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    Comunicação

    Abel

    Sob as estrelas do Baixo-Araguaia andava o Capitão rebelde, com um pequeno grupo de gatilheiros, palmilhando o itinerário das lutas camponesas no Sul do Pará. Sua gente era formada pelos degredados do grande capital que, no processo de colonização da Amazônia chegou primeiro, aramando as terras, constituindo através da fraude e da pistolagem nababescas propriedades, […]

    POR: Paulo Fonteles Filho

    Sob as estrelas do Baixo-Araguaia andava o Capitão rebelde,
    com um pequeno grupo de gatilheiros,
    palmilhando o itinerário das lutas camponesas no Sul do Pará.
    Sua gente era formada pelos degredados do grande capital que,
    no processo de colonização da Amazônia chegou primeiro,
    aramando as terras,
    constituindo através da fraude e da pistolagem nababescas propriedades,
    tudo isso com a anuência da força do estado terrorista dos generais.
    Aqui, o vil metal chegou primeiro e as terras prometidas por Garrastazu Médici,
    nas selvas e inóspitas matas eram tomadas por exércitos de jagunços.
    Abel, o Capitão rebelde, era o pesadelo mais profundo dos senhores
    das extraordinárias áreas não-cultivadas e improdutivas,
    dos pistoleiros, grileiros e “gatos” do trabalho escravo.
    Toda espécie de cabra-safado suava frio
    com a noticia de que o gatilheiro estava por perto,
    de que não teriam sossego,
    de que o risco que corre o pau corre o machado,
    dos justiciamentos,
    de que em cada toco de árvore poderia haver uma vinte-e-dois
    mirando para as ruínas do latifúndio.
    Abel correspondia à força que se levanta do povo,
    a voz inclemente dos espoliados.
    Considerava que a contenda contra os grandes proprietários
    era uma guerra
    e de que o lavrador tornara-se o protagonista fundamental.
    Ao sopro do caudaloso rio dos karajás,
    o chefe dos gatilhos distribuía alqueires
    e infundia terror nos tiranetes do Sul do Pará.
    E não apenas na região espraiada do Bico-do-Papagaio: suas andanças
    foram notadas na Pará-Maranhão onde atuava outro irmão de afazeres,
    o também gatilheiro Quintino.
    De baixa-estatura, tinha preparo político, aspecto dirigente de qualquer luta.
    A pouca memória de sua pessoa afirma
    que andou com os guerrilheiros do Araguaia
    e de que era sutil, mestre em esgueirar-se perto das tropas oficiais
    e de que mirava, muitas vezes sem estampir, entre os olhos das fardas
    bem graduadas.
    A pouca memória de sua pessoa afirma sobre um contundente ódio aos fascistas,
    coisa aprendida com um velho chamado “Cid”
    e com um negro de quase dois metros de altura.
    A milícia revoltosa de Abel acertou muitas contas: dezenas
    de sequazes da carcomida estrutura fundiária foram para o inferno.
    Com mosquetões,
    rifles,
    espingardas,
    carabinas
    e facões priorizavam o método ideal de luta do mais fraco contra o mais forte.
    E isto ocorreu num período efervescente
    para a organização dos camponeses araguaianos
    e mais de duzentos e cinqüenta mil hectares de terras ociosas
    foram ocupadas nas mais longínquas matas paraenses..
    Meu pai, o advogado de posseiros, Paulo Fonteles,
    dizia em 1980 que toda essa luta era produto de uma consciência altaneira
    e que peões, muitas das vezes analfabetos,
    discutiam de frente com
    os coronéis do GETAT (Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins),
    instrumento da intervenção militarizada da ditadura
    para com as questões fundiárias na região.
    Abel aprendeu a ler
    e escrever na mata na época que antecedeu a guerrilha
    e durante meses consumiu “Os Sertões” de Euclides da Cunha,
    emprestado a ele por um jovem combatente.
    Após 12 de abril de 1972,
    com o ataque das tropas oficiais na região da Faveira,
    embrenhou-se na mata
    e entre ações de fustigamentos ou
    nas áreas de refúgio das Serras dos Martírios inspirava-se em Pajeú,
    o Comandante militar canudense.
    Foi em São Geraldo do Araguaia que ouvi falar do gatilheiro Abel.
    Fruto da generosa gente pobre foi, menino, cortador de juquira.
    Contra todo tipo de iniqüidade rebelou-se
    e só pode compreender o conteúdo dos grilhões ao juntar-se,
    em fins de 1972, a insurgente Força Guerrilheira do Araguaia.
    Logo, logo, com maestria,
    aprendeu a manusear um pau-furado de fazer fogo
    e de que o apoio popular é indispensável nas pequenas
    e grandes contendas da luta política.
    Nunca se soube, ao certo,
    de como conseguiu escapar da terceira
    e última campanha de cerco e aniquilamento que, militarmente,
    derrotou o movimento guerrilheiro.
    Depois de vários meses onde crescem as árvores e as grotas,
    no Saranzal,
    buscou a preparação de uma casa onde pudesse
    dar cabo a uma roça e sobreviver: aprontou as forquilhas,
    a cumeeira,
    o caibro
    e cortou as melhores folhas de babaçu.
    Com um velho facão caçava tatus e jabutis nas clareiras.
    Sabia dos horrores que muitos haviam passado nas mãos das patrulhas.
    Sabia das torturas e do corta-cabeças.
    Sabia que naquelas terras a vida era perigosa,
    cheias de rastejadores e de grileiros a soldo dos grandes proprietários.
    Sabia que as tropas oficiais com seus “secretas” realizavam
    uma operação para apagar os vestígios
    e os desdobramentos dos embates com a insurreição.
    Muitas coisas aconteceram a partir de mil novecentos e setenta e seis.
    A oposição sindical organizara-se para enfrentar
    os prepostos do Ministério do Trabalho
    e de Jarbas Passarinho
    nas eleições para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais
    de Conceição do Araguaia.
    Animados pelos ensinamentos do “povo da mata”
    e pelo setor combativo da igreja católica,
    os teólogos da libertação,
    filhos de Casaldaglia e Boff,
    muitos lavradores passaram a debater,
    iluminados pela destemida luz
    da luta mais geral pela redemocratização do Brasil
    a necessária retomada do Sindicato
    para as mãos legitimas dos lavradores.
    A iniciativa campesina
    custou à vida de várias e combativas lideranças,
    como, por exemplo, “Gringo” de Itaipavas.
    Um despertar de consciências pululava pelos sertões do Araguaia
    e uma feroz reação abateu-se novamente contra os trabalhadores rurais.
    Abel, diante da violência injusta procurou a autodefesa.
    Armou-se e formou uma milícia de iguais
    e como um vulto esperançoso chegava nas choças
    em densas madrugadas porque tinha a sabedoria
    que em sua vida de contendas a noite mais profunda
    proporcionava segurança,
    comida
    e informações.
    Na luz dos candeeiros olhava
    nos olhos de seus irmãos de classe
    e no chão de terra batida preparava a resistência
    camponesa.
    Como um espectro ia de comunidade em comunidade
    ensinando arte-militar,
    o valor da união e umas histórias
    de que os trabalhadores tomaram o poder político
    em paises distantes.
    Orientava que as roças deveriam ser plantadas umas ao lado das outras
    como precaução para evitar a ação da pistolagem
    e depois partia para lá do que se sabia,
    sem deixar rastros.
    Apenas a lua metálica sabia de seus passos de Capitão rebelde.
    Amou mulheres nas redes profundas das matas.
    Centelha de coragem e valentia levantou as mentalidades
    pelos castanhais e sertões.
    O Capitão rebelde dos gatilhos
    deu dignidade a pobreza: foi profundo como a formação do povo brasileiro.
    Em mil novecentos e oitenta e seis não fora mais visto.
    Transformou-se em onça
    que em noites densas infunde terror nos pastos do latifúndio.

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