Mohamed Habib abriu o debate com uma retrospectiva da sistemática ocupação da região por potências ocidentais, particularmente depois da Primeira Guerra Mundial. Com dados, mapas e fotos, ele demonstrou que as causas das atuais revoltas foram semeadas pela partilha decorrente dos arranjos da chamada “Tríplice Entente”, uma aliança militar entre Inglaterra, França e Império Russo, com a participação dos Estados Unidos.

Segundo explicou o professor da Unicamp, os países árabes, então sob domínio do Império Turco-Otomano — aliado dos impérios Alemão e Austro-Húngaro, os líderes da outra parte do conflito mundial —, aceitaram um acordo com a Entente que previa a conquista da independência da região. Acontece, disse Mohamed Habib, que havia outro acordo entre a França e a Inglaterra de partilha daqueles países, da qual participou a Itália a quem coube a Líbia. Isso explica, segundo o professor, as divisas em linha reta das fronteiras árabes, ao contrário de outras regiões em que fatores históricos e acidentes geológicos — rios, desertos, montanhas ou mar — determinam os limites de cada país.

Invasão de tropas francesas

Foram feitas com régua e lápis, segundo o professor, para dividir interesses da França e da Inglaterra. No final das contas, enfatizou, prevaleceu o conluio entre essas duas potências, enquanto o acordo com os líderes árabes, feito à base do “fio de bigode”, caiu no esquecimento. Começou, então, a ocupação do mundo árabe. A liga das Nações, organização que surgiu da Primeira Guerra Mundial com poderes para ordenar as relações internacionais, moldou o caráter “legal” das intervenções com mandatos e protetorados, explicou o professor. Era uma forma de mascarar as ocupações.


Canal de Suez

Mohamed Habib se deteve no caso do Egito, ocupado desde 1882 pelos ingleses para dominar o Canal de Suez, construído pela engenharia francesa que dominou o século XIX. Antes, o país havia sido invadido por tropas francesas sob o comando de Napoleão Bonaparte, expulsas pelo vice-rei otomano Mohammed Ali, considerado o fundador do Egito moderno. As duas potências então constituíram uma companhia bi-nacional para administrar os 163 quilômetros da obra em regime de concessão por 100 anos.

Mudança de 180 graus

Segundo o professor, por conta dessa conturbada história o Egito sempre foi palco de grandes manifestações. Os protestos atuais, disse ele, demoraram por causa da opressão imposta pelo regime de Hosni Mubarak. Mohamed Habib explicou ainda que durante o processo de criação do Estado de Israel, os egípcios se manifestaram, repudiando os métodos que excluíram os árabes das negociações — entre eles uma predeterminação de expulsar a população local dos limites que os novos ocupantes demarcaram.

Com a deposição do rei Faruk e a ascensão de Gamal Abdel Nasser em 1952, o país entrou em um processo fantástico de desenvolvimento, segundo o professor. Foram criadas a agricultura irrigada e a industrialização do país. Nasser também promoveu o movimento pan-arabista e nacionalizou do Canal de Suez dois antes do vencimento da concessão. Considerado herói nacionalista e socialista, foi morto, segundo Mohamed Habib, abrindo caminho para Anuar Sadat. Aí “começou a esculhambação”, segundo o professor.


Gamal Abdel Nasser

Uma mudança de 180 graus pôs o Egito como aliado dos Estados Unidos, cujo marco principal foi o acordo de paz com Israel, os “Acordos de Camp David”, sem a participação dos palestinos. Citou ainda a escandalosa situação do Sinai, onde as Forças Armadas egípcias estão proibidas de entrar. Com o assassinato de Sadat em 1981, o posto de líder do Egito foi ocupado por Hosni Mubarak.


Menahen Begin (Israel), Jimy Carter (EUA) e Anuar Sadat (Egito)

Guerra civil na Líbia

Em seguida, a professora da USP Arlene Elizabeth Clemesha procurou caracterizar o levante popular árabe como vitorioso efetivamente a partir da queda de Mubarak dia 11 de fevereiro de 2011. Segundo ela, trata-se de uma revolução clássica, que vai formando lideranças, levantando demandas em seu processo e derrubando mitos. Estereótipos como o de que os árabes não se organizavam fora dos movimentos islâmicos e não se mobilizavam caíram por terra.

Ela também situou os levantes no contexto mundial de crise do capitalismo e de queda do hegemonismo norte-americano. Citou o exemplo do acordo patrocinado pelo Brasil com o Irã e a Turquia, recebido pela secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, com hostilidade. Não pelo conteúdo, mas pela forma independente dos ditames norte-americanos, segundo a professora. Para ela, outro exemplo de perda de prestígio internacional dos Estados Unidos ocorreu na recente votação do Conselho de Segurança da ONU sobre as ocupações israelenses de territórios palestinos, quando o país imperial ficou isolado.

Já a Líbia, disse Arlene, tem particularidades de guerra civil. Para a professora, trata-se de um caso delicado, que precisa ser analisado levando em conta controvérsias como a natureza do regime e os recentes acordos com as potencias ocidentais. O governo do país, liderado pelo coronel Muamar Kadafi, seria um regime militar nacionalista, mas que precisa de uma melhor caracterização. Segundo ela, a face mais visível da campanha movida pelos Estados Unidos contra o país são os interesses dos conglomerados, com destaque para os petrolíferos.


Protestos líbios

Arlene disse que as manifestações líbias começaram com familiares de presos políticos, engrossadas por deserções do governo. Isso explica porque os revoltosos possuem armas como tanques e mísseis antiaéreos. O resultado é que os conflitos no país, com a decomposição do Estado, vêm se caracterizando por muita violência, dando às manifestações conotação de guerra civil. Para a professora, um complicador é o fato de o país não ter um tecido político organizado. O espaço de poder que se abre vem sendo ocupado por conselhos populares.

Máscara da “ajuda humanitária”

Mas as fontes de informação, como a mídia européia e norte-americana que refletem interesses diversos, não são suficientes para uma visão capaz de caracterizar exatamente a natureza dos fatos. Segundo Arlene, as forças rebeladas não se arriscam a marchar sobre Trípoli, a capital líbia, por avaliar que a correlação de forças militares ainda lhe é desfavorável. Por outro lado, não formam poderes nas regiões sob seu domínio pelo temor de dividir o país.

Para a professora, a questão que mais chama a atenção é a ameaça de ocupação militar comandada pela OTAN. Arlene explicou que a resistência da Turquia, com considerável peso na organização, tem dificultado uma ação imediata. Citou também o caso da Alemanha, outra força que tem manifestado oposição a uma eventual ocupação militar. Para a professora, a Líbia é um caso particular também porque os Estados Unidos encontrariam ali um pretexto para frear os avanços dos levantes nos demais países da região.

O perigo, alertou, é a intervenção ocorrer sob a máscara de “ajuda humanitária”. Daí a importância de se acompanhar cada passo dos acontecimentos e mobilizar forças a fim de repudiar qualquer forma de intervenção. A ajuda humanitária, destacou Arlene, deve ser feita por organizações específicas. A professora finalizou dizendo que o maior medo dos Estados Unidos é que haja na região democracia e soberania.

Quadro político internacional

Em seguida, Ricardo Abreu Alemão, secretário de Relações Internacionais do PCdoB, comentou aspectos das revoltas, começando por situar o estopim dos levantes no contexto de crises sociais decorrentes das dificuldades econômicas daqueles países. Citou o caso do jovem que vendia frutas e legumes e, ameaçado por policiais corruptos, ateou fogo às próprias vestes. Foi a centelha que se espalhou pela pradaria, no dizer de Alemão, lembrando a frase famosa do revolucionário chinês Mao Tse Tung.


Centelha na pradaria surgiu na Tunísia

Para ele, trata-se de um processo com raízes histórias, com potencial para interferir drasticamente no quadro político internacional. Alemão explicou que há processos revolucionários em curso na região, mas relativizou a denominação ao situá-la nos marcos do rigor teórico. O dirigente do PCdoB disse que não é o caso de minimizar a importância daqueles processos, que questionam as relações subalternas com os Estados Unidos e Israel, acentuando a tendência de declínio da hegemonia norte-americana, mas ainda não estão dentro das características revolucionárias definidas por Wladimir Lênin.

Processo revolucionário no Irã

Alemão salientou o papel dos jovens no levante, que são em média dois terços da população local e que não viam futuro diante dos graves problemas sociais e econômicos daqueles países. Para ele, não corresponde aos fatos as versões da mídia dando conta que a internet e o telefone celular foram a base das ações revoltosas. O dirigente do PCdoB fez uma breve explicação sobre o funcionamento da internet, controlado pelos Estados Unidos, e lembrou que o serviço foi cortado nos dias decisivos da revolta no Egito. Lembrou também que, por limitações econômicas, tanto a rede mundial quanto o celular são serviços limitados a uma parcela da população.


Egito: revolta ou revolução?

Ele identificou como aspectos positivos o caráter laico dos Estados, uma conquista histórica que deve ser preservada, e a contestação à presença dos Estados Unidos na região. Segundo Alemão, a política externa norte-americana desenvolve intensa campanha com a finalidade de manter sob o seu controle as mudanças para manter sua influência sobre os regimes locais. Citou o exemplo de Hillary Clinton, que vem se pronunciando sistematicamente em defesa da “democracia” e contra “opressões” aos “direitos humanos”.

Alemão também recorreu á citação do senador norte-americano John Kerry, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, considerado um dos conselheiros mais importantes de Barack Obama para questões geoestratégicas, para quem o império continua pagando um alto preço por ter se agarrado ao regime do Xá do Irã. Segundo ele, o senador disse que os Estados Unidos devem conceber uma política para o Egito. O dirigente do PCdoB considerou que no Irã sim ocorreu um processo revolucionário antiimperialista, apesar das contradições internas que restringe a democratização social.

A situação da Líbia

Segundo ele, é preciso desmascarar a tática de dupla moral dos Estados Unidos, como lembrou o presidente venezuelano Hugo Chávez. Lembrou que fala-se em mortes na Líbia, mas pouco é comentado sobre as mais de 100 mil mortes ocorridas no Iraque ocupado. Para Alemão, merece aplausos a citação da ministra Maria do Rosário na ONU sobre o silêncio em relação a regimes opressores e aliados dos norte-americanos, como o da Arábia Saudita e do Barheim — este último comandado por uma dinastia de mais de 200 anos e base militar dos Estados Unidos.

Alemão comentou também a situação da Síria, alvo dos Estados Unidos e Israel, e do Líbano, que passou por uma crise que derrubou o governo aliado dos norte-americanos e impulsionou uma coalizão da qual participou o grupo armado Hezbolat. São contradições, segundo o dirigente do PCdoB, que se somam às características das revoltas na Tunísia e no Egito, as mais avançadas. Para ele, nestes países há um processo revolucionário em curso que pode ser vitorioso. Não seria, salientou, apesar dos programas avançados, uma revolução de caráter leninista, com a conquista do poder político por outras classes sociais, mas pode ser portas que se abrirão para novos progressos.

O dirigente do PCdoB falou ainda sobre a situação da Líbia, que teve como fator inicial as manifestações nas regiões produtoras de petróleo e gás natural. Começou como guerra civil, definiu. Segundo Alemão, os protestos despontaram como ação planejada até por forças que pertenceram ao regime. Para ele, quem mais ganha com isso são os Estados Unidos. O conflito pode mudar de rumo, disse, mas a tendência não é positiva.

Caráter antiimperialista

Encerrando as palestras, o professor Lejeune Mirhan iniciou a fala pela polêmica sobre a definição de revolução para as revoltas. Segundo ele, ainda é cedo para uma afirmação categórica, mas ressaltou que o processo em curso pode ser caracterizado como revolução democrática e popular. Destacou que na Tunísia e no Egito forças revolucionárias — inclusive partidos comunistas — fazem parte do processo. Se vai ser socialista ou não, é uma questão para o futuro, ressalvou.

Lejeune recorreu ao revolucionário chinês Chu En-Lai, que em 1970 disse que era cedo para avaliar a Revolução Francesa de 1789, para fundamentar sua cautela. Lembrou Carlos Fonseca, dirigente da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que criticou a “esquerda ortodoxa” por uma suposta demora em reconhecer o caráter revolucionário dos fatos na Venezuela e na Bolívia, para alertar que o mesmo não pode acontecer em relação às revoltas árabes.

Para o professor, não se pode ter ilusão quanto ao caráter antiimperialista daquelas lutas. Não ficará pedra sobre pedra na região, enfatizou — apesar das manobras de Barack Obama para manter o controle da situação. Lembrou que os povos árabes lutam contra uma poderosa tríade, formada por Washington, União Européia (UE) e Tel Aviv. Mas, segundo Lejeune, governos e sistemas serão trocados. O modelo econômico fundado nas teses neoliberais será profundamente alterado. E os novos líderes que virão serão forçados a mudar a política em relação ao império.

Ele também destacou que o Islã não é alternativa para o Oriente Médio. Por mais que a mídia insista em mostrar que o conflito é religioso, os fatos mostram que o pano de fundo são razões econômicas, sociais e políticas. Lejeune salientou ainda que duas mentiras caíram por terra nesse processo: que as revoluções em curso não têm líderes e que a internet cumpriu papel principal. Para o professor, apenas 20% da população local tem acesso à internet e 50% possuem celular — ambos desligados nos dias chaves dos protestos.

Quem perde, quem ganha

Lejeune informou que forças patrióticas seculares se aliaram a muçulmanos progressistas, socialistas e comunistas para somar forças e conduzir as revoltas por caminhos progressistas. Segundo ele, a aliança de entidades sindicais, estudantis e de profissionais liberais com partidos oposicionistas demonstra o crescimento do nacionalismo árabe, o pan-arabismo. O professor citou Karl Marx, que ao analisar a Comuna de Paris criticou a recusa dos revolucionários em marchar sobre Versalhes para impedir o contragolpe da reação. Neste caso, afirmou, as massas árabes precisam tomar o processo em suas mãos para impedir retrocessos.


Bandeira comunista tremula no Egito

Para ele, com as revoltas perdem os Estados Unidos, porque os novos governos não poderão se comportar como os anteriores; Israel, que está cada vez mais isolado e terá de aceitar uma solução negociada sobre o Estado palestino; a Al Qaeda, que não emplacou sua tática de violência indiscriminada e a formação de governos teocráticos; os fundamentalistas, que não conseguiram fazer-se alternativa aos anseios populares; o modelo neoliberal, a fincanceirização do capitalismo; e as monarquias absolutistas e os ditadores. Ganham, segundo Lejeune, os reformistas, defensores do nacionalismo árabe, o pan-arabismo; a esquerda; o Irã, que se fortalece em sua luta contra as intervenções imperialistas; e os palestinos, que a médio prazo terão voz para fazer valer seus direitos à soberania.

Lejeune terminou a palestra com a seguinte citação de Andrew Bacevich, professor da Universidade de Boston e analista internacional:

“Durante nove anos os Estados Unidos forçaram uma porta (a “democracia” no Oriente Médio), que não se abre para fora. E mais: essa porta só abre por vontade própria. Os acontecimentos das últimas semanas demonstraram com clareza que não apenas partes importantes do Oriente Médio estão prontas para a mudança, mas também que esse impulso da mudança vem de dentro.”