Conclusões

Concluído o trabalho, fica a impressão de termos tratado de décadas de elaboração teórica de Marx. Mas, na verdade, o que fizemos foi analisar um breve, eu diria mesmo um brevíssimo período de sua vida intelectual. Grosso modo, tratamos apenas de três anos dela, um período que vai de 1841, quando da elaboração de sua tese de doutoramento, até 1844, quando redigiu os seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Uma pergunta então nos assola: como foi possível num espaço tão curto de tempo um pensamento transformar-se tanto? Como o Marx idealista, hegeliano, sonhando com a cátedra universitária se transformaria no Marx materialista militante, no revolucionário comunista? O que o levaria a abandonar a companhia alegre dos jovens hegelianos e o seleto Clube de Doutores pela convivência com a rude classe operária europeia e suas organizações? Trocar uma vida estável e confortável por uma vida de sofrimento e de lutas?

Seria bastante difícil, ou mesmo impossível, fazermos qualquer análise séria do desenvolvimento da concepção de mundo de Marx e de sua construção teórica se não buscássemos entender o período histórico conturbado que viveu – as ideias que se agitavam e o surgimento de um movimento operário autônomo – e se não conhecêssemos sua própria vida, as maneiras e os caminhos pelos quais o homem Marx se articulou com a realidade de seu tempo.

Se procurarmos, como fazem alguns, isolar as ideias de Marx da vida real, da historia real, ficaríamos, decerto, atormentados, perdidos, e não conseguiríamos traçar um perfil, nem mesmo provisório, do desenvolvimento intelectual e político do jovem Marx. Um desenvolvimento que teve sua lógica interna e que podemos, grosso modo, dividir em três fases distintas.

O primeiro período começa na adolescência em Triers e tem seu ponto alto na elaboração de sua tese de doutoramento. Nessa fase seu círculo de amizades estava restrito aos meios acadêmicos e sua posição em relação à autocracia prussiana era a de um crítico, um crítico teórico – e mesmo essa crítica teórica concentrava-se, em grande parte, na crítica à religião. Uma fase na qual seus grandes influenciadores foram Bauer e Strauss.

O segundo período nasceu do recrudescimento do regime prussiano, que lhe cassou a possibilidade de seguir a carreira universitária. Tal fato acabou por convencê-lo dos limites da crítica acadêmica e da filosofia especulativa e o fez voltar suas atenções para a imprensa. Marx tornou-se um publicista livre, um propagandista de ideias democráticas e radicais, fazendo da Gazeta Renana um dos principais instrumentos da oposição ao regime. Foi através de sua atividade nesse jornal, primeiro como colaborador e depois como redator-chefe, que entrou em contato com os setores explorados da população, no caso os camponeses pobres. A descoberta do povo real – não-imaginário – transformou sua concepção de mundo e, portanto, sua visão sobre o próprio Homem. O social passou a constituir o centro de suas preocupações. Consolidou-se em Marx o democratismo-revolucionário, e esboçou-se também o embrião de uma concepção materialista de mundo. Nesta fase aproximou-se da ala esquerda dos jovens hegelianos, onde se destacavam figuras como Ruge e Hess.

O terceiro período foi marcado, entre outras coisas, pela descoberta da obra de Feuerbach. Esse encontro lhe propiciou uma nova leitura de Hegel e a negação do idealismo. Tornou-o materialista e fez dele um humanista radical. A aplicação do método Feuerbachiano de inversão sujeito/predicado na análise dos problemas políticos, em especial do Estado, ajudou-o a submeter a teoria do Estado de Hegel a uma violenta crítica. Hegel considerava o Estado a realização da razão absoluta, sendo que o Homem só poderia realizar-se como Homem dentro dele. Marx, ao contrário, afirmou que o Estado era predicado humano, sua própria criação – uma criação que acabou se voltando contra o próprio Homem ao se colocar como ente superior. Por isso a recuperação da essência humana alienada não passava mais apenas pela negação da religião, mas também pela negação do Estado. Negá-los significava destruí-los enquanto instrumentos de opressão e dominação.

O quarto período teve como ponto de partida sua mudança para Paris, a capital da revolução mundial. Ali, juntamente com Arnold Ruge, publicou os Anais Franco-alemães. É nesse período que ocorre sua mais profunda transformação. Foi em Paris que entrou em contato, pela primeira vez, com o proletariado revolucionário e suas organizações. Isso lhe permitiu mudar drasticamente sua perspectiva de mundo. Marx descobriria então que a base de toda a alienação residia nas relações que se desenvolviam na base da economia capitalista – relações estas de exploração. Portanto a emancipação humana deveria necessariamente passar pela emancipação do trabalho alienado – pelo fim da exploração do Homem pelo Homem. E isso somente seria possível com o fim da propriedade privada dos meios de produção. Só o comunismo poderia garantir ao Homem sua emancipação completa. O humanismo deixava assim de ser o humanismo abstrato dos liberais democráticos burgueses para ser um humanismo de classe, proletário.

Pelo que já vimos, podemos afirmar que para Marx a emancipação dos trabalhadores deveria passar, necessariamente, pela transformação radical da realidade que engendrava a sua alienação. A "arma da crítica" deveria, portanto, transformar-se na "crítica das armas".

Durante esses primeiros anos de elaboração teórico-política, o desenvolvimento do conceito de Homem relaciona-se com o de alienação. Os dois termos andam juntos nas obras do jovem Marx e um não pode ser plenamente compreendido sem o outro. Distinguimos, por ordem de aparecimento em suas obras, a alienação religiosa, a alienação política e, por fim, a alienação econômico-social.

Mas será que ao passar da compreensão de uma forma de alienação para outra Marx não estaria automaticamente negando a anterior? Eu diria que não. O que ocorre é na verdade mais um deslocamento de posição de uma relação à outra. As diversas formas de alienação continuam a conviver lado a lado numa sociedade ainda alienada. O que Marx fez foi colocá-las numa hierarquia, estabelecendo o primado da alienação econômica, através do trabalho alienado, sobre as demais. A supressão da alienação produzida pelo trabalho assalariado é condição para a eliminação de todas as outras formas de alienação. E o trabalho alienado somente chegará ao fim com a expropriação dos expropriadores – com a socialização plena dos meios de produção.

Outra conclusão a que podemos chegar é que é impossível conhecermos plenamente o "marxismo maduro" sem que ao mesmo tempo conheçamos seu processo contraditório de desenvolvimento, que inclui necessariamente as obras da juventude. Por isso podemos afirmar que aqueles que buscam construir entre a juventude e a maturidade de Marx uma muralha intransponível prestam na verdade um desserviço ao estudo do marxismo. Não queremos dizer que não existem diferenças significativas entre esses dois períodos da vida e da produção teórica de Marx, mas também não devemos absolutizar essas diferenças. A formação teórica é um processo e nunca poderíamos esperar que o velho Marx nascesse pronto, tal qual Minerva da cabeça de Zeus, já de armadura e lança em punho. A formação teórica é um processo que às vezes dá saltos e a obra de Marx foi marcada por esses saltos, que seriam ininteligíveis se desassociados do estudo de sua vida militante.

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Nestes últimos anos a editora Boitempo lançou no país, com novas traduções a partir do alemão, uma série de obras da juventude de Marx. Entre elas se encontram: Sobre o suicídio, Sobre a questão judaica, Crítica da filosofia do direito de Hegel, Manuscritos econômico-filosóficos. Também lançou algumas obras do chamado período de transição de Marx e Engels como A sagrada família, A ideologia alemã entre outras.

* Este ensaio foi escrito no final da década de 1980, portanto há mais de 20 anos. Muitas das opiniões aqui expressas não correspondem mais integralmente às posições atuais do autor. Mas, por oferecer uma visão panorâmica da formação intelectual de Marx, considero-o ainda bastante útil especialmente para as jovens gerações de combatentes sociais que conhecem pouco a vida e a obra de um dos fundadores do socialismo científico.

** Augusto César Buonicore é historiador; mestre em ciência política pela Unicamp; secretário-geral da Fundação Maurício Grabois; membro do conselho editorial das revistas Princípios e Crítica Marxista e membro do Comitê Central do PCdoB.