Os dois horizontes ou dois lados para uma janela
O horizonte costumava esperá-lo todas as tardes na varanda. Olhavam-se a princípio como a um cumprimento. Depois se entregavam um ao outro de uma maneira tão inefável que só a poesia tentaria algo léxico, mesmo assim, por meios metafóricos. O silêncio do amor, das entregas.
Uma camisa de xadrez azul (quem sabe influência do horizonte) costumava acompanhá-lo junto com uma calça cinza e cheia de “furinhos” conseguidos pelo cigarro. O papel de seda e o fumo também faziam parte desse ritual vespertino (explicação para os furinhos).
Era um homem que só usava as palavras quando a situação exigia-lhe uma posição de comunicação com outras pessoas. ‘Vá pedir a seu pai’, retrucava a mãe quando um dos filhos queria algo e que ela, no fundo, não aprovava. Ela sabia que ele demorava-se a responder, de modo que desistíamos muitas vezes por deter na boca o gosto estranho da espera. Dava pão, água e diversas palavras aos mendigos, contudo. E quando falava, dizia.
Acabo de recordar agora quando ele resolveu falar “dizendo”, dirigiu-se a mim ao ver-me tristonha por estar preocupada com algumas contas pra pagar: ‘não leve a vida tão a sério, minha filha. A gente trabalha tanto e corre atrás desse bendito papel colorido (era como ele chamava o dinheiro) só pra transformar ele em comida pra virar cocô, bebida pra virar mijo e coisa pra virar lixo’. Sorriu um pouco e correu rumo ao fogão onde o leite já fervendo, terminara por derramar.
Os gatos o cobiçavam com veemência, pois pela manhã, ele participava de outro ritual (dentre outros) de invenção cotidiana: limpava e cortava a carne para o almoço. Os gatos o amavam por isso e já davam ignição na felicidade assim que ouviam o barulho da faca sendo amolada na pedra.
Esse era o “assim” de como meu pai vivia em parte.
E a menina retraída que habitava em mim, amava-o com um amor de livro guardado. Queria também aquela atenção dada aos esmeros revelados naquele amor distribuído no barulho da faca em atrito com a pedra, nos olhos alcançados pelos gatos, no passeio da faca limpando e depois cortando a carne. O barulho do amor, das entregas, agora.
É engraçado como as janelas também me lembram meu pai. Ele as abria pela manhã para que o dia clareasse o quarto, a sala, os cômodos possíveis da casa. Ele nem desconfiava de que havia dentro de mim um vão possível de ser clareado com um simples abrir de janelas. ‘O sol já foi se deitar’, disse ele uns dias antes de ir conferir e não voltar mais. E fechou a janela.
Enfim, o livro teve que ser aberto. Uma amiga havia dado a mim de presente no meu aniversário de catorze anos. Descobri a paixão secreta que meu pai tinha por palavras. Disse-as uma a uma completando uma história engraçada, nordestina melancólica. Foi assim que nos amamos por muito tempo em palavras, o resto do amor vinha dos exercícios práticos que as palavras incitam.
Quando fui convidada há alguns anos para recitar num evento cultural num lugar público da pequena cidade onde moro, acho que uma voz que vinha de uma janela do sol disse ao meu ouvido e eu repeti no microfone:
Certas coisas na janela
Meu pai, homem de poucas palavras,
possuía uma certa ingenuidade cabocla,
mas nós víamos bússola em seus olhos.
Lembro-me de suas risadas
quando pra ele eu lia sobre um auto
e uma compadecida.
Depois, lembrávamos de nossa terra.
Histórias de João cambão da Costela do Cão
que passava na rua
e a criançada gritava em refrão:
‘João cambão, Costela do Cão,
trocou a mulher por um pedaço de pão’.
Certas coisas sempre voltam
quando abro a janela.
Marta Eugênia é Especialista em Linguística e Professora de Língua Portuguesa na cidade de Arapiraca em Alagoas. http://eugenico.blogspot.com/