Marx descobre o proletariado revolucionário

A França em 1843 era a capital da revolução europeia. Por isso ali se agitavam as principais correntes do pensamento moderno. Entre elas desenvolviam-se as jovens correntes comunistas, com as quais Marx tomaria contato. Multiplicavam-se também organizações de operários revolucionários, em geral clandestinas, sendo uma das mais importantes a Liga dos Justos. É através dela que o jovem Marx entraria em contato com a jovem classe operária europeia.

Foi nesse ambiente que ele escreveu o seu artigo-ensaio Introdução à Crítica da Filosofia do Direito. Esse texto representaria um marco importante no processo de transição do jovem Marx para o Marx maduro das obras clássicas, pois é através dele que, pela primeira vez, aparece a figura do proletário com um papel definido no processo de emancipação humana. Na Introdução Marx buscou, também, estabelecer a justa relação entre a filosofia radical (a arma da crítica) e a práxis revolucionária (a crítica das armas).

Antes de mais nada, ele buscou definir o rumo geral do movimento de oposição ao Estado prussiano. Para isso procurou dar respostas a questões teórico-políticas tais como: Quais as condições para a transformação social? Quais os instrumentos dessa transformação?

É dessa maneira que Marx vê-se obrigado a submeter a uma dura crítica as duas principais correntes do pensamento político da Alemanha, crítica que ajudaria a amadurecer suas próprias ideias. Escreveu ele que o “partido prático” tem razão em exigir a negação da filosofia. O seu erro não estaria nessa exigência, mas em agarrar-se a uma exigência que não pode ser seriamente realizada. Numa palavra: não podem abolir a filosofia sem realizá-la. Por outro lado, o “partido teórico”, cujo ponto de partida era a filosofia, só viu no combate atual o combate crítico da filosofia contra o mundo alemão e não se acautelou contra o fato de que a própria filosofia fazia parte desse mundo, era o seu complemento ideológico. Ou seja: essa vertente acreditava poder realizar a filosofia sem a abolir.

Marx, portanto, acabou por apresentar um novo caminho para a oposição alemã, que passava necessariamente pela unidade entre a teoria e a prática. Indubitavelmente, escreveu, a arma da crítica não podia substituir a crítica das armas, até porque potência material só pode ser abatida por potência material, ainda que também a teoria possa se transformar em potência material na medida em que se apodere das massas.

Mas de que maneira pode a filosofia apoderar-se das massas e se tornar uma força realmente transformadora? A teoria, pensa Marx, é capaz de apoderar-se das massas desde que se torne radical, e ser radical é tomar as coisas pela raiz. E, para o Homem, a raiz é o próprio Homem. A teoria jamais se realiza num povo senão na medida em que é a realização de suas necessidades.

Outro aspecto que Marx levantava era o de que a revolução não era apenas um problema subjetivo, de realização pura e simples da filosofia, pois não basta que o pensamento tenda a se realizar, é também preciso que a realidade tenda a tornar-se pensamento (…) Uma revolução radical só pode ser uma revolução das necessidades radicais. A revolução é um problema que tem dois aspectos: um subjetivo, que é a revolucionarização da teoria, e outro objetivo, as condições históricas. Existiria uma relação dialética entre ambas e a mediação seria feita pela prática revolucionária.

A Alemanha, para Marx, não necessitava de uma revolução unicamente política e, portanto, parcial; não necessitava de outra revolução que deixasse de pé os pilares do edifício. A Alemanha precisava de um outro tipo de revolução, mais radical, que representasse verdadeiramente a emancipação humana, precisava de uma revolução social.

Mas onde residiria essa possibilidade, a possibilidade da revolução social alemã? O próprio Marx nos forneceu a resposta a essa questão. A possibilidade residiria na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil, de um grupo social que seja a dissolução de todos os grupos, que possua o caráter de universalidade pela leviandade de seus sofrimentos. Nas palavras de Marx, uma classe que não reivindicasse um direito particular, dado que não seria fruto de qualquer injustiça particular, mas da injustiça em si. Uma classe que não possa orgulhar-se do título histórico, mas apenas de um título humano. Uma esfera social, enfim, que não possa emancipar-se sem emancipar, por esse fato, todas as outras esferas da sociedade; que não possa reconquistar a si mesmo sem uma reconquista total do Homem. A dissolução da sociedade burguesa só poderia se realizar através de uma classe: o proletariado.

A filosofia encontrava assim no proletariado suas armas materiais e o proletariado encontrava na filosofia suas armas intelectuais. A cabeça dessa emancipação (humana) é a filosofia e o seu coração é o proletariado. O proletariado não pode abolir-se sem realizar a filosofia. E a filosofia não poderia se realizar sem a ação consciente do proletariado.

Foi assim que, entre os anos de 1843 e 1844, Marx fez uma de suas principais descobertas: a missão histórica do proletariado. Graças à sua posição objetiva na vida, esse seria o único grupo de homens capaz de transformar radicalmente a sociedade, abolindo a propriedade privada e construindo um novo mundo. Isso, porém, só seria possível quando esse agrupamento social estivesse instrumentalizado por uma filosofia crítica radical. A auto-libertação do proletariado passou a ser para Marx condição essencial para a libertação da própria humanidade, a emancipação universal, o encontro do Homem consigo mesmo: o fim da alienação.

Asseveram alguns que o proletariado da Introdução não seria ainda o proletariado da grande indústria, aquele do qual se extrairia a mais-valida. O proletariado ali mencionado corresponderia apenas à noção de trabalhadores desprovidos dos meios de produção, condenados objetivamente à degradação e à fome. Ou seja: nessa definição primitiva, o proletariado era definido não pela sua posição num sistema de produção e reprodução determinado (capitalista), mas principalmente pela sua miséria. Mesmo admitindo essa ressalva, é forçoso reconhecer que ela não invalida as afirmações anteriores, que colocam a Introdução como uma obra de ruptura.

Afinal, não poderíamos mesmo esperar que a passagem do jovem Marx ao Marx maduro se desse de repente, como Minerva nascendo da cabeça de Zeus, já de armadura e lança. A formação teórica é também um processo, marcado por saltos e acúmulos. E podemos afirmar que, sem sombra de dúvida, a Introdução representou um desses saltos, como outros que viriam.

A introdução do proletariado nas considerações de Marx criou profundas contradições em seu pensamento, abrindo nele lacunas que deveriam ser preenchidas. Era um Marx, decerto, atormentado e dividido entre aquele que aderia, de corpo e alma, ao movimento operário revolucionário em ascensão – movimento do qual viria a se constituir em um dos mais importantes teóricos – e o outro ainda preso, em muitos aspectos, a uma concepção não-proletária de mundo, o hegelianismo de esquerda. Essa contradição precisava ser resolvida, como de fato o foi.

(Continua na parte 7)

Augusto César Buonicore, historiador e mestre em Ciência Política pela Unicamp, é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e membro dos conselhos editoriais das revistas Princípios e Crítica Marxista. Este ensaio – cuja versão atual foi publicada em cinco partes na revista Juventude.br (números 1 a 5) – foi escrito há mais uma década e muitas das opiniões nele contidas não correspondem mais integralmente às posições do autor. A motivação principal de sua publicação é oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual inicial de Marx, algo de grande utilidade especialmente para as jovens gerações de comunistas, que conhecem pouco a vida e a obra do fundador do socialismo científico.