Brasil. Espanha é Espanha, Portugal é Portugal. Está aí uma característica a ser posta no cálculo político da estratégia transformadora em nosso país: transição ao socialismo, também, de forma lenta, gradual e segura.

Ao analisar as experiências bolivarianas é mister identificarmos mais a fundo a natureza das classes dominantes (quase) proscritas. Estavam todas assentadas no petróleo e no gás natural. O monopólio sobre essas commodities era a base material das elites dirigentes. Não é exercício mecanicista dizer que a questão nacional nestes países tinha como núcleo a propriedade e o exercício da soberania partindo de novas formas de apropriação das citadas commodities. Do ponto de vista social, o neoliberalismo havia deixado um grande rastro de pobreza extrema, concentração de renda e democracia moribunda nestas realidades onde, também, o racismo é parte da formação da subjetividade do poder e base de uma ideologia de extrema-direita que ainda grassa na América Latina. A chegada de forças populares ao poder nestes países, seguida pela verdadeira nacionalização dos recursos naturais constituíram-se em pesados golpes na “antiga ordem”. Tratam-se de dois momentos interessantes: primeiro, revolução democrática com a chegada de forças interessadas na transformação ao governo; segundo, revolução nacional, com a nacionalização dos hidrocarbonetos, algo como a expropriação da base material da classe dominante, condição objetiva da transição ao socialismo.

Enfim, na falta de uma base industrial sólida e diversificada e de sistemas financeiros que funcionam como a base de uma economia monetária moderna, a apropriação dos hidrocarbonetos desmontou a base material de suas respectivas classes dominantes.

***

O Brasil é um país de trajetória única na América Latina. Nem Argentina, nem México podem servir de comparação. A Argentina da década de 1990 atingiu o fundo de poço de uma decadência iniciada com o fim da hegemonia inglesa na década de 1930. Além da proximidade com os Estados Unidos, a incorporação ao NAFTA levou o México à lona. Já o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo no século passado. Transformou a queda da hegemonia inglesa em base objetiva para uma rápida industrialização e na década de 1960 já contava com o gene de um sistema financeiro diversificado e pronto para se fundir com a grande indústria na década de 1980. Desta forma, manobrar a política monetária no Brasil passou a ser exercício de poder altamente sofisticado. Se no mundo a hipertrofia do sistema financeiro é uma realidade desde o aumento das taxas de juros nos Estados Unidos na década de 1970, esta hipertrofia chega ao nosso país com a utilização dos juros e do câmbio como forma tanto de captar poupança externa, quanto “combater a inflação”. Não se tratou de utilizar o sistema financeiro nacional como forma de reprodução de nossa indústria e, respectivamente, de reproduzir nossa independência nacional a outros patamares.

A política monetária, a serviço desta “acumulação sem produção” é a expressão do poder da classe dominante, a saber: o sistema financeiro, beneficiário direto do repasse de cerca de 30% do orçamento nacional sob forma de remuneração de juros da dívida interna. A eleição de Collor em 1989 e os dois governos FHC constituíram-se nos marcos políticos da cristalização desta superestrutura e da apostasia em relação à Revolução de 1930. A “revolução democrática” iniciada com as eleições e mandatos de Lula e Dilma é a forma acabada de uma meia-revolução à brasileira. Completar este processo, passando a uma dita etapa nacional dependerá da grande disputa que se dá pelo controle da política monetária. O sucesso do governo Dilma é apenas a ponta do iceberg deste processo de longo prazo. Em nenhum lugar da América Latina a consigna de “acúmulo estratégico de forças” tem tanta validade quanto no Brasil. A “grande estratégia” é tomar de assalto a política monetária. Daí a chamada reorientação da política macroeconômica não ser algo, como disse mais acima, ao alcance das mãos. É estratégico, nada tático.

***

Os obstáculos a esta possível nova ordem estratégica não são poucos. Portugal a época de nossa independência já era uma potência em franca decadência. A Inglaterra estava em completo frangalho no pós-1930. Os Estados Unidos de hoje, por mais que se possa advogar seu lento declínio, está longe de representar hoje o que Portugal e Inglaterra representavam para o mundo em 1822 e 1930, respectivamente. A crise financeira que abriu janelas de oportunidades de emancipação política para muitos povos do mundo não foi capaz de subscrever uma reforma mínima do sistema monetário internacional. Ao contrário, recrudesceu a extrema-direita norte americana e não está em plena suficiência as forças motrizes de uma reforma financeira na zona do Euro capaz de dar maior liberdade de manobra macroeconômica à banda pobre da Eurolândia. O poderio chinês, apesar de demonstrar capacidade de formar uma zona gravitacional em torno de si e de sua fortaleza financeira, ainda está muito aquém da força militar e, principalmente, ideológica exercida pelo imperialismo no mundo. Neste sentido, interessante sublinhar que o “sonho americano” ainda é muito presente em praticamente todas as classes médias do mundo.

A impunidade impera nos Estados Unidos. Enquanto milhares de famílias sofrem o desgosto do despejo, as operações com derivativos voltaram ao seu normal pré-crise. Como nos avisa Paul Krugman, as crises tem sido oportunidade – para a elite conservadora – fazer avançar sua agenda privatista, o que redunda em arrocho fiscal aos gastos sociais e renúncia fiscal às grandes fortunas. Um arremedo de liberalismo, diga-se de passagem. Após o saneamento do sistema financeiro, o presidente Obama convocou os proprietários dos 14 maiores bancos para uma reunião. Nenhum apareceu e a agenda da necessária regulamentação financeira foi assim devidamente implodida. Isso independente do recente relatório apresentado pelo Congresso explicitando a grande irresponsabilidade seguida à completa desregulamentação financeira nos EUA. Lá como cá o recado – do sistema financeiro – é sempre bem mandado: “vocês tratem de cuidar das coisas da política e da administração, pois na economia quem manda somos nós”. E se manda na economia manda na política, evidentemente. Como nos dizia Lênin, “nem nas coisas do amor existe espaço para a ilusão”. A superestrutura reflete a base econômica, reflete o poder de quem tem dinheiro. E quem tem dinheiro tem poder.

***

A estratégia da extrema-direita monetarista brasileira é transformar nosso país uma réplica piorada dos Estados Unidos. E as discussões sobre os rumos da reforma política no nosso Senado Federal (a contar a opinião amplificada pela mídia por alguns senadores) aponta para uma tendência onde os assuntos da política e da administração ficam a cargo de um governo de revezamento de algumas forças políticas, enquanto a economia fica a cargo do Banco Central. Democracia e acumulação financeira para alguns grupos e famílias.

Isolar Dilma Roussef é parte desta contenda levada ao pé da letra. Separá-la da “revolução democrática” do período Lula é o método. O poder de fogo monetarista vai além do monopólio sobre a política monetária e atinge o próprio assalto à subjetividade nacional via mídia e “academia” enfeudadas pelo sistema financeiro e sua lógica de “acumulação fora da produção”. A luta renhida contra os desenvolvimentistas teve como égide a ideia-força de “combate à inflação”. Décadas deste discurso produziu convicção e grande senso-comum, tão religiosa como uma jihad. Seu oposto, numa fusão do sistema financeiro com a indústria, no planejamento do comércio exterior e da formação de grandes conglomerados industriais estatais e privados tem resistência encarniçada e motivo de escárnio e desqualificação. É a velha oposição entre o capitalismo de Estado e ultraliberalismo. O capitalismo de Estado, em nosso caso, pode ser o grande relevo de transião so socialismo.

A grande questão é que nossa estratégia de longo prazo de construir o caminho rumo a um novo salto civilizacional ainda engatinha. Engatinhou nos dois governos de Lula. O grande risco está numa regressão dos avanços democráticos iniciados em 2003. Afinal a democracia política só tem conseqüência sob a batuta da expansão industrial. Não existe democracia possível fora dos empregos de qualidade e onde 70% da população depende de até dois salários mínimos. O buraco é muito mais embaixo. Daí, mais uma vez o caráter estratégico desta luta. Algo que demanda acúmulo de forças em sua plenitude, pois mudanças qualitativas não ocorrem ao piscar de olhos. Em nosso caso, infelizmente.

_________

Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.