I- Bonapartismo, forma republicana e sufrágio universal

Domenico Losurdo teve o mérito de examinar em profundidade, em livro que conquistou merecido reconhecimento internacional , o que podemos chamar paradoxo congênito do sufrágio universal: serviu, no dia 10 de dezembro de 1848, para conduzir à presidência da república o aventureiro reacionário Luís Bonaparte, que recebeu 5,5 milhões de votos, contra 1,5 milhão para seu oponente, o general Cavaignac, cujo maior trunfo eleitoral era ter esmagado a ferro e fogo a rebelião dos operários parisienses em 23-26 de junho daquele mesmo ano ; os demais candidatos, juntos, receberam 400.000 votos.

Um paradoxo não é um absurdo ou disparate, apenas um atropelo do que parecia lógico, no caso, que a conquista, pelos operários e pelos trabalhadores em geral, do direito de votar conduziria à eleição de candidatos opostos à ordem iníqua do capital. Mas tampouco os paradoxos escapam à lógica, apenas obedecem a causas mais complexas do que as aparentes. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx explicou, com insuperável precisão analítica, por que o tão almejado sufrágio universal serviu para levar ao poder um acabado cafajeste, como diríamos hoje. (Entre nós, ao voltar a exercer, em 1989, após vinte e nove anos, o direito de eleger o presidente da república, o corpo eleitoral escolheu um pífio play-boy que nem ao menos conseguiu saquear os cofres-públicos com a secular competência das “elites” políticas tradicionais).

O Dezoito Brumário é o escrito de Marx mais utilizado e elogiado por não-marxistas e anti-marxistas, não apenas porque só a ignaros escapa sua magistral arquitetura e inexaurível densidade, mas principalmente pela crítica que desenvolve da máquina estatal, imensa jibóia estrangulando a sociedade… O interesse dos intelectuais liberais e social-democratas pela crítica do aparelho de Estado é, porém, muito seletivo. Desconsideram a tese fundamental, reiterada na conclusão do livro (é preciso destruir esse gigantesco aparelho de opressão a serviço do capital), para pôr a crítica de Marx a serviço do “anti-estatismo” liberal-burguês: a “sociedade civil” contra “o” Estado (entendamos, burgueses e proletários irmanados contra “a” burocracia). Isso provavelmente explique porque é tão pouco citada uma passagem notável do início do 18 Brumário (capítulo 1), que contrapõe "os países de velha civilização (altzivilisierten Ländern) com uma estrutura de classe muito desenvolvida e condições modernas de produção, nos quais a República constitui em geral somente(nur) a forma de transformação política da sociedade burguesa (die politische Umwälzungform der bürgerlich Gesellschaft) e não sua forma conservadora de existência (konservative Lebensform)", aos Estados Unidos, "onde as classes já constituídas, mas ainda não tendo se fixado, em vez disso trocam e substituem constantemente seus elementos constitutivos, onde os meios de produção modernos, em vez de corresponder a uma super-população estagnante, antes compensam a falta relativa de cabeças e de braços e onde, enfim, o movimento jovem e febril da produção material, que tem um mundo novo para conquistar, não teve nem tempo nem ocasião para destruir o velho mundo espiritual" .

Marx aí delineia, a partir do estudo da primeira forma política da contra-revolução burguesa (o bonapartismo reacionário de Luís Napoleão), a dialética das relações econômicas e das formas do poder político, na perspectiva de determinar as condições em que poderá haver revolução. Nos Estados Unidos, nos diz Marx, a forma republicana, com todas suas liberdades, reforça a ordem estabelecida, exatamente porque as relações capitalistas de produção têm um mundo a conquistar, ao passo que no Velho Mundo a república tende a ser social, isto é, a funcionar como forma de transformação (de subversão, do ponto de vista burguês) da ordem estabelecida, porque esta generaliza a proletarização e o desemprego.

A instrumentalização do sufrágio universal pela ditadura bonapartista havia, entretanto, deixado claro que por si só ele não confere caráter socialmente transformador à forma republicana no Velho Mundo. Após ter conduzido o Napoleãozinho (“Napoléon le petit”) à presidência, em dezembro de 1848, ele serviu para “legitimar”, através de dois plebiscitos, sua transformação em imperador. O passo decisivo foi dado com o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851: a Assembléia Nacional foi fechada pelos esbirros do regime e a tentativa de insurreição republicana de 3-4 de dezembro rapidamente esmagada. Em clima terrorista, os franceses foram convocados para um plebiscito nos dias 14 a 20 de dezembro. Por 7 milhões de votos, contra 600.000 que disseram “não”, aprovaram o estupro do poder legislativo e o massacre dos republicanos, como já haviam aprovado o dos proletários. Um ano depois, em 4 de novembro de 1852, outro plebiscito caucionou, por 7.839.000 “sim” contra 253.000 “não”, a metamorfose do ditador em imperador Napoleão III.

Nas primeiras eleições legislativas do chamado II Império, em 1857, os áulicos e fâmulos do regime mantiveram maciça maioria : 5.471.000 votos, praticamente os mesmos de 1848, contra 665.000 para a oposição republicana. Mas em 1863, a oposição obteve cerca de 2 milhões de votos. A crise econômica de 1866-67 ampliou a desafeição pelo regime imperial, cujos candidatos obtiveram, em 1869, 4.438.000 votos, contra 3.355.000 para a oposição. Embora tenham se apresentado alguns candidatos operários, a maioria do proletariado votou na oposição republicana. Mas era sobretudo nas frentes de trabalho que crescia a mobilização operária, reativada desde 1865 em toda a França, nos mais diversos ramos da produção. A vaga de fundo das greves foi desencadeada em 1869:

“Elas eclodem em toda parte, em Sotteville-lès-Rouen, em Saint-Etienne, em Rive-de-Gier, em Firminy, em Lyon, em Elbeuf, em Aubin, em Carmaux, em Marseille, em Vienne, em Grenoble, em Paris etc. Nelas se envolvem as mais diversas corporações: dos sapateiros, da fiação de lã, dos curtumes, dos chapeleiros, dos coureiros, dos metalúrgicos, dos mineiros etc. As operárias nelas desempenham papel importante, como as trabalhadoras da seda de Lyon, que durante a greve, aderem à Internacional. Progressivamente, aliás, a teoria proudhoniana da mulher dentro de casa recua, combatida por Varlin, que teve a audácia de inscrever nos estatutos da Sociedade de poupança dos operários encadernadores de Paris a igualdade de direitos entre operários e operárias. A repressão foi brutal[…]. Em La Ricamarie, na noite de 15 para 16 de junho, houve treze mortos. Alguns meses depois, em 8 de outubro, em Aubin, no Aveyron, houve quatorze e o ministro Lebeuf ousou condecorar o capitão Guasserand, que tinha mandado abrir fogo”.

Exímio manipulador do sufrágio universal por via de plebiscitos, o pequeno Bonaparte cedeu um pouco, incumbindo Émile Ollivier, chefe da ala liberalizante do regime, de chefiar um novo ministério. Em seguida, submeteu ao corpo eleitoral o seguinte texto: “O povo aprova as medidas liberais operadas na Constituição a partir de 1860 e ratifica o decreto do Senado (sénatus-consulte) de 20 de abril de 1870” (que adotava medidas liberalizantes). Para a oposição moderada, votar “não” seria opor-se à liberalização. Sete milhões votaram “sim”, contra 1.500.000 republicanos conseqüentes, que votaram “não”. Com este ambíguo, mas amplo triunfo, o imperial escroque sentiu-se autorizado a lançar a operação militar com a qual imaginava restaurar sua já gangrenada imagem política: a guerra contra a Prússia, poder emergente na Europa central. A declaração de guerra, feita “d’un coeur léger” (com o coração leve), segundo a frase ainda mais odiosa do que leviana de Ollivier, suscitou imediata tomada de posição dos operários ligados à I Internacional, que lançaram, a 12 de julho de 1870 um manifesto pela paz dirigido “aos trabalhadores de todos os países”. Os operários alemães, a despeito da guerra ter sido provocada pelo governo francês, também se mobilizaram pela paz.

2- Da guerra à revolução

O veredito das armas deu logo razão aos prussianos, que em três dias, de 4 a 6 de agosto de 1870, destroçaram os franceses em Wissemburg, Froeschwiller e Forbach, conquistando a Alsácia e rumando para a Lorena. A pífia conduta dos generais do II Império só foi ultrapassada pelo próprio imperador, que no dia 2 de setembro se entregou aos inimigos em Sedan. Diante da notícia da vergonhosa capitulação, as notabilidades burguesas tentam ganhar tempo. Mas a população parisiense, decidida a enterrar o já apodrecido regime imperial, ocupa o Corpo Legislativo e exige a proclamação da república. Os politiqueiros cedem, mas, aproveitando a ausência de uma direção revolucionária organizada, instituem um “governo de defesa nacional” majoritariamente composto por eles próprios. Marx, com razão, classificou-o de “governo da defecção nacional”.

Para continuar a guerra e defender Paris, era entretanto indispensável mobilizar e armar a população, que se incorporou à Guarda Nacional, formando 254 batalhões com 384.000 homens, praticamente toda a população mobilizável. Esse exército popular, coordenado por um comitê central em que predominavam dirigentes operários membros da Internacional, entre os quais Varlin, um dos grandes heróis da Comuna, organizou-se a partir de cada rua e de cada bairro. Sua convivência com as organizações da velha máquina estatal, exército e polícia, notadamente, não podia deixar de ser tensa. Mas a iniciativa política estava com as massas. Entre 22 de setembro e o final de outubro de 1870, foram múltiplas e constantes as manifestações, algumas defensivas (contra o truculento chefe de polícia Kératry), outras de propaganda revolucionária.

No dia 31 de outubro, exasperado com as notícias da pouco gloriosa capitulação do general Bazaine em Metz, do fracasso das escaramuças com que o general Trochu, incumbido do comando militar da capital, fingia empenhar-se em romper o cerco prussiano e do insucesso da tentativa, empreendida por Thiers, de obter apoio diplomático das potências européias não envolvidas na guerra, o povo de Paris, guardas nacionais à frente, reúne-se na praça do Hôtel-de-Ville, exigindo a destituição dos incapazes e bradando “Viva a Comuna”. A sede do poder municipal foi ocupada sem luta no fim do dia. O governo de “defesa nacional”, cercado, prometeu convocar eleições. Os revolucionários chegaram a proclamar um governo próprio (com Delescluze, Flourens e Millière), mas enquanto discutiam entre si e negociavam os termos da renúncia de seus prisioneiros, dois deles (Picard e Ferry) conseguiram escapar do Hôtel-de-Ville e alertar os batalhões da guarda nacional dos bairros burgueses, bem como as “brigadas móveis”, compostas de camponeses bretões que não falavam francês. Sem direção coerente, o levante perdeu ímpeto. Para evitar o confronto armado, recuou, com a promessa (que, previsivelmente, não seria cumprida) de que os chefes da sublevação não seriam perseguidos. Em vez de eleições para um novo governo, foi convocado, no estilo do ex-imperador, um plebiscito perguntando “se o governo desfrutava ainda da confiança da população parisiense”. Houve 557.996 votos “sim” contra 62.638 “não”. Se as manobras militares do governo fossem tão hábeis quanto as políticas, talvez os prussianos acabassem batendo em retirada.

Apesar do conforto que lhes trouxera o grande triunfo do plebiscito manipulado, o povo parisiense inquietava os chefes burgueses e aristocratas da “defesa nacional”, entre os quais pontificava o solerte Thiers, muito mais do que os prussianos, com quem, após uma nova série de derrotas em todas as frentes, eles já estavam negociando a capitulação. O frio e mais ainda a fome, feridas abertas no corpo dos pobres, conferiram forte valor de troca a “produtos” até então sem valor de uso. Em novembro, na entrada do inverno, uma ratazana custava de 2 a 3 francos, um cachorro 10 francos o quilo. (O salário diário de um soldado da guarda nacional era de um franco e meio, ou seja, o equivalente de meia ratazana). Não era esta, evidentemente, a dieta de Thiers e parceiros. Não consta que tenham perdido o apetite nem experimentado aquelas carnes exóticas. O problema deles era que, além de famélico e congelado, o povo estava armado. Urgia entender-se de vez com Bismarck para poder cuidar da “ordem social”. No dia 28 de janeiro de 1871, foi assinado um armistício, com duração de três semanas, durante as quais seria convocada “uma Assembléia livremente eleita, que se pronunciaria sobre a questão de saber se a guerra devia continuar ou em que condições a paz devia ser feita”.

Eleita às pressas, sem tempo para nenhuma campanha ou mesmo discussão séria, no dia 8 de fevereiro, com a capital cercada e quarenta e três departamentos ocupados pelo inimigo, a Assembléia refletia os equívocos e fragmentações da situação catastrófica em que se encontrava a França. Os camponeses, boa parte dos quais, como notou amargamente Lissagaray, sequer “podiam dizer onde ficava a Alsácia” , votaram em notabilidades rurais, muitas das quais pertencentes a velhíssimas famílias da aristocracia feudal, como os La Rochefoucauld, Noailles, Broglie, Haussonville, Harcourt, Tocqueville.
 
Nos centros urbanos, triunfaram os republicanos, mas, no conjunto, a direita e, em geral, os partidários da ordem social estabelecida saíram vitoriosos. Reunida em Bordeaux, dia 13 de fevereiro, a Assembléia não perdeu tempo: no dia 15 suprimiu os “trente sous”, ou seja, um franco e meio (o “sou” era uma pequena moeda de bronze ou níquel que valia 1/20 do franco), pagos diariamente aos soldados da Guarda Nacional. Só os que fornecessem a seus oficiais um “certificado de indigência” continuariam a recebê-lo. Para defender a pátria, os pobres teriam assim de reivindicar o estatuto de mendigos. (Note-se que a indústria parisiense empregava, em 1870, cerca de 600.000 trabalhadores; no início de 1871, o número tinha caído para 114.000, dos quais 62.000 mulheres). No dia 10 de março, seguindo a mesma inspiração, foi ab-rogada a moratória de todas as dívidas (aluguéis, promissórias etc.).

Enfim, na madrugada de 18 de março, Thiers lançou traiçoeira tentativa de roubar os canhões que defendiam Paris, para levá-los para longe do povo em armas. Entretanto, executada com incompetente lentidão (faltaram carroças para carregar os canhões), a manobra perdeu o efeito de surpresa. Na colina de Montmartre, onde se encontrava o principal depósito de peças de artilharia, a população, alertada pelas sentinelas da Guarda Nacional, deu o alarme geral. Mesmo as tropas regulares encarregadas do roubo recusam-se a atirar na multidão. Informado do fracasso, Thiers fugiu de Paris para se refugiar em Versalhes, cidade-palácio dos últimos reis da monarquia absoluta, onde chegou, desmoralizado, no dia seguinte. Os generais Lecomte (que em vão tentara fazer suas tropas atirar no povo) e Clément Thomas (um dos carniceiros da repressão em junho de 1848) foram sumariamente executados pela multidão. A guerra franco-prussiana transformara-se em guerra civil entre burgueses e proletários franceses.

Em Paris, no dia 19, o Comitê central da Guarda nacional proclamou-se “novo governo da república”. Mas sua preocupação maior, expressa nos primeiros comunicados que emitiu no mesmo dia, foi convocar o povo “para fazer eleições comunais”, que proporcionariam “a única recompensa” que esperavam, “ver estabelecer a verdadeira República” . Realizadas no dia 26, com calma notável para as dramáticas circunstâncias, elas definiram a composição do “Conselho comunal de Paris”, que passou à história com o nome de Comuna de Paris”. No dia 28, o Comitê central da Guarda Nacional transmitiu-lhe solenemente o poder.

3- Marx e Engels : apoio crítico, solidariedade irrestrita

Entre a queda do regime imperial em 2 de setembro de 1870 e a revolução proletária no dia 18 de março de 1871, Marx e Engels manifestaram, tanto publicamente quanto em sua correspondência, o temor de que a bancarrota política e militar do “baixo império” estimulasse alguma “loucura desesperada”, como seria tentar “derrubar o novo governo quando o inimigo golpeia quase nas portas de Paris”. A ponderação se encontra no segundo manifesto da Internacional sobre a guerra franco-prussiana, datado de 9 de setembro de 1870. No dia 6, congratulando-se com Engels pela ida de Serrailler a Paris, frisou que4 a presença deste era indispensável num momento em que

toda a seção francesa (da Internacional) se pôs a caminho de Paris para ir lá fazer besteiras em nome da Internacional. “Eles” querem derrubar o governo provisório, estabelecer a Comuna de Paris, nomear Pyat embaixador da França em Londres etc. (nós grifamos).

Entrementes, as secções parisienses da Internacional haviam lançado um manifesto cujo “tom patrioteiro (chauvin) mostra quanto os trabalhadores franceses ainda estavam sob o domínio da fraseologia vazia e confirma todas as apreensões de Marx e de Engels” . Este, no dia 7, assim as expressou àquele:

Esses homens, que suportaram Badinguet durante vinte anos, que, seis meses atrás, não puderam impedir que ele obtivesse seis milhões de votos contra um milhão e meio e que sem razão ele os lançasse contra a Alemanha, essa gente exige agora, porque os alemães vencedores lhes deram de presente uma república –e que república!- que os alemães deixem imediatamente o solo sagrado da França, senão : guerra até o fim. Continuam a imaginar como outrora que a França é superior, que seu solo foi santificado em 1793 e que nenhuma das ignomínias praticadas desde então pela França não poderia profaná-la, que a palavra República é sagrada” .

Entretanto, a partir do momento em que os operários de Paris tomaram o poder, tanto Marx quanto Engels ocuparam firmemente o lugar que lhes cabia no combate revolucionário. A solidariedade com a Comuna passou adiante de qualquer outra consideração, como mostram os textos escritos "em cima" dos acontecimentos, na febril agitação do grande combate histórico. Os de Marx compreendem as cartas diretamente enviadas a dirigentes do proletariado revolucionário (Serrailler , Frankel, Varlin), quase todas perdidas, três cartas preservadas para correspondentes alemães, dois projetos de redação A guerra civil na França, Chamamento do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, o primeiro, redigido provavelmente em abril e início de maio de 1871; o segundo antes do massacre desencadeado em 21 de maio, já que Marx nele se refere ao previsivelmente trágico desfecho como ainda não tendo ocorrido (diz “se eles vencerem” referindo-se a Thiers e sócios) e, enfim, o texto final, escrito entre 21 e 30 de maio, durante e logo após a “semana sangrenta”.

No dia 6 de abril de 1871, três semanas apenas após a tomada do poder pelo proletariado parisiense na gloriosa jornada de 18 de março, Marx, em carta endereçada a Wilhelm Liebknecht, expressa a solidariedade irrestrita e a admiração veemente que lhe suscitava o heróico “assalto ao céu” e que o faziam acompanhar com apaixonada concentração cada episódio da grande tragédia histórica que se desenrolava na capital da França, sem contudo perder a lucidez crítica :

“Os parisienses sucumbem, é evidente, e por culpa deles próprios, mas uma culpa que se deve, em suma, a um excesso de honnêteté . O Comitê Central e, mais tarde, a Comuna deixaram a Thiers, esse maléfico aborto , tempo para concentrar as forças inimigas ; 1) porque não quiseram, por tolice, começar a guerra civil, como se Thiers não a tivesse primeiro começado ao tentar desarmar Paris pela força, como se a Assembléia Nacional chamada a decidir da guerra ou da paz com os prussianos não tivesse desde logo declarado a guerra à república! 2) Para não serem acusados de ter usurpado o poder, perderam um tempo precioso para eleger a Comuna, cuja organização etc. exigiu tempo, em vez de marcharem sobre Versalhes logo após a derrota da reação em Paris (place Vendôme). Não creias numa só palavra do que os jornais escrevem sobre os acontecimentos internos de Paris. Não passam de mentiras e imposturas. Nunca essa suja rabiscadura jornalística burguesa tinha se manifestado com tal estardalhaço”.

Na carta a Kugelmann, datada de 12 de abril de 1871, quando o destino da Comuna ainda não estava selado, Marx, antes de retomar as observações críticas formuladas uma semana antes na carta a Liebknecht (não ter tomado a iniciativa militar e ter perdido, com o processo eleitoral, tempo decisivo para o destino da revolução), chama a atenção de seu correspondente para a conclusão do 18 Brumário de Luís Bonaparte :

“(nela) saliento, como verás se a releres, que a próxima tentativa da revolução na França deverá consistir não mais em transferir para outras mãos a máquina burocrática militar, como ocorreu até agora, mas em destruí-la. É a condição primeira de qualquer revolução verdadeiramente popular no continente. É também o que tentaram nossos heróicos camaradas de Paris.[…] A história não conhece exemplo tão grandioso. Se sucumbirem, somente a ‘alma bondosa’ deles será a causa.”

A revolução em ato põe em evidência os erros estratégicos. Mas a Kugelmann, que em carta de 15 de abril lamuriava-se das previsíveis conseqüências de uma previsível derrota:

“A derrota privará novamente o movimento operário de seus chefes, por tempo bastante longo. Não subestime esta desgraça! Em minha opinião o proletariado tem no momento muito mais necessidade de educação do que da luta com armas na mão. Imputar o insucesso a um acaso qualquer não é recair no erro que o 18 Brumário censura de maneira tão convincente nos pequenos-burgueses?”

ele responde, em 17 de abril, que

“Seria evidentemente muito cômodo fazer a história se só devêssemos travar a luta com chances infalivelmente favoráveis. De outro lado, esta história seria de natureza muito mística se os ‘acasos’ não desempenhassem nela nenhum papel. Estes casos fortuitos entram naturalmente na marcha geral da evolução e ficam compensados, por sua vez, por outros acasos. Mas a aceleração ou a desaceleração dependem muito de ‘acasos’ semelhantes, entre os quais figura o ‘acaso’ do caráter dos chefes[…]. “

No segundo projeto de redação de A guerra civil na França, quando o círculo de fogo contra-revolucionário se fechava implacável sobre os “communards”, Marx, retomando a análise desenvolvida vinte anos antes no 18 Brumário, declarou enfaticamente que o caráter contra-revolucionário assumido pela dominação burguesa exigia o "império", isto é, a ditadura policial-militar de Napo¬leão III (e, por extensão, a forma ditatorial-militarista e policialesca do Estado capitalista):

“O Estado, que parece ter se erguido acima da sociedade civil, torna-se ao mesmo tempo a estufa de todas as corrupções dessa sociedade. Seu completo apodrecimento e o apodrecimento da sociedade que ele devia salvar foram desnudados pelas baionetas da Prússia, mas esse regime imperial é a tal ponto a forma política inevitável da ‘ordem’, a ordem da sociedade burguesa, que a própria Prússia só pareceu destruir sua sede central em Paris porque a estava transferindo para Berlim.

O Império não é somente, como seus predecessores, monarquia legítima, monarquia constitucional e república parlamentar, uma das formas políticas da sociedade burguesa; ele é ao mesmo tempo sua forma mais prostituída, mais acabada e a última. É o poder de Estado da dominação de classe na época moderna, pelo menos no continente europeu”.

A previsão de Marx concretizou-se não só no fascismo e no nazismo, mas também no "império" num sentido diferente, ainda que não incompatível com aquele utilizado por Marx, a saber o que foi teorizado por Lênin a partir de Hobson e Hilferding : imperialismo, partilha do mundo pelos trustes e cartéis, transferência para os continentes colonizados dos aspectos mais opressivos da exploração capitalista, duas guerras mundiais, invenção e uso da arma nuclear, etc. Mas ela só se confirmou parcialmente. Ao longo da segunda metade do século XX, a democracia liberal, mais exatamente, o liberalismo de conteúdo democrático, economicamente confortado pela pilhagem e exploração imperialista e preocupadíssimo em combater politicamente o poderio soviético, então caminhando para o auge, mostrou-se, em graus variáveis, permeável a múltiplas conquistas trabalhistas e democráticas do movimento operário e sindical. O avanço planetário do comunismo aconselhava aos agentes do capital aceitar reformas para evitar revoluções. Nos países europeus que iniciavam, sob tutela estadunidense, a construção do "mercado comum", a burguesia se compôs com a social-democracia, aceitando reformas avançadas como alternativa à revolução social. Durante mais de trinta anos, o complexo dos direitos trabalhistas incorporados às sociedades burguesas tornou credível o “capitalismo de bem-estar”. Marx não previu essa possibilidade histórica. Sob o forte impacto do massacre da Comuna, enfatizou unilateralmente o pólo fascista (="imperial") do poder de Estado burguês. Entretanto, a Europa do fim do século XX e do início do XXI, atrelada ao furor bélico estadunidense pela máquina de guerra da OTAN, infectada pelo vírus purulento do neofascismo, politicamente desmoralizada pelos governos social-imperialistas de "centro-esquerda", isto é, de neoliberalismo moderado pelo assistencialismo social, volta a dar razão às previsões pessimistas de 1871.

O próprio Marx, entretanto, em alguma medida relativizou, exatamente a propósito da Comuna, a afirmação do caráter irreversivelmente terrorista do Estado burguês. Em carta pouco citada, sem dúvida por suscitar alguma perplexidade, que enviou em 22 de fevereiro de 1881 a F. Domela-Nieuwenhuls , assim se expressou:

“[…] abstração feita de que se tratava de uma simples sublevação de uma cidade em condições excepcionais, a maioria da Comuna não era socialista e nem podia sê-lo. Com uma fraca dose de bom senso, ela poderia entretanto ter obtido de Versalhes um acordo útil a toda a massa do povo, única coisa que era possível atingir naquele momento. Simplesmente botando a mão no Banco da França, teria logrado assustar os versalheses e pôr fim às fanfarronices deles” (nós grifamos).

Não parece fácil, ao menos à primeira vista, harmonizá-la com tudo mais que ele escreveu a respeito da Comuna . Bem analisada, porém, além da evidente diferença de tom, ela só contém uma expressão contestável, aquela que nós sublinhamos. Contestável porque manifestamente superestima a eventual disposição à negociação por parte dos contra-revolucionários. Nem por isso deixa de conter uma boa parte de verdade. Imaginar que a Comuna poderia ter integralmente triunfado, consolidando na França, entre a rainha Vitória e Bismarck, o poder operário, é levar o otimismo bem mais além do que permite o raciocínio estratégico minimamente comprometido com a espessura dos fatos. Se um triunfo completo estava fora do horizonte histórico, alguma negociação se impunha. Se tivessem conquistado Versalhes e se apoderado do ouro do Banco da França, os “communards” poderiam talvez ter tido destino mais propício do que o massacre.

4- A Comuna como concretização da ditadura do proletariado.

Na versão definitiva de A guerra civil na França, Marx expôs as características essenciais do poder político revolucionário da Comuna de Paris. Melhor do que resumir uma síntese como esta, inigualável pela concretude e pela densa precisão, é reproduzir toda a passagem:

A Comuna foi composta de conselheiros municipais , eleitos pelo sufrágio universal nos diversos bairros (arrondissements) da cidade. Eram responsáveis (por seus atos) e revocáveis a qualquer momento. A maioria de seus membros eram, obviamente, operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna devia ser não um organismo parlamentar, mas um corpo em ação, ao mesmo tempo executivo e legislativo. Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada de seus atributos políticos e transformada num instrumento da Comuna, responsável e a qualquer momento revocável. O mesmo ocorreu com os funcionários de todos os outros ramos da administração. Dos membros da Comuna até os escalões inferiores, a função pública devia ser exercida mediante salários de operários.

Ultrapassagem radical das instituições políticas burguesas, nomeadamente da separação liberal dos poderes entre um executivo burocrático e um parlamento de falastrões, a Comuna aboliu a categoria da “representação” (=transferência aos “representantes” do poder dos “representados”). Meros mandatários, os conselheiros municipais não eram donos de seus mandatos, podendo ser destituídos em qualquer tempo pelo povo soberano. As funções públicas, políticas ou administrativas, remuneradas com salários equivalentes aos dos operários, deixavam de ser uma sinecura. Enfim, a Comuna retomou o princípio federativo da Convenção Nacional de 1792, organizando-se sobre a base do poder local.

Embora não conheçamos nenhum escrito de Marx posterior a 1871 que retome explicitamente a análise da dinâmica social da “forma republicana”, parece-nos evidente, à luz da experiência da Comuna e a despeito dela ter apenas esboçado, numa cidade duplamente sitiada, e num curtíssimo período histórico, a forma do poder político do proletariado, que as questões conexas da “república social” e da democracia já não mais podiam se colocar como antes. Em especial, o fato de que a república tenha sido preservada na França sobre a paz de cemitério imposta pelo massacre dos “communards” mostrou que ela era compatível com a conservação das relações capitalistas de produção, como continua sendo, cento e trinta anos depois, sob o nome de “democracia liberal”, sob a tutela financeira, diplomática e militar do império estadunidense. Mesmo na mais democrática república burguesa, o poder do dinheiro tende a manter o dinheiro no poder. A miséria política da Itália berlusconizada não nos deixa mentir.

Coube a Engels, que sobreviveu doze anos a seu amigo de sempre, tirar as conclusões teórico-programáticas e táticas da nova situação. Já não era mais possível considerar a república a forma política da transformação social no continente europeu, como fizera Marx no 18 Brumário. Ela representa, sem dúvida, um avanço relativamente às formas imperiais do poder de Estado, resultantes, como o Reich alemão, da centralização monárquica de um poder de origem feudal, ou, como o II Império francês, da manipulação reacionária de plebiscitos. Mas, como ele observa no final da Introdução à edição alemã de 1891 de A guerra civil na França (em que presta homenagem aos vinte anos da epopéia de 1871, cujo desenrolar acompanhara, como Marx, passo a passo), referindo-se especialmente à Alemanha de então, onde prosperava “[..] a veneração supersticiosa do Estado e de tudo que a ele se refere”:

“Acreditam ter dado um passo prodigiosamente audacioso ao se libertarem da fé na monarquia hereditária e entusiasmarem-se pela república democrática. Na realidade, porém, o Estado nada mais é do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra e isso, bem entendido, não menos numa república democrática (nós grifamos) do que na monarquia…".

Mas é na peroração final dessa Introdução que Engels formula a mais importante lição histórica da epopéia dos “communards” :

"Ultimamente o filisteu social-democrata foi tomado de um terror sagrado ao ouvir pronunciar a expressão ditadura do proletariado. E bem, senhores, querem saber com o que se parece essa ditadura? Olhem para a Comuna de Paris. Era a ditadura do proletariado".

Engels voltou a se referir à Comuna em 1895, ano de sua morte, na Introdução a As lutas de classe na França 1848-1850, coletânea de artigos de Marx que até então não tinham sido reunidos em forma de livro. Com um olho posto nos franceses e outro nos alemães que, servindo-se melhor do que aqueles do sufrágio universal instituído por Bismarck em 1866, haviam conferido ao partido socialista cerca de 2 milhões de votos , discute a tática do movimento operário à luz de meio século de combates, de Paris em 1848 e 1871 a Berlim em 1895:

“Com a Comuna de Paris, acharam que o proletariado combativo estava definitivamente enterrado. Mas, ao contrário, é da Comuna e da guerra franco-alemã que data seu mais formidável desenvolvimento. A completa transformação de todas as condições da guerra pelo recrutamento de toda a população apta a empunhar as armas em exércitos cujos efetivos se contam por milhões, as armas de fogo, os obuses e os explosivos de efeito desconhecido até então[…] puseram bruscamente fim ao período das guerras bonapartistas e asseguraram o desenvolvimento industrial pacífico, tornando impossível qualquer guerra que não seja uma guerra mundial de inédita crueldade e cujo desfecho seria absolutamente incalculável”

A estupenda compreensão histórica de Engels permitiu-lhe prever, dezenove anos antes do desencadeamento da grande carnificina liberal-imperialista, a “inédita crueldade” que assumiria “uma guerra mundial”. (Que diria de Hiroshima e de Nagasaki?). Mas, no horizonte histórico da Europa de 1895, era razoável supor essa perspectiva catastrófica possível, mas não provável. Combinada ao avanço eleitoral do partido socialista alemão, que tinha resistido vitoriosamente a doze anos de ilegalidade (1878-1890), a nefasta perspectiva dos horrores de uma eventual guerra mundial tornava plausível a hipótese de um “desenvolvimento industrial pacífico”. Por isso, analisando concretamente a situação concreta, considerou tática correta, para a Alemanha de então, a participação nas eleições e não as formas armadas e insurrecionais de luta.

Em si mesmas, as alternativas insurreição ou voto, luta armada ou luta pacífica, são táticas, posto que concernem aos meios (forma de luta e de organização) e não aos fins (o programa comunista). Como, porém, meios e fins se interpenetram dialeticamente na lógica da ação, a linha divisória entre decisão tática e objetivo programático é fugidia e imprecisa. Dessa imprecisão aproveitaram-se os oportunistas de então para deturpar a análise de Engels. Cortaram do texto da Introdução tudo aquilo que não convinha à tese de que a luta política da classe operária deveria ater-se aos métodos eleitorais, de maneira a sugerir insidiosamente que era essa a lição que Engels tinha tirado do massacre da Comuna. Engels, porém, viveu ainda o suficiente para desmascará-los em duas de suas últimas cartas, uma de 1º de abril de 1895, endereçada a Kautsky, outra, escrita em francês dois dias depois e endereçada de Londres a Paul Lafargue:

A Kautsky ele diz: "Vejo hoje com espanto no Vorwaerts (órgão central da social-democracia alemã, do qual W. Liebknecht era o chefe de redação), um extrato de minha introdução, reproduzido sem meu conhecimento e arranjado de maneira a me fazer aparecer como um adorador da legalidade a qualquer preço. Por isso tanto maior é meu desejo de que a introdução apareça sem cortes em Neue Zeit (órgão teórico da social-democracia alemã) afim de que esta impressão vergonhosa seja apagada. Direi muito claramente a Liebknecht minha opinião sobre este assunto, bem como àqueles, sejam quem forem, que lhe deram esta ocasião de desnaturar minha opinião" (Carta a Kautsky; nós grifamos).

Em 3 de abril, ele precise a Paul Lafargue sua crítica e fixa sua posição:

"W. [Liebknecht] acaba de me pregar uma bela peça ("joli tour"). Ele extraiu de minha introdução aos artigos de Marx sobre a França de 1848-1850 tudo que pode lhe servir para sustentar a tática a todo custo pacífica e antiviolenta que lhe apraz defender, há algum tempo[…]. Mas essa tática, eu só a preconizo para a Alemanha de hoje e ainda assim com muita reserva. Para a França, a Bélgica, a Itália, a Áustria, essa tática não poderia ser inteiramente seguida e, para a Alemanha, ela poderá amanhã se tornar inaplicável" (Carta a Lafargue; itálico no original).

5- Contra a paz dos cemitérios

A história não confirmou a expectativa otimista da Introdução de 1895. Longe de desenvolver-se pacificamente, a grande indústria gerou trustes e cartéis monopolistas, empenhados, com apoio da máquina bélica de seus Estados respectivos, em tenaz disputa pelos territórios coloniais e pelo controle do mercado mundial. A despeito do protesto de Engels, a peça que lhe pregou W. Liebknecht continuou a inspirar o “pacificismo” dos chefes da II Internacional. Apresentando as eleições e a eventual conquista da maioria parlamentar pelos social-democratas como via decisiva, senão única, para o socialismo, eles desarmaram politicamente a classe operária. A traição é um poço sem fundo. Ao estourar a grande guerra entre as potências européias, confirmando a antevisão de Engels, aqueles mesmos dirigentes oportunistas, que em respeito à ordem vigente, haviam erigido os métodos pacificamente eleitorais em via exclusiva para o socialismo, aderiram, sempre ordeiros, aos métodos armados de solução dos conflitos internacionais. Haviam pregado às massas a bovina resignação dos currais. Postos diante da violência radical da guerra, passaram a pregar o também resignado caminho do matadouro. Votaram, em seus respectivos parlamentos, a favor dos créditos bélicos e apoiaram os governos de seus países na transformação da força de trabalho em carne de canhão. Reduziram-se assim a lava e a magma ensangüentadas as exaltantes esperanças (partilhadas até 1914 por toda a II Internacional) de que a classe operária européia, emancipando-se, emancipasse a humanidade.

Para reconstruir o movimento revolucionário do proletariado, desmoralizado pela prostituição guerreira da maioria dos chefes social-democratas, cumpria discernir, em plena carnificina, as linhas de ação que permitiriam travar a guerra de classes contra a guerra imperialista. A estatura histórica e intelectual de Lênin assumiu toda sua grandeza ao enfrentar vitoriosamente essas gigantescas tarefas históricas. A ênfase na violência revolucionária e na destruição da máquina do Estado burguês, nas quais os filisteus e hipócritas vêem a prova de sua mentalidade “totalitária”, corresponde ao grito de guerra contra a guerra, de luta de vida ou morte contra os mercadores de canhões e outros matadores profissionais, portanto à necessidade de destruir os aparelhos e arsenais bélicos. (Hoje, com o acúmulo de meios nucleares de destruição, ela é ainda mais premente do que ontem).

A Comuna de 1871 ofereceu a Lênin, entre muitas outras lições, a mais importante referência histórica de O Estado e a Revolução, obra decisiva para a reativação do marxismo revolucionário. Lembrando que ela já provocara a única retificação introduzida no Manifesto comunista por seus autores, no prefácio da edição alemã de 1872 (“a Comuna demonstrou[…] que a classe operária não pode se contentar de tomar a máquina do Estado, toda pronta, e de fazê-la funcionar a seu próprio serviço”), ele enfatiza a necessária conseqüência que Marx e Engels tiraram desta constatação: quebrar com uma revolução violenta a máquina do Estado . Retificando, por sua vez, perante a nova situação histórica, a ressalva que fizera Marx na carta a Kugelmann de 12 de abril de 1871, de que no continente europeu a revolução teria de ser violenta, ele argumenta que, aceitável em 1871, "quando a Ingla¬terra era ainda um modelo de país puramente capitalista, mas sem milita¬rismo e numa larga medida, sem burocracia", onde portanto "a revolução[…] parecia possível e o era, com efeito, sem (grifado por Lênin) destruição prévia da máquina do Estado", a restrição ao "continente" da exigência de quebrar com uma revolução violenta a máquina do Estado, não era mais válida "hoje" (em 1917), "época da primeira grande guerra imperialista", em que a "Inglaterra, como a América, maiores e últimos representantes da 'liberdade' anglo-saxônica no mundo inteiro (ausência de militarismo e de burocra¬tismo) se atolaram completamente no pântano europeu, lamacento e sangrento, das instituições militares e burocráticas" . O Estado é máquina de guerra: guerra de classes como em 1871, guerra inter-imperialista, como em 1914.

Os chefes oportunistas da II Internacional tinham pensado exorcizar o espectro da guerra civil atendo-se estritamente aos métodos eleitorais e parlamentares. Mas ao ocultarem a perspectiva da violência (à qual os exploradores nunca renunciam), conseguiram apenas transferi-la da luta de classes para a guerra inter-imperialista. Em si, a paz é sempre preferível à guerra, como a vida é preferível à morte. Mas quando o apego exclusivo às formas pacíficas de luta se converte sub-repticiamente em renúncia aos princípios programáticos, a tática eleitoral e as polêmicas parlamentares passam a servir, inconfessadamente, a uma outra estratégia, a da colaboração de classes. Desencadeada a guerra imperialista, os social-patriotas, continuaram ordeiros e disciplinados, mas agora para o fornecimento de carne para canhão. Haviam colaborado com a paz social; passaram a colaborar com a paz dos hospitais e cemitérios, contribuindo para que milhões de proletários fossem enviados parra morrer ou ser mutilados nos campos de batalha.

As questões táticas não são, em si mesmas, questões de princípio. Mesmo porque não dependem de uma fria escolha técnica. Não há a melhor tática em si, somente táticas adequadas à situação concreta. Até a insurreição de março 1871, Marx opôs-se enfaticamente a um levante proletário em Paris. Quando, porém, a violência revolucionária das massas, respondendo à violência contra-revolucionária da classe dominante, assumiu formas insurrecionais, ele manifestou de todas as maneiras que pôde sua profunda solidariedade com o combate do povo parisiense, mesmo sabendo serem muito duvidosas as perspectivas de sucesso. Na hora dos braseiros, olhou para a luz. Sua atitude foi muito bem resumida por Lênin:

“Mas, em que pesem todos os erros, a Comuna é o mais grandioso modelo do mais grandioso movimento operário do século XIX. Marx avaliava altamente o alcance histórico da Comuna: se, quando a quadrilha de Versalhes empreendeu a traiçoeira tentativa de apoderar-se das armas do proletariado parisiense, os operários houvessem-nas deixado arrebatar sem luta, a funesta desmoralização que semelhante fraqueza teria semeado nas fileiras do movimento proletário haveria sido muitíssimo mais grave do que o dano ocasionado pelas perdas que sofreu a classe operária no combate em defesa de suas armas” .

Observamos acima que a vitória dos “communards” estava fora das probabilidades históricas, mas não um desfecho bem melhor que o massacre. Segundo Lênin,

“Dois erros aniquilaram os frutos de uma brilhante vitória. O proletariado deteve-se na metade do caminho: em vez de proceder à "expropriação dos expropriadores", deixou-se arrastar por sonhos a respeito do estabelecimento de uma justiça suprema no país, unida por uma tarefa nacional comum; instituições como, por exemplo, os bancos, não foram tomadas: a teoria proudhoniana da "troca justa" etc. reinava ainda entre os socialistas. O segundo erro consistiu na excessiva magnanimidade do proletariado: em lugar de exterminar seus inimigos, procurou exercer influência sobre a moral deles, menosprezando a importância, na guerra civil, das ações puramente militares e, em vez de coroar sua vitória em Paris com uma decidida ofensiva sobre Versalhes, contemporizou, dando ao governo de Versalhes tempo para reunir as forças das trevas e preparar-se para a semana sangrenta de maio.”

Obviamente, tivessem os “communards” se mantido no poder, teriam podido retificar erros iniciais. Por isso, a segunda falha foi mais grave do que a primeira. Não nos parece, porém, que ela deva ser caracterizada em termos de excessiva generosidade. Não que os revolucionários não tenham sido generosos. Thiers e acólitos mandavam matar sumariamente os prisioneiros rebeldes, ao passo que os “communards” executaram alguns poucos chefes reacionários que no passado tinham se ilustrado como carniceiros. Ainda assim, a execução sumária, acima referida, de Clément Thomas e Lecomte, responsáveis pela tentativa de roubo dos canhões que defendiam Paris, foi criticada por dirigentes da Comuna . Mas, segundo o próprio Lênin, estes erros práticos remetem a uma ilusão de fundo:

“Insurgindo-se contra o antigo regime, o proletariado assumiu duas tarefas, uma nacional, outra social: libertação da França da invasão alemã e libertação socialista dos operários do jugo do capitalismo. A reunião dessas duas tarefas constitui a característica mais original da Comuna”.

A burguesia formava, então, o "governo da defesa nacional", sob cuja direção o proletariado devia combater pela independência da nação. Tratava-se em realidade de um governo de “traição do povo", que considerava sua missão lutar contra o proletariado parisiense. Porém, cego por suas ilusões patrióticas, o proletariado não se dava conta disso. A idéia de patriotismo provinha da Grande Revolução do século XVIII; ela tomou conta das mentes dos socialistas da Comuna; e Blanqui, por exemplo, que era sem dúvida alguma um revolucionário e um fervoroso partidário do socialismo, não encontrou melhor título para seu jornal do que o angustioso grito burguês: "A Pátria em Perigo!."

A reunião dessas tarefas contraditórias – o patriotismo e o socialismo – constituiu o erro fatal dos socialistas franceses. No Manifesto da Internacional de setembro de 1870, Marx colocou o proletariado francês em guarda contra o perigo de deixar-se levar pelo entusiasmo de uma falsa idéia nacional[…]” .

Blanqui poderia sem dúvida ter encontrado um título melhor para seu jornal, mas a homenagem que lhe rendeu o próprio Lênin é mais do que merecida. Que tenha havido conjunção do patriotismo e do socialismo é inegável. Afinal, a causa direta do levante popular de 2 de setembro de 1870 foi a indignação geral contra o fiasco militar do decrépito II Império. Mesmo no levante de 18 de março, que teve inequívoco caráter de classe, também estavam presentes motivos patrióticos: os versalheses tentaram roubar de Paris canhões pagos com dinheiro arrecadado do povo para defender-se dos prussianos. Foi exatamente por compreender que os republicanos burgueses preparavam não a resistência, mas a capitulação, que o proletariado assumiu a defesa nacional. Sem dúvida, a França de 1871 não era mais a de 1792. Mas as conseqüências que ele tirou desta constatação parecem-nos demasiado esquemáticas:

[…]profundas mudanças haviam-se operado desde os tempos da Grande Revolução; os antagonismos de classe se agravaram e se a luta contra a reação de toda a Europa unia então o conjunto da nação revolucionária, agora o proletariado já não podia mais confundir seus interesses com os de outras classes, que lhe são hostis. Que a burguesia arque com a responsabilidade da humilhação nacional! A tarefa do proletariado é lutar para emancipar pelo socialismo o trabalho do jugo da burguesia.

Também interessava ao proletariado que a França não se tornasse um protetorado de Bismarck e do II Reich. A presença prussiana em território francês era um fato incontornável, que a Comuna teria de enfrentar se tivesse tomado Versalhes.

6- A Comuna na posteridade

A historiografia de inspiração liberal e social-democrata, empenhada em “desconstruir” não somente o marxismo, mas também a própria idéia de revolução, acusa Marx e, mais ainda, Engels e Lênin, de terem se apropriado da experiência da Comuna, sobre-valorizando a participação dos militantes da Internacional, principalmente dos marxistas. Os liberais franceses, em 1871, estavam do lado dos versalheses e os social-democratas de hoje distinguem-se muito dificilmente dos liberais. Pode-se discutir se a Comuna foi ou não, como sustentaram Engels e Lênin, a primeira expressão concreta da ditadura do proletariado, ou ainda, como dirá Lênin após 1917, considerando a revolução de outubro como a segunda, a primeira etapa da revolução proletária. Sem gastar tempo com polêmicas, atemo-nos, a propósito destas alegações, às observações que seguem.

No que concerne ao peso específico dos militantes marxistas, notaremos apenas que, se não foram os mais numerosos, estiveram entre os mais lúcidos e generosos. Referimos acima que o internacionalista Varlin, bem antes das proletárias de Paris demonstrarem, no combate revolucionário, coragem e determinação igual à dos proletários, havia aberto uma brecha na doutrina preconceituosa de Proudhon (“la femme au foyer”), exigindo direitos iguais para homens e mulheres na cooperativa de poupança dos gráficos de Paris.

Quanto à “ditadura do proletariado”, a expressão não era, sem dúvida, predominante no vocabulário do proletariado parisiense. Mas os revolucionários levavam-na a sério, contrariamente a democracia, cujo valor positivo, ligado ao processo revolucionário de 1789-1794, e preservado, durante a primeira metade do século XIX, enquanto referência histórica das correntes políticas herdeiras do legado daquela revolução, desqualificou-se no Segundo Império. O regime imperial, com efeito, pretendeu dele se apossar, apresentando-se como “democracia plebiscitária”. Conseguiu desacreditá-lo aos olhos dos meios revolucionários. Assim, em 1852, Blanqui ironizava : “O que é então, por favor, um democrata? Essa é uma palavra vaga, banal, sem acepção precisa, uma palavra de borracha” .A dinâmica revolucionária de 1870-1871 revalorizou o léxico político. Os “comunards” rejeitaram a “república burguesa”, preconizando a república democrática e social. As palavras-chave de seu vocabulário eram comuna, república e federação.

Enfim, para concluir, examinaremos, com o apoio da historiografia marxista francesa posterior, a pertinência daquela que nos parece a mais decisiva observação crítica de Marx, retomada por Lênin, a respeito do trágico desfecho da Comuna. Reconhecendo plenamente a pertinência daquela observação, Emile Tersen e Jean Dautry analisaram a fundo o que chamam de “inação militar” do Comitê Central das Guarda Nacional. Lembram que, no dia 19 de março, “o homem de Versalhes” (Thiers) “conseguiu dificilmente reunir em torno da Assembléia uma tropa de 12.000 homens extenuados, desanimados, prontos todos a entrar em acordo com a insurreição parisiense. Ele precisava, antes de mais nada, ganhar tempo[…]“ . Tanto mais que, em sua fuga precipitada no dia 18 de março, os contra-revolucionários deixaram para trás mais de 400.000 fuzis, 1.740 canhões (dos quais apenas 320 foram utilizados) e a munição correspondente .

Durante vários dias, segundo os mais diversos testemunhos, Versalhes ofereceu o espetáculo de uma “cidade em pânico” . A Guarda Nacional parisiense, bem armada e municiada, exaltada pela vitória de 18 de março, “podia avançar sobre Versalhes, afastar, na certa sem sequer travar combate , os magros obstáculos que se opusessem a sua marcha, talvez capturar a Assembléia[…]. No mínimo, o resultado teria sido assegurar à capital uma larga zona de segurança e de abastecimento, permitindo ao campesinato pobre fazer causa comum com Paris e chegando à luta armada, que de qualquer modo era inevitável, em bem melhores condições” . Por que permaneceu inativa? As falhas e irresponsabilidades de alguns de seus comandantes oferecem apenas pequena parte da explicação. O inepto Lullier que deixou sair livremente de Paris, em 23 de março, o 69º regimento de linha (de resto, revelou-se, mais tarde, um traidor covarde) , foi logo substituído, no comando militar revolucionário, por três enérgicos militantes, Brunel, Duval e Eudes. Muito popular no bairro de Gobelins, o coronel Duval, em 18 de março, tomou a prefeitura de polícia e em 26 de março foi eleito para a Comuna, que o designou membro da comissão executiva e da comissão de guerra, conferindo-lhe ademais o posto de general. Já no dia 18, ele insistira junto ao comitê central da Guarda Nacional em prosseguir a ofensiva popular rumo a Versalhes. Só foi ouvido no dia 3 de abril, quando as forças da contra-revolução já se tinham rearticulado. Ainda assim, tentou atingir Versalhes pelo sul. Cercado pelos versalheses, foi fuzilado sumariamente, em Petit Bicêtre, no dia 4 de abril.

Um dos principais fatores invocados para explicar a inoperância militar do Comitê Central logo em seguida ao 18 de março foi o temor de um ataque prussiano em apoio aos versalheses. O temor existia, mas o argumento esquece que Bismarck só decidiu apoiar os versalheses depois que (a) o caráter revolucionário do levante de 18 de março ficou evidente; (b) Thiers cedeu a todas suas exigências. Desde então, engrossando suas tropas com prisioneiros de guerra libertados “ad hoc” pelo comando prussiano, Thiers foi adquirindo a grande superioridade bélica que lhe permitiu aniquilar a Comuna.

Ao longo do mês de abril e no início de maio, travou-se a batalha pelas zonas rurais circundantes e pelos subúrbios. Os “communards” sofreram trágicos reveses, que não se explicam todos pela superioridade de armamentos do inimigo. Alguns decorreram de pura e simples irresponsabilidade, ou, talvez, traição, mas o assunto é controvertido entre os historiadores; o mais provável é que tenham ocorrido ambas. O pior ocorreu na noite de 3 para 4 de maio, no reduto de Moulin Saquet, defendido por 500 homens da Guarda Nacional. Os versalheses, tendo dominado as sentinelas, massacraram cerca de 50 soldados da Comuna que dormiam em suas tendas, levando 5 peças de artilharia e cerca de 200 prisioneiros.

Mesmo a semana de agonia (21 a 28 de maio) começou com falhas militares. No domingo, 21, muita gente tinha comparecido a um concerto nas Tuileries, em benefício das viúvas e dos órfãos, sem levar em conta que o número de umas e de outros iria logo mais aumentar exponencialmente. Às 15h00, um certo Jules Ducatel, empregado dos serviços viários (sem dúvida um dos numerosos agentes da reação, que tinha organizado em Paris toda uma rede de traidores) assinalou às tropas atacantes que o setor da porta de Saint-Cloud estava desprovido de defensores. “Ele subiu no bastião 64, agitou um lenço branco e gritou para os soldados entrincheirados: Entrem, não há ninguém”. Destacamentos do 37º de linha entraram então em Paris onde a última luta ia começar” .

É verdade que a violência da artilharia versalhesa explica em parte o recuo dos defensores das portas de Paris. Mas, como nota Tersen, lembrando que no dia 19 de maio, enquanto o bombardeio contra-revolucionário se fazia mais intenso, a Comuna estudava a questão dos teatros, seguramente menos urgente, fica clara sua “indiferença[…]perante as questões militares”. Não, porém, a de todos os seus membros. Dombrowski , que ocupa lugar de primeiro plano nos anais da luta armada revolucionária, nomeado comandante militar geral da Comuna no início de maio, quando, infelizmente, a correlação de forças já era demasiado desfavorável, informado, com muito atraso, de que os versalheses tinham penetrado em Paris, solicitou imediatamente reforços para repelir os atacantes. Não os tendo recebido, evacuou, após denodada resistência, os bairros de Auteuil e Passy. Daí em diante, o infernal círculo de fogo da burguesia contra-revolucionária foi se apertando, implacável, em torno dos proletários que tinham pretendido tomar o céu de assalto. No dia 23, Dombrowski foi mortalmente ferido numa barricada da rua Myrtha, em Montmartre. O “communard” Vermorel, que também tombaria logo depois, pronunciando seu elogio fúnebre, proclamou-o “herói da República universal”. Milhares de “communards” merecem, com certeza, o mesmo título, inclusive o próprio Vermorel.