A experiência foi pedagógica e logo a oposição aos regimes retrógrados, contida a ferro e fogo durante décadas, se alastrou por todo o Magreb e Mashrek. Palavras como dignidade, liberdade, democracia, justiça social, independência nacional, soberania popular, morte aos tiranos, passaram a ser gritadas e cantadas como salmos no belo e sonoro idioma árabe. Uma jornada revolucionária que marca uma época, faz história e certamente muda qualitativamente o destino de milhões de pessoas.

Os meios de comunicação ligados às potências imperialistas fazem grande alarde sobre a rebelião árabe, aparentemente a apoiam, mas, na prática, ao evidenciar o supérfluo e esconder o essencial, aplicam a velha tática do Leopardo, de mudar algo para que tudo fique na mesma. Atraem a atenção do público para o pitoresco e, no máximo, para manobras políticas no quadro da criação de um regime liberal-burguês.

Certamente, as palavras gritadas pelos manifestantes e insurretos em todo o norte da África e no Oriente Médio não têm o mesmo significado quando interpretadas pelas forças revolucionárias e progressistas, que apoiam a emancipação dos povos, e os imperialistas, que visam perpetuar o jugo.

"Novo Oriente Médio"

Por isso, nesta hora todo cuidado é pouco com o emprego de conceitos e expressões. Não é de hoje que o imperialismo estadunidense introduziu na cena política a luta pela "reestruturação" e a "democratização" da região, das quais surgiria o "novo Oriente Médio". Ninguém menos do que George W. Bush transformou essa meta no mantra dos seus dois mandatos. Há dez anos o mais facínora de todos os mandatários do mundo moderno iniciou, pelos meios mais bárbaros, o combate pela "democratização do Oriente Médio", fazendo uma guerra de terra arrasada no Afeganistão.

Menos de dois anos depois, atacou o Iraque, de onde as tropas norte-americanas ainda não se retiraram. Massacraram o povo e cometeram magnicídio. Em 2006, quando o Líbano ardia em chamas, sob os bombardeios da aviação dos sionistas, bandidos financiados e armados pela Casa Branca e o Pentágono, a então secretária de Estado de Bush, Condoleezza Rice, disse que das cinzas nasceria o novo (sic!) Oriente Médio.

Na época, os falcões de Washington não podiam imaginar que a onda de rebeliões poria em xeque as repúblicas ditatoriais e as monarquias retrógradas dos seus acólitos: Tunísia, Egito, Arábia Saudita, Barein, Jordânia, Marrocos, Iêmen et caterva. O objetivo eram os Estados inquinados como "bandidos" : Irã e Síria. Quando se referiam a outras regiões, esses alvos eram acrescidos pela Coreia do Norte, na Ásia, e por Cuba e Venezuela na América Latina.

Para não perder o controle

Bush não está mais à frente da Casa Branca, mas essencialmente a política militarista não mudou, embora muitos se iludam, como o professor José Luís Fiori. Em artigo recentemente publicado, defende que “o projeto do presidente dos Estados Unidos pode revolucionar a geopolítica mundial”.

Os Estados Unidos e demais potências imperialistas não mudam na essência, mas fazem seu jogo tático. Procuram adaptar-se à nova situação. Se a rebelião e a insurreição das massas são inevitáveis, se os tronos balançam e as cabeças coroadas periclitam, os Estados Unidos e seus aliados buscam diferentes formas de transição, experimentando juntas militares pacificadoras, novas constituições e toda a sorte de arranjos liberais, com o objetivo de que a situação não escape do seu controle.

É nessa perspectiva que se deve analisar os acontecimentos na Líbia. Tal como nos demais países, a Líbia também viveu um breve momento de ebulição democrática. Mas, diferentemente de todos os demais países em que estão em curso rebeliões, os acontecimentos subsequentes mostraram que não era de manifestações democráticas nem de uma insurreição popular que se tratava.

As manifestações foram a gota d´água para o início de uma guerra civil e a montagem de pretextos para a intervenção militar estrangeira. O noticiário dos últimos dias está repleto de fatos comprovadores de que muito ao contrário de uma revolução popular, está em curso na Líbia uma operação pré-ordenada, em que se mancomunaram interesses internos com externos.

Kadafi, antigo líder de uma revolução anticolonial, está sendo demonizado. Durante três décadas ele se compôs com forças progressistas e anti-imperialistas no mundo. Ultimamente, fez alianças espúrias com o imperialismo mas não se converteu, como em seu tempo Sadat e depois Mubarak, em fantoche. Não exercendo qualquer controle sobre a Líbia de Kadafi, diante do menor sinal de instabilidade política, os EUA e as potências europeias se movimentam pressurosamente para se apoderar do país e de suas riquezas energéticas.

Pretextos de todo o tipo

A democracia na Líbia é questão urgente a resolver. Mas não virá pelos tanques e porta-aviões dos EUA e da Otan. A luta democrática é indissociável da soberania nacional e da soberania popular. A agressão armada viola os princípios da Carta das Nações Unidas.

Em nome do interesse das grandes potências de açambarcar o petróleo da Líbia, estão sendo invocados pretextos de todo tipo: milhares de mortos, uma centena e meia de milhar de refugiados, proteção a estrangeiros residentes no país, crise humanitária. Nenhum desses pretextos se sustenta. Os mortos e refugiados resultam da guerra civil. O exército se dividiu, uma parte aderiu à oposição. Os dois lados disparam, ferem, matam, provocam êxodo. Quanto aos estrangeiros residentes no país, não se registra qualquer ocorrência. Somente a China repatriou em poucos dias 30 mil trabalhadores sem incidentes.

Nada justifica a intervenção armada dos Estados Unidos e da Otan. A ONU não deve autorizá-la, sob pena de ser responsabilizada por mais uma carnificina. O sistema multilateral, ainda que precário, tem mecanismos que podem ser acionados para ajudar na estabilização da Líbia. A humanidade deve estar vigilante e solidária com os povos da Líbia, de todo o norte da África e do Oriente Médio, na luta pela democracia e em defesa de sua soberania. Os movimentos de solidariedade e os governos democráticos e progressistas não devem permitir que se repita a agonia de um país sob o tacão da Otan, como ocorreu há mais de uma década na ex-Iugoslávia.

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Editor do Vermelho

Fonte: Partido Vivo