Carta ao meu Primo (de fogueira)
Prólogo
“Disse a caneta pra enxada/Num vem perto de mim não/ Ocê tá chuja de terra/Da terra chuja do chão/Sabe cum quem tá falano?/ Veja tua posição!/E aperceba a distânça/ Da nossa separação!”
"A enxada arrespondeu/De fato eu vivo no chão/Para dar o que comer/ E vestir pro seu patrão/Eu vim no mundo primêro/Quaje no tempo de Adão…”
-Trecho de música sertaneja imortal, composta pelo Capitão Barduino e Teddy Vieira, considerada um dos clássicos da “Música de Raiz Brasileira”.
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Texto em Caipirês
Dia, primo!
Em primêro lugá eu pego na pena pra te escrevê. Espero que estas már traçada linha, vá te encontrá gozano de saúde e de felicidade.
Primo; tenho me alembrado de muitas coisa aí da roça! Das veiz, me dá a impressão que aí num inziste; coisa de lôco, num é mêmo?
É que eu tenho muitas saudade das veiz que nóis brincava de tarde, lá perto do Mercado Véio de Cravinhos. Faiz tempo, né primo? Já faiz mais de sete ano que nóis num se vê! Eu tenho saudade de muitas coisa, de catá gabiroba e goiaba nos pasto, de nadá nos córgo, de pescá e inté de caçá de estilingue: eu era um porquêra no estilingue, ocê lembra? Ocê lembra tarveis de quando eu matei meu primêro nhambu e ocê ficô contente pro mode de quê eu nunca tinha matado um Nhambu antes e vortava sempre sapatêro pra casa e tudo mundo caçoava de mim? Pois é, primo, naquele dia, dispois que nóis se separemo, eu levei o coitadim do nhambusim no córgo e tuchei a cabecinha dele n´água. E num é que o coraçãozim dele começo a batê forte i disparado? Pois é primo, dispois de mais de diz ano que eu tenho corage de dizê procê que eu nunca (graças a Deus) matei um nhambu siqué! E num é que fiquei feliz em lembrá disso agora?
É primo; nóis semo primo faiz muito tempo; né mêmo?
Eu me alembro inté do dia em que nóis passemo de primo, na foguêra de São João, lá na casa da sede da Fazenda São José do Pântano, município de São Simão, que nóis fala que é de Cravinhos, num é mêmo?
Sabe, primo, eu tô mudano muito agora, sô!
É que eu tô começano a estudá. Num tava mais guentano as pessoa me chamá de caipira; qué dizê, caipira eu vô sê até o fim da vida; mêmo que eu chegue a sê um home remediado nos estudo; coisa que o Seu Joaquim, meu pai, sempre quis; num é mêmo!
Mai hoje, primo, me deu uns aperto no coração.
Eu tava, oiâno as paisage pela janela do trem que vai de Osasco inté Santo Amaro; uma linha de trem daqui que eis dá um nome muito difíci, que num tenho nem vontade de fala, pruquê é difíci demais da conta, sô; é quaje um palavrão “trem metromenipoliteano”, ô arguma coisa parecida cum isso. Pois é;
eu tava ali ôiano pela janela do trem as paisage. As paisage daqui num é tão bunita como lá no eito da “varge”, ô do eito do “chapadão”, ô do eito da “derrubadinha”, cum aqueles cafezá em flor; bunito e cheroso demais da conta, tudo prantado em fila que sumia das vista de tão grande, não, num é!
E quando os café tavam maduro, tamém era uma formusura: aqueles grão colorido, do vermeio ô do amarelo, inté parecia uma árve de natá, que nóis dóis vimo muitas das veiz nas casa dos patrão e do administradô, fiscá da fazenda, num é mêmo? E nóis via os tico-tico rei, tudo colorido e de crista vermelha, os bêja-flor “foguinho”, vermeinho, vermeinho, os tizío sempre dando pinote de riba do pé de café… . Lembro tamém que nóis robava melancia dos eito do Zé Dérfino, que era muito intojado; lembra primo que eis interrava as melancia no chão, pra mode os moleque num vê; mais nóis descubrimo e fizemo segredo: nóis chegava lá e ia puxano as rama dos pé de melancia até que finarmente lá tava elas: era as melancia mais grande e mais gostosa que nóis comia era as dele. O jacu e bocó do Zé Dérfino num sabia; das veiz a gente achava a melancia e oiava no rabicho dela, perto do talo; se num tava seco, queria dizê que tava verde ainda; das veiz nóis esperava mais de um mês inté ela madur a; conferino sempre inté que o rabicho tivesse seco. Nóis arrancava a melancia e corria até a bêra do córgo, lavava ela e quebrava ela numa pedra e nóis comia de se lambuzá; lembra primo?
O primo lembra cuma é que vim pra São Paulo? Meu pai economizô muito para pagá a passage doe trem noturno da Mogiana e dexô argum dinhêro pro cumpadre dêle me trazê pra trabaiá em Osasco, que era um arrabarde de São Paulo. Era pra eu morá na casa dele e trabaiá num armazém, dum conhecido dele. Nada deu certo, primo. Foi minha pió viage! Sofri ingualzim um cachorro. Minha sorte foi a minha famía chega dispois de um ano. Sabe, Primo; dijunto cum a famía, a gente divide as lambada da vida e tudo fica mais fáci!
Mai, vôrtano ao assunto, eu tava ôiano as paisage pela janela do trem, quando vi uma image que feiz lembrá docê, primo: na bêra do Rio Pinheiros, perto de uma árve de flor bunita e um cantêro de bico de papagaio e de bananeirinha, muito colorido, dijunto duma tocêra de capim gordura, inganchada numa furquía da árve; lá tava ela, primo: uma enxada!
A enxada era uma “Duas Caras” de duas libra e meia, tinindo de nova. Observei primo, que a enxada era nova, mai o cabo não. O cabo inté parecia de sê de guatambu; mai eu duvido que inziste guatambu em São Paulo; aqui nem mato tem! E os que tem são uma porquêra de uma matinha de nada…. Mai, cuma eu ia dizeno, o cabo da enxada tava lustroso. Sabe, primo, me alembrei que quando um cabo de enxada tá lustroso, a mão que cum ela trabáia tá calejada. Argum trabaiadô divía de tá trabaiano cum ela, precurei, precurei cum os dois zóio e num vi adonde a pessoa de mão calejada táva naquele instante. Precurei se via numa moita quarqué da bêra da linha do trem ô da bêra do rio; uma moringa d´água, um imborná pra mode ele trazê o carderãozim dele com feijão e arroiz; num vi, primo! Num vi e chorei, pruquê o trem da vida que agora tô veno e viajano nele, quaje num pára pra gente vê as coisa mais simpres, simpres como nóis dois primo!
Sabe, primo, o trem seguia adiante e eu tinha raiva do trem. Esse trem que eu viajo, primo, viaja depressa demais pros meus pensamento. Paréce inté mamparra dele! Eu sô um bosta de um caipira que véve longe das coisa que gosta e num consegue entendê essa correria toda: pruquê que o trem não vai devagarzim, pra mode eu vê se a pessoa que tabaiava cum aquela enxada, quem sabe se num tem um fio da nossa idade, né primo, ô um cachorro pretim ingual ao Viajante, que eu tinha lá na fazenda; lembra dele primo? Lembra que ele caçava frango cum a gente?
-Ocê se alembra desse Brasil, primo?
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Sabe, primo Valdomiro, hoje, primeiro de agosto de 2009, eu reli aquele bilhete que você me enviou no ano 2000, quando você fez anotações e me repassou. As imagens por escrito que você me passou, vistas da janela do trem me tocaram agora, nove anos depois, de maneira muito forte. Acho que é a idade…. . E que você havia dito que suas imagens representavam mais para mim do quê para você, porque você dizia que eu havia vivido as coisas e você delas tinha notícias; notícias que pretendo te dar através do meu texto, dedicado a você e aos brasileiros que amam a brasilidade, tanto quanto eu e você, não é primo? Ah, Valdomiro, eu não me esqueci que você tinha um cachorro em São Paulo que se chamava Kuriachi, uma homenagem sua ao personagem Illia Kuriachi, da série de filmes chamada de “O Agente da Uncle”; lembra primo?
Lembrei de tantas coisas da minha meninice e do Brasil antigo que,enfim, deu-me vontade de chorar!
………………………………………………………..fim do texto
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.