Sem saudades de uma certa Amélia
O samba, que faz 70 anos em 2011, sobreviveu ao tempo – é cantado até hoje nos botequins e rodas de samba -, mas Amélia, a homenageada, a "mulher de verdade", que vivia para cuidar da prole, da casa e do marido, mudou de lugar no imaginário da cancioneiro nacional.
Para o pesquisador e produtor Rodrigo Faour, a música brasileira era apenas um espelho do que acontecia no cotidiano. "A mulher era um ser humano de segunda classe, não só no Brasil como no mundo", afirma Faour, também autor de "História Sexual da MPB" (Record). Esse processo, lembra o pesquisador, só ensaiou uma mudança no Brasil a partir dos anos 1970, quando os próprios compositores começaram a vestir a camisa das mulheres, escrevendo letras que expressavam os verdadeiros anseios femininos – afetivos e sexuais – e utilizando também a sensualidade como força autoafirmativa da mulher na sociedade.
Mas os tempos de "Ai, Que Saudades da Amélia" eram outros. Foi composta em pleno Estado Novo (1937-1945), o período ditatorial governado por Getúlio Vargas. Vargas, "o político das reformas trabalhistas" não via com bons olhos os sambas que enalteciam a figura do malandro – o homenageado deveria ser sempre o trabalhador, o "chefe de família" e, claro, a mulher "do lar".
A preocupação era tanta que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o órgão de censura de Getúlio, chegou a vetar, em 1940, o samba "O Bonde de São Januário", de autoria do próprio Ataulfo (em parceria com Wilson Batista). Getúlio nem levou em conta a sua antiga amizade com Ataulfo: chamou o samba de "apologia à vadiagem" e exigiu que Ataulfo trocasse a palavra "otário" por "operário". Ataulfo acatou imediatamente o pedido. Faria a vontade do presidente e não perderia a rima. Ficou assim: "O Bonde São Januário/ Leva mais um sócio operário/ Sou eu que vou trabalhar…" Um ano depois, quando compôs "Ai, Que Saudades da Amélia", Ataulfo não precisou mudar absolutamente nada da letra original. Ela era perfeita para o momento. A Amélia de Ataulfo e Lago não tinha a menor vaidade. Era uma mulher de verdade – de Getúlio.
O pesquisador e jornalista Jairo Severiano, autor do livro "Getúlio Vargas e a Música Popular", lançado em 1982 (edição já esgotada) pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), afirma que "Ai, Que Saudades da Amélia" não deve ter sido uma encomenda de Getúlio a Ataulfo, mas diz que há fortes evidências de que a música foi gravada para agradar ao ditador.
Severiano lembra que no mesmo ano, 1941, Ataulfo compôs uma parceria com Felisberto Martins (diretor da gravadora Odeon) intitulada "É Negócio Casar", essa, sim, uma exaltação direta ao homem trabalhador. "Na época, havia um projeto de lei estado-novista que previa uma pensão especial para quem tivesse mais de quatro filhos", relata o pesquisador. Felisberto escreveu a letra e Ataulfo gravou, para alegria do DIP: "No Brasil não falta nada/ Tem café, petróleo e ouro/ Ninguém pode duvidar/ E quem for pai de quatro filhos/ É negócio casar". "'Amélia' não era tão explícita, mas era, digamos assim, uma bajulação indireta à propaganda de exaltação ao trabalhador e de execração do homem boêmio feita pelo DIP", completa.
O compositor Ataulfo Alves Júnior, filho de Ataulfo, acha que há muitas lendas em torno de "Ai, Que Saudades da Amélia", algumas sem pé nem cabeça. Ele nem acha a canção do pai machista. "É um samba feito em homenagem a dona Amélia dos Santos, lavadeira de Aracy de Almeida", diz Ataulfo Júnior. Ela era uma mulher que fazia tudo: passava roupa, limpava a casa, dava banho no cachorro. "Meu pai e Mario Lago decidiram enaltecê-la. E ponto final. Não tem nada a ver com Getúlio, com DIP, com submissão da mulher…" Segundo ele, se a música fosse uma encomenda de Getúlio, não teria sofrido tanta resistência dos grandes cantores da época. "O Francisco Alves não queria gravá-la. O Moreira da Silva achou a música 'fúnebre'." "Ai, Que Saudades da Amélia" acabou sendo o grande sucesso do Carnaval de 1942. Na voz do próprio Ataulfo.
Até hoje, entretanto, o samba é um território mais masculino do que feminino, comenta Faour. Nada, porém, que se compare com o que ocorria na época áurea do rádio (dos anos 30 aos 50). "Noel Rosa, Ary Barroso, Wilson Batista, os próprios Ataulfo Alves e Mario Lago, Dorival Caymmi, Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, enfim, todos os compositores davam um jeito de culpar as mulheres pela separação, de chamá-las de traiçoeiras e de rogar todo tipo de praga nas suas musas."
Quem foi o primeiro compositor ou gênero musical a valorizar a figura da mulher? Impossível não se lembrar de Dolores Duran, a primeira compositora popular de projeção nacional. Ou de Maysa e sua "Resposta", libelo feminista composto em 1956: "Só digo o que penso/ Só faço o que gosto/ E aquilo que creio". Mas, segundo a pesquisadora e jornalista Maria Luiza Kfouri, não foi uma compositora e sim um compositor o primeiro a expor os sentimentos da mulher de uma forma que ninguém conseguira até então. Um homem de alma feminina: Chico Buarque. "Na incrível ironia de 'Mulheres de Atenas', ele jogou uma pá de cal nos resquícios machistas dos compositores brasileiros", afirma Maria Luiza.
Não há como esquecer também o baiano Assis Valente, autor de "Camisa Listrada", o primeiro compositor a fazer letras tomando a posição da mulher, algo que Chico faria com maestria anos depois. "Em 'Camisa Listrada' ele foi além e ainda pôs em xeque a sexualidade masculina ao contar a história de um machão que no Carnaval vestia as roupas da mulher para brincar", diz o jornalista e pesquisador Gonçalo Júnior, que prepara a biografia de Assis.
Faour cita o quinteto formado por Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Carmen Costa, Marlene e Maysa como exemplo de cantoras à frente de sua época e, portanto, importantes para "a evolução da postura feminina". Cada uma com a sua contribuição. Carmen Miranda, segundo Faour, "deixava a lamúria do cancioneiro antigo brasileiro e trazia a figura feminina alegre e com malícia". Dalva, na conturbada separação com Herivelto Martins, "teve a coragem de fazer o Brasil tremer e refletir cantando 'Errei, Sim' ('Mas se existe ainda quem queira me condenar/ Que venha logo a primeira pedra me atirar'). Carmen Costa cantava "Eu Sou a Outra", uma mulher que assumia o seu papel de amante, "algo impensável nos anos 50". Já Marlene, lembra Faour, seduzia com seu jogo de cena extravagante e sua personalidade progressista, como Maysa, "que teve peito de largar a alta sociedade para se tornar uma cantora popular, quebrando um tabu terrível".
E os gêneros musicais? Há aqueles que acreditam, caso de Maria Luiza, que a bossa nova não mudou muito o lugar da mulher em termos de submissão – ela continuou a ser cantada por seus atributos físicos. "Em 'Minha Namorada' [Carlos Lyra e Vinícius de Moraes], a mulher tinha que prometer ser só do homem ["Você tem que me fazer um juramento/ De só ter um pensamento/ Ser só minha até morrer"] e seguir o caminho dele, embora esse caminho pudesse ser triste para ela", observa a pesquisadora.
Faour lembra que Vinicius criou figuras femininas solares e agradáveis, como as célebres protagonistas de "Ela É Carioca" e "Garota de Ipanema", mas era ao mesmo tempo capaz de escrever uma letra como "Samba da Bênção", aquela que diz que "a mulher nasceu para sofrer pelo seu amor e ser só perdão".
Já a Tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia, nascida nas vésperas do Ato Institucional nº 5 (AI-5), tinha temas mais fervilhantes em sua pauta do que especificamente discutir o papel da mulher na sociedade. Mas Gal Costa, ressalta Faour, "acabou intuitivamente sendo uma das grandes musas do desbunde pelo poder de sua voz, aliado a um total despojamento sexy e andrógino, que influenciou as suas sucessoras".
Para o produtor e pesquisador, as cantoras de hoje são muito mais próximas de Gal Costa do que de Wanderléa, ícone da Jovem Guarda, gênero que, apesar de sua inegável importância para a música brasileira, repetiu velhos clichês comportamentais quando o assunto era a mulher e o seu papel na sociedade. Algo que não predominou completamente, veja só, na chamada música brega. "Odair José e Wando têm uma contribuição importante, já que não demonizavam as mulheres, como era comum no gênero, e procuravam compreendê-las, em canções como 'Moça', de Wando, e 'Deixa Essa Vergonha de Lado', de Odair, independentemente de seu status social", diz Faour.
Hoje, a música brasileira é dominada pelas mulheres – o país revela muito mais cantoras do que cantores. Entre as mais talentosas, quase todas compõem. É o caso de Céu, Maria Gadú, Tulipa Ruiz, Teresa Cristina e Vanessa da Mata. Ana Carolina, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto continuam fazendo sucesso e compondo como nunca. Marina Lima e Rita Lee também estão longe de se aposentar. "As compositoras, hoje, mandam ver em letras diretas e sem firulas, discutindo a questão da bissexualidade e exigindo uma boa performance dos homens, quebrando o mito de que o prazer sexual é secundário na vida da mulher", comenta Faour.
A antropóloga Mirian Goldenberg, que há mais de 20 anos estuda o comportamento da mulher brasileira, aponta a canção "Todas As Mulheres do Mundo", de Rita Lee ("Toda mulher quer ser amada/ Toda mulher que ser feliz/ Toda mulher se faz de coitada/ Toda mulher é meio Leila Diniz"), como uma espécie de versão moderna de "Ai, Que Saudades da Amélia". "Rita também retratou uma mulher que se faz de coitada, submissa, mas no fundo quer ser igual a Leila Diniz [1945-1972, símbolo da revolução feminina dos anos 60]", diz a antropóloga. Para Mirian, as mulheres brasileiras querem ser iguais a Leila Diniz, mas ainda estão longe de chegar lá. A antropóloga observa que não quer comprar briga com as feministas ao afirmar que a mulher atual ainda não conseguiu se libertar totalmente das convenções para ser, de fato, livre. "Estou fazendo uma pesquisa na Alemanha. Ali os tabus foram quebrados para valer. Cerca de 50% das mulheres dos centros urbanos não querem casar nem ter filhos para se dedicar ao trabalho", afirma Mirian. "Aqui, não, as mulheres ainda são muito Amelinhas".
Autora de "O Lado Quente do Ser", Marina Lima marcou os anos 80 ao retratar as nuances da alma feminina. Mas, se no imaginário popular Marina está muito mais perto da moderna Leila Diniz do que da submissa Amélia, o fato não diminui sua admiração pela canção de Ataulfo e Lago. "A minha mãe se chamava Amélia e foi uma das mulheres mais adoráveis que já conheci", conta a cantora. Para ela, a canção está acima de qualquer estereótipo. "Nunca entendi a Amélia desse lindo samba como uma mulher submissa ou sem personalidade. Sempre a vi como uma mulher leve, companheira, cheia de charme. Minha mãe era assim."
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Fonte: Valor Econômico