O que o filme não mostrou, porém, foi o fato de que a crise deflagrou toda uma nova série de abusos, muitos dos quais não só imorais como ilegais. E por fim as figuras políticas começam a mostrar alguma indignação. Infelizmente, essa indignação não é dirigida aos abusos dos bancos, mas àqueles que estão tentando responsabilizar as instituições financeiras por eles.

A causa imediata das reclamações é uma proposta de acordo extrajudicial entre secretários estaduais de Justiça e o setor de crédito hipotecário. O acordo é uma "chantagem", disse o senador Richard Shelby, do Arizona. O dinheiro que os bancos seriam forçados a destinar à reforma de contratos de hipoteca representa "extorsão", de acordo com o "Wall Street Journal". E os banqueiros mesmos alertam que qualquer ação contra eles colocaria em risco a recuperação econômica.

O que serve para confirmar que os ricos são diferentes de mim e de vocês: quando eles quebram as leis, quem vai a julgamento são os promotores públicos.

Para que você tenha ideia do que estamos falando aqui, a queixa do secretário da Justiça do Nevada contra o Bank of America serve como exemplo. As autoridades acusam o banco de usar falsos pretextos para convencer mutuários a aderir a seus programas de reforma de hipoteca — supostamente com o objetivo de ajudá-las a manter suas casas; de oferecer falsas informações quanto aos requisitos do programa (por exemplo, afirmando que as famílias teriam de deixar de pagar suas hipotecas em dia antes que pudessem conseguir uma reforma de contrato); de iludir famílias com promessas de ação e depois "enviar notificações de execução de hipoteca, estabelecer datas para leilão de imóveis e até vender as casas de mutuários que estavam à espera de decisões"; e, em termos mais amplos, de explorar o programa a fim de ganhar ainda mais dinheiro à custa das famílias.

O resultado final, a queixa alega, foi o de que "muitos consumidores de Nevada continuaram a fazer pagamentos de hipoteca com os quais não podiam arcar, esgotando contas de poupança, de aposentadoria ou de custeio da educação de seus filhos. Além disso, devido às garantias enganosas oferecidas pelo Bank of America, os consumidores optaram por não vender suas casas de imediato e abriram mão de outras tentativas para mitigar seus prejuízos. E eles foram mantidos em espera ansiosa, mês após mês, ligando para o Bank of America e apresentando múltiplos pedidos e documentos, sem saber se ou quando perderiam suas casas".

Ainda assim, esse tipo de coisa só aconteceu aos fracassados que não foram capazes de manter em dia o pagamento de suas hipotecas, certo? Errado.

Recentemente, Dana Milbank, colunista do jornal "Washington Post", escreveu sobre sua experiência pessoal com isso: uma transação rotineira de refinanciamento de hipoteca junto ao Citibank que de alguma forma se transformou em pesadelo de informações incorretas sobre taxas de juros, cobranças indevidas de tarifas e congelamento de contas bancárias. E todos os indícios sugerem que a experiência de Milbank não é incomum.

Perceba, aliás, que não estamos falando sobre as práticas de negócios de empresas de fundo de quintal; estamos falando de duas das três maiores companhias financeiras norte-americanas, cada qual com cerca de US$ 2 trilhões em ativos. No entanto, os políticos gostariam que acreditássemos que qualquer tentativa de conseguir que esses abusivos gigantes financeiros reponham ao menos uma fração das perdas que causaram representa "chantagem". A única coisa a debater sobre o tema, na verdade, é se a proposta de acordo não é branda demais para com eles.

E quanto ao argumento de que fazer qualquer exigência aos bancos colocaria em risco a recuperação? Há muito a dizer quanto a esse argumento, mas nada de bom. Permitam-me enfatizar dois aspectos, no entanto.

Primeiro, o acordo proposto só pede por reformas de contratos hipotecários que produziriam um "valor líquido presente" superior ao da execução de uma hipoteca por inadimplência -ou seja, pede a oferta de acordos que serviriam tanto aos interesses dos mutuários quanto dos investidores. A verdade deveria causar indignação: alguns bancos bloqueiam acordos mutuamente benéficos como esses para que possam continuar a cobrar tarifas. De que modo pôr fim a um assalto a mão armada como esse poderia prejudicar a economia?

Segundo, o maior obstáculo à recuperação não é a situação financeira dos grandes bancos, que receberam socorro financeiro e continuam a se beneficiar da percepção de que seriam resgatados de novo caso algo de errado aconteça. O problema real é a combinação entre dívidas domiciliares pesadas e a paralisia do mercado de habitação. Forçar os bancos a resolver os problemas da dívida hipotecária — em lugar de continuarem enrolando para arrancar mais alguns dólares dos clientes — ajudaria, e não prejudicaria, a economia.

Nos próximos dias e semanas veremos políticos favoráveis aos bancos denunciando a proposta de acordo, e alegando que o objetivo deles é defender o disposto pelas leis. Mas o que defendem na realidade é exatamente o oposto: um sistema no qual apenas as pessoas humildes precisam obedecer a lei, enquanto os ricos, e especialmente os banqueiros, podem trapacear e fraudar sem consequências.

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Fonte: The New York Times, na Folha.com