Desvendando os direitos humanos… da burguesia

Em outubro de 1843, após o fechamento da Gazeta Renana, Marx transferiu-se para Paris, considerada o coração da revolução europeia. Ali, juntamente com Arnold Ruge, pôs em prática seus planos para a publicação de uma revista teórica e política que seria denominada Anais Franco-Alemães. No início de 1844 saiu o primeiro número.

A revista tinha por objetivo a criação de uma imprensa livre – livre para dispor de si própria como muito bem apetecer, vivendo segundo suas próprias leis e fazendo a união real do espírito alemão com o espírito francês, encontro este com significado profundamente humanista. Ou seja, era uma obra que pretendia unir o espírito prático/revolucionário francês à filosofia clássica alemã. Unir o cérebro e o coração da revolução européia da época.

Nos Anais, que não sobreviveram ao primeiro número, Marx publicou dois artigos, A Questão Judaica e a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito, através dos quais deu os primeiros passos que o libertariam do democratismo revolucionário pequeno-burguês e o conduziriam pela senda do comunismo.

O primeiro artigo foi uma crítica à obra A Questão Judaica, escrita por seu antigo amigo Bruno Bauer. Toda a discussão sobre o problema judeu, nesse período, centrava-se na atitude que os democratas deveriam tomar em relação à luta dos judeus pelos seus direitos políticos, visto que desde 1816 estavam proibidos de exercê-los na Alemanha. Todos, de uma forma ou de outra, apoiavam a aspiração dos judeus alemães, que se constituíam em importante ponto de apoio na luta geral da oposição contra a autocracia e pela separação entre Igreja e Estado.

Bauer, com sua obra, buscou contribuir com esse debate, mas sua postura aparentemente radical acabou por desviar a atenção do sentido correto da luta. Para ele, enquanto o Estado permanecer cristão, não pode atribuir direitos iguais aos judeus que professam uma religião hostil ao cristianismo. Portanto, a emancipação política do judeu pressupõe a supressão do Estado cristão. Mas para obter o seu pleno direito para lutar por essa supressão, os judeus devem renegar sua religião. O ateísmo seria assim a condição da emancipação política.

Marx acreditava que essa afirmação era equivocada. O Homem, para Marx, se emancipa politicamente da religião ao bani-la do direito público para o direito privado. “A religião já não é o espírito de sociedade burguesa (…), mas deslocando a religião em relação ao Estado para transferi-la à sociedade burguesa (…) constitui (…) a consagração da emancipação política a qual (…) não suprime, nem tem por objetivo suprimir a religiosidade real do Homem”, como pensava Bauer.

Por isso Marx não dizia, como Bauer, “não podeis emancipar-vos politicamente se não vos emancipar radicalmente do judaísmo”. Ao contrário, afirmava: “podereis emancipar-vos politicamente sem vos desvincular radicalmente e absolutamente do judaísmo, porque a emancipação política não implica em emancipação humana. Quando vós judeus quereis a emancipação política sem vos emancipar humanamente, a meia solução, a contradição não reside em vós, mas na essência e na categoria de emancipação política”.

Para Bauer os direitos não eram ideias inatas do Homem, fórmulas a priori, mas representavam uma conquista e só poderiam possuí-los aqueles que soubessem adquiri-los, merecê-los. Os judeus, enquanto permanecessem judeus, teriam sua essência humana colocada em segundo plano; o Homem então teria que sacrificar o privilégio da fé se quisesse obter os direitos gerais do Homem.

Essa afirmação para Marx encerrava uma contradição, já que o privilégio da fé era expressamente reconhecido, seja como direito humano, seja como conseqüência de um direito humano: o da liberdade. A religião, afirmava ele, longe de se constituir incompatível com o conceito dos direitos humanos, incluía-se expressamente entre eles. Afinal, os direitos humanos proclamam o direito religioso.

Marx passa, então, a analisar o problema dos direitos humanos em geral, em especial como eles se colocavam na Declaração dos direitos dos homens e dos cidadãos, de 1793, mostrando as limitações desses direitos estatuídos que, em última instância, se reduziam a um único direito: o direito à propriedade.

Marx buscava fazer uma análise crítica do que representavam os direitos do Homem na sociedade capitalista, bem como compreender os fundamentos do discurso liberal-burguês. Os direitos humanos, para ele, nada mais eram que os direitos dos membros da sociedade burguesa, do homem egoísta, do homem separado do Homem e da comunidade. O individualismo é a base da concepção de mundo da burguesia. Marx analisou cada um daqueles direitos fundamentais presentes na constituição francesa – os direitos à liberdade, à igualdade e à fraternidade – procurando responder no que consistiriam esses direitos.

A Declaração dos Direitos do Homem afirmava: a liberdade é o poder do próprio homem de fazer tudo aquilo que não entre em conflito com os direitos de outros, ou, simplesmente, a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem. É dessa forma que Marx conclui que o conceito burguês de liberdade visava em última instância estabelecer os limites da própria liberdade. Tratava-se da liberdade de um homem encarado como mônada – isolado e dobrado sobre si mesmo. Escreveu Marx: os direitos do Homem não se baseiam na união do homem com o homem, mas pelo contrário na separação do homem em relação a seu semelhante. A liberdade é o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo. Para ele a aplicação desse direito à liberdade se traduzia, na prática, no direito humano à propriedade privada.

O direito humano à propriedade privada era o direito assegurado a todo cidadão de gozar e dispor de seus bens, rendas, dos frutos de seu trabalho e de sua indústria como melhor lhe conviesse. Portanto, esse era o direito de desfrutar de seu patrimônio e de dele usufruir arbitrariamente, sem atender aos demais homens, independente da sociedade. Esse constitui o fundamento da sociedade burguesa, sociedade que faz com que todo homem encontre em outro homem não a realização de sua liberdade, mas, pelo contrário, uma ameaça a esta e uma limitação desta.

Restava ainda examinar dois outros direitos humanos: o da igualdade e o da segurança. O direito humano à igualdade era pontificado em todas as constituições liberais. A própria constituição de 1785 afirmava que a igualdade consistia na aplicação da mesma lei para todos, seja quando protege seja quando castiga. Mas, nos marcos de uma sociedade marcada pela existência de profundas diferenciações, econômicas e sociais, qualquer declaração que propugnasse uma igualdade jurídica em geral, esquecendo-se de colocar igualmente o problema da abolição das desigualdades sociais reais, não passaria de uma meia-medida. Ou seja: era necessário estabelecer uma distinção entre liberdade formal e liberdade real.

Por fim, o direito à segurança. A constituição de 1795 afirmava: a segurança consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um de seus membros para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. Este, portanto, na sociedade moderna (capitalista), tornava-se o direito supremo, o direito de polícia, segundo o qual a sociedade somente existia para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. O conceito de segurança não faz com que a sociedade burguesa se sobreponha a seu egoísmo. A segurança é, pelo contrário, a condição garantidora deste.

Nenhum dos chamados direitos humanos, para Marx, ultrapassava o egoísmo do homem, do homem enquanto membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular em sua arbitrariedade privada e desassociada da comunidade. Nessa concepção egoísta, o único nexo que mantém os homens em coesão é a necessidade natural de conservação de suas propriedades e de sua individualidade. Por conseguinte, o homem que não se libertou da religião obteve, sim, liberdade religiosa. O homem que não se libertou da propriedade obteve a liberdade da propriedade, assim como o que não se libertou do egoísmo da indústria obteve a liberdade industrial.

(Continua na parte 6)

Augusto César Buonicore, historiador e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e membro dos conselhos editoriais das revistas Princípios e Crítica Marxista. Este ensaio – cuja versão atual foi publicada originalmente em cinco partes na revista Juventude.br (números 1 a 5) – foi escrito há mais uma década e muitas das opiniões nele contidas não correspondem mais integralmente às posições do autor. A motivação principal de sua publicação é oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual inicial de Marx, algo de grande utilidade especialmente para as jovens gerações de comunistas, que conhecem pouco a vida e a obra do fundador do socialismo científico.