A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática
«A Deus rogando, e com o maço dando», reza o ditado com que se pretende contrariar o fatalismo religioso. «Às circunstâncias e ao processo rogando», dizemos nós, «e com o maço dando!». De contrário, alguém será um economista fatalista e não um social-democrata revolucionário. Leio na resolução da conferência menchevique:
«Somente num caso deveria a social-democracia, por iniciativa própria, dirigir os seus esforços no sentido de se apossar do poder e manter nele tanto quanto possível, ou seja, no caso de a revolução se propagar aos países adiantados da Europa, àqueles em que as condições para realizar o socialismo já alcançaram certa maturidade. Antes de mais, o menos que se pode é perguntar: será possível «dirigir os esforços» para outra coisa e não por iniciativa própria? Por outro lado, o que resultaria, se invertêssemos a frase, assim: «Apenas num caso se propagaria a revolução da Rússia aos países adiantados da Europa Ocidental, a saber, se o POSDR conseguisse tomar em suas mãos o poder e manter-se nele muito tempo»?…
Se nos pomos a fazer prognósticos, porque não este? Nunca impede o máximo de energia. Para mais, ninguém fala da tomada do poder pelo partido; somente se fala da participação dirigente, na medida do possível, do partido na revolução, quando este tenha o poder nas suas mãos (se chega esse momento) e quando se façam esforços para arrebatar-lho de novo.
Quanto a se é possível e tolerável essa ditadura democrática do proletariado, é de interesse fornecer algumas informações acerca da história da Comuna de Paris, que foi um poder revolucionário e fez a revolução não só de baixo mas também de cima.
Foi a Comuna uma ditadura do proletariado?
A Introdução de Engels à terceira edição de «A Guerra Civil em França» acaba nos seguintes termos:
«Ultimamente, as palavras «ditadura do proletariado» voltaram a consumir em santo horror o filisteu social-democrata. Pois, bem, senhores, quereis saber o que é que recorda esta ditadura? Olhai a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!»
Porém, entre ditadura e ditadura há uma grande distância! Porventura foi esta uma ditadura do proletariado verdadeira e pura, no sentido da composição nitidamente social-democrata dos seus membros e do carácter das suas tarefas práticas? De maneira nenhuma! O proletariado consciente (apenas mais ou menos consciente), quer dizer, os membros da Internacional estavam em minoria; a maioria do governo era de representantes da democracia pequeno-burguesa. Um dos novíssimos investigadores (Gustavo Jaeckh) disse-o sem a menor ambiguidade. O Comité Central da Guarda Nacional, por exemplo, era constituído por trinta e cinco membros, sendo apenas dois socialistas (isto é, membros da Internacional) em compensação, eles (Varlin e Avoine) tinham uma influência enorme entre os seus companheiros de mando. Do mesmo Comité escreveu Lissagaray o seguinte:
«Eram os seus membros agitadores conhecidos? Socialistas? Absolutamente; eram pessoas de nomes desconhecidos: pequenos burgueses, lojistas e empregados subalternos».
Não obstante, Varlin e Avoine fizeram parte desse Comité. Posteriormente, foram incluídos também Pindy, Ostyn e Jourde. O Jornal Operário de Nova York, órgão da Internacional, escreveu num artigo de 18 de Julho de 1874:
«A Comuna não foi obra da Internacional; Comuna e Internacional não são o mesmo, mas os membros da Internacional aprovaram o programa da Comuna, levando-o na própria altura muito mais longe do que o seu limite inicial; estes foram, igualmente, os seus mais zelosos e fiéis defensores, pois compreendiam a importância da Comuna para a classe operária».
O «Conselho Geral», que, como se sabe, era encabeçado por Marx, aprovou essa táctica da Federação Parisiense da Internacional; dizia-se no seu manifesto:
«Onde quer que seja e de qualquer forma que se conduza a luta de classes, os membros da nossa associação devem estar nas primeiras filas».
No entanto, os membros da Internacional, nossos predecessores, não desejavam, em absoluto, fundir-se com a Comuna; sempre defenderam a sua particular organização de partido nitidamente proletário. Jaeckh escreve:
«O Conselho Federal da Internacional soube assegurar em seguida a influência dos seus representantes no governo revolucionário».
Sirva de magnífica demonstração da independência da organização proletária de então, apesar da participação dos seus representantes no governo, o seguinte convite:
«No próximo sábado, 20 de Maio, à uma em ponto, realizar-se-á uma assembleia urgente do Conselho Federal da Associação Internacional dos Trabalhadores. Convidam-se a assistir os membros da Comuna pertencentes à Internacional. Terão de prestar contas da posição que têm ocupado na Comuna, bem como da causa e essência das divergências surgidas no seu seio. Para assistir, é preciso o cartão de filiado».
Eis outro documento curioso, a resolução da referida assembleia urgente:
«A Associação Internacional dos Trabalhadores adoptou na assembleia urgente de 20 de Maio a seguinte resolução: «Após ouvir os associados, que são ao mesmo tempo membros da Comuna, a assembleia considerou a sua conduta inteiramente leal e decidiu pedir-lhes que continuem a defender por todos os meios os interesses da classe operária e a procurar manter a unidade da Comuna, a fim de lutar com vigor contra os versalheses. Ademais, recomendou que se consiga a total publicidade das sessões da Comuna e se anule o parágrafo terceiro do seu Manifesto, por incompatível com o direito de o povo comprovar os actos do poder executivo, neste caso, do Comité de Saúde Pública»».
Assistiram à assembleia seis membros da Comuna; outros três enviaram as suas desculpas. Em 19 de Março, Lissagaray contou na Comuna vinte e cinco representantes da classe operária, mas nem todos pertenciam à Internacional: inclusivamente, na altura, a maioria alinhava ao lado da pequena burguesia.
Não cabe aqui falar da história da Comuna nem do papel que nela desempenharam os membros da Internacional. Limitar-nos-emos a dizer que na Comissão Executiva estava Duval; na das Finanças Varlin, Jourde e Beslay; na Militar, Duval e Pindy, na de Segurança Pública, Assi e Chalain, e na do Trabalho, Malon, Frankel, Theisz, Dupont e Avrial. Em 16 de Abril, depois das novas eleições, entraram vários membros mais da Internacional (entre eles Longuet, genro de Marx), mas também havia na Comuna inimigos declarados da Internacional, como Vésinier, por exemplo. No fim da Comuna, as finanças estavam nas mãos de dois membros de muito talento da Internacional: Jourde e Varlin.
O Comércio e o Trabalho achavam-se debaixo da direcção de Frankel; Correios, Telégrafo, a Casa da Moeda e os impostos directos, eram igualmente governados por socialistas. Contudo, como disse Jaeckh, a maioria dos ministérios mais importantes permanecia nas mãos da pequena burguesia.
Assim, não resta a menor dúvida de que Engels, ao chamar ditadura do proletariado à Comuna, se referia unicamente à participação, ideológica, e além disso dirigente, dos representantes do proletariado no governo revolucionário de Paris.
Mas, porventura, a meta imediata da Comuna era a revolução socialista completa? Não podemos ter essas ilusões.
Efectivamente, no famoso Manifesto do Conselho Geral sobre a Comuna, escrito, sem dúvida, por Marx, diz-se:
«A Comuna havia de servir de alavanca para extirpar os alicerces económicos sobre os quais assenta a dominação de classe».
E mais adiante:
«A classe operária não esperava da Comuna nenhum milagre. Os operários não têm nenhuma utopia pronta para implantar imediatamente. Sabem que para conseguir a sua própria emancipação, e com ela essa forma superior de vida para que tende irresistivelmente a sociedade actual, terão de passar por toda uma série de processos históricos, os quais transformarão as circunstâncias e os homens. A Comuna não tem de realizar nenhum ideal, mas simplesmente de libertar os elementos da nova sociedade que a velha sociedade burguesa agonizante traz no seu seio».
Todas as medidas e toda a legislação social da Comuna apresentavam um carácter prático, não utópico. A Comuna realizava o que hoje chamamos «programa mínimo do socialismo». Para o que se fez justamente neste capítulo, acrescentamos uma citação da já mencionada Introdução de Engels:
«Em 26 de Março foi eleita, e em 28 proclamada, a Comuna de Paris. O Comité Central da Guarda Nacional, que até então tivera o poder em suas mãos, demitiu a favor da Comuna, depois de ter decretado a abolição da escandalosa «polícia de costumes» de Paris. Em 30, a Comuna aboliu o serviço militar obrigatório, bem como o exército permanente, e declarou única força armada a Guarda Nacional, em que deviam alistar-se todos os cidadãos capazes de empunhar as armas. Perdoou as rendas de casa em atraso desde Outubro de 1870 a Abril de 1871, creditando em conta, para futuras dívidas de aluguer, as importâncias já adiantadas, e suspendeu a venda de objectos hipotecados nas casas municipais de penhores. No mesmo dia 30 foram confirmados nos seus cargos os estrangeiros eleitos para a Comuna, pois a «bandeira da Comuna é a bandeira da República mundial.» A 1 de Abril, acordou-se em que o soldo máximo que um funcionário da Comuna poderia ganhar, e portanto os próprios membros desta, não deveria exceder 6000 francos (4800 marcos). No dia seguinte, a Comuna decretou a separação da Igreja e do Estado, bem assim a supressão de todas as verbas consignadas no orçamento do Estado para fins religiosos, declarando propriedade nacional os bens da Igreja; em consequência disto, ordenou-se a 8 de Abril, a eliminação nas escolas de todos os símbolos religiosos, imagens, dogmas, orações, numa palavra, de «tudo o que cai dentro da órbita da consciência individual», ordem que se foi aplicando gradualmente. No dia 5, dado que as tropas de Versalhes fuzilavam diariamente os combatentes da Comuna capturados por elas, promulgou-se um decreto ordenando a detenção de reféns, mas esta disposição nunca se cumpriu na prática. No dia 6, o 137.º Batalhão da Guarda Nacional arrancou da rua a guilhotina e queimou-a publicamente, por entre o entusiasmo popular. A 12, a Comuna resolveu que a Coluna Triunfal da praça Vendôme, fundida com o bronze dos canhões tomados por Napoleão depois guerra de 1809, fosse demolida, como símbolo de chauvinismo e incitação aos ódios entre as nações.
Esta disposição foi levada a efeito em 16 de Maio. Em 16 Abril, a Comuna determinou que se abrisse um registo estatístico de todas as fábricas encerradas pelos patrões e se preparassem os planos para renovar a sua exploração com os operários que antes trabalhavam nelas, organizando-as em sociedades cooperativas, e que se planeasse também a organização de todas estas cooperativas numa grande União. Em 20, a Comuna declarou abolido o trabalho nocturno dos padeiros e suprimiu igualmente as agências de empregos, que durante o Segundo Império eram um monopólio de certos indivíduos designados pela polícia, exploradores de primeira fila dos operários. Estes escritórios foram transferidos para as repartições dos vinte distritos, ou bairros, de Paris. Em 30 de Abril, a Comuna ordenou o encerramento das casas de penhores, fundamentando-se em que eram uma forma de exploração privada dos operários, oposta aos direitos de estes disporem dos seus instrumentos de trabalho e de crédito. Em 5 de Maio, decidiu a demolição da Capela Expiatória, que havia sido erigida para redimir a execução de Luís XVI».
Como é sabido, graças, em parte, aos erros cometidos e à sua excessiva nobreza, a Comuna não conseguiu vencer a reacção; os communards pereceram; pois bem, denegriram ou desprestigiaram por isso a causa do proletariado, como grasna Martinov, qual pássaro de mau agouro, no que respeita a ser possível um governo revolucionário na Rússia? É evidente que não a denegriram nem a desprestigiaram, pois Marx escreveu da Comuna:
«O Paris dos operários, com a sua Comuna, será eternamente exaltado como arauto de uma nova sociedade. Os seus mártires têm um santuário no grande coração da classe operária. E aos seus exterminadores, a história já os amarrou a um pelourinho eterno, do qual não lograrão redimi-los todas as preces da sua clericalha».
Parece-nos que a nossa breve informação histórica tem algo de instrutivo. Antes de mais, ensina-nos que a participação de representantes do proletariado socialista, com a pequena burguesia, num governo revolucionário, é perfeitamente admissível, por princípio, e absolutamente obrigatória em determinadas condições. Ensina-nos, além disso, que a verdadeira tarefa que a Comuna teve de cumprir foi, acima da tudo, o exercício da ditadura democrática e não socialista, ou seja, a aplicação do nosso «programa mínimo». Por último, esta informação recorda-nos que, ao tirarmos ensinamentos da Comuna de Paris, não devemos repetir os seus erros (não tomaram o Banco de França, não empreenderam a ofensiva contra Versalhes, não elaboraram um programa claro, etc), mas os seus passes práticos que tiveram êxito e que apontaram o caminho certo. Não é a palavra «Comuna» o que devemos tomar dos grandes combatentes de 1871, nem repetir cegamente todas as suas directivas; pelo contrário, devemos fazer por que ressaltem as directivas programáticas e práticas correspondentes ao estado de coisas existente na Rússia e que estão formuladas nas palavras: ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses.