A gaúcha Maria do Rosário Nunes, secretária nacional dos Direitos Humanos, mede as palavras. Mede-as tanto que chega a dar a impressão ao entrevistador de que a resposta não virá. Mas, quando a voz levemente rouca substitui o silêncio, o que antes poderia parecer receio revela-se serenidade. Não há excesso nas declarações da secretária. Firmeza não falta, porém, como ficará claro ao longo da entrevista a seguir. Maria do Rosário avisa: não somente os militares que cometerem crimes durante a ditadura estão na mira. “A Comissão da Verdade terá poder para identificar as ramificações por toda a sociedade. Ela não será, em nenhuma medida, contra as Forças Armadas. Será contra a repressão política naquele período.” Seria esse o motivo da brutal resistência de muitos civis, em especial meios de comunicação, ao projeto em tramitação no Congresso?

CartaCapital
: Há muito tempo fala-se na criação de uma Comissão da Verdade. Mas a ideia sempre acaba derrotada. Por que seria diferente agora?

Maria do Rosário Nunes:
Porque há uma conjunção favorável. À vontade do governo soma-se a vontade da sociedade, que se pode sentir no ar. Dezenas de universidades estão promovendo debates, os meios de comunicação promovem debates. A sociedade fala sobre isso e vai se construindo, talvez de um modo singular em relação aos períodos anteriores, a opinião de que é um direito saber, de que os familiares dos mortos e desaparecidos têm o direito de saber. E para além disso: de que todos nós, brasileiros e brasileiras, temos o direito de saber.

CC:
Quando a comissão deve ser instalada?

MRN: O projeto está no Parlamento. Cabe à Câmara dos Deputados e ao Senado responder essa questão. O governo não citou o projeto em nenhuma lista de prioridades porque acredita que o direito à memória e à verdade, como também os direitos humanos, não é dever apenas do Poder Executivo. O Parlamento brasileiro também foi atingido, as instituições, como um todo, foram atingidas. Ao anunciar a Constituição de 1988, Ulysses Guimarães lembrou o deputado morto pela ditadura, Rubens Paiva. Então é uma questão também do Parlamento.

CC: Não se trabalha com um prazo?

MRN: Com um prazo não. Trabalho com acordo político. Eu gostaria que a comissão fosse implantada o mais breve possível.

CC: Caso o tema se perca nos escaninhos do Congresso, o que o Executivo poderia apresentar como alternativa?

MRN: Com o mesmo papel que a comissão teria, nada. Precisamos da Comissão da Verdade para fortalecer o Estado Democrático de Direito e também para produzir valores nas gerações contemporâneas de amor à democracia. Porque ela não é natural, é conquistada. E houve gerações que fizeram essa conquista acontecer. O Executivo trabalha em diversas frentes. Uma delas é o que a própria Lei 9.140, de 1995, determina. Há uma comissão autônoma dirigida por Marco Antonio Barbosa (advogado), que conta com o apoio e a estrutura do Executivo. É a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, que tem desempenhado uma função importante ao longo dos anos. A comissão fez o reconhecimento dos mortos e desaparecidos naquele período, de 1964 a 1985.

CC: Por que não se conseguiu até hoje nada de muito significativo na busca pelos corpos no Araguaia?

MRN: Sobre a localização dos corpos de mortos e desaparecidos naquele período, considero que o Estado brasileiro tem uma dívida muito objetiva com as famílias. Daqui a poucos anos, em 2014, completaremos 50 anos do golpe de 1964. As famílias têm o direito de saber. As operações de busca até o momento realmente deram pouco resultado, mas não nos é dado o direito de suspendê-las. Ocorre que trabalhamos com pouquíssimas informações. A maioria vem das famílias. As áreas de sepultamento foram modificadas ao longo do tempo. Isso dificulta muito os trabalhos.

CC: Qual o motivo de o Brasil, ao contrário de países como Argentina, Uruguai e Chile, ter avançado tão pouco?

MRN: Não constituímos os instrumentos necessários para que as investigações ocorressem, ainda que os governos civis tivessem a intenção de fazê-lo. Só nos é possível hoje propor uma Comissão da Verdade porque os que vieram antes de nós em direitos humanos, no governo do presidente Lula, no governo do presidente FHC, agiram também de forma a construir bases que nos trouxeram até aqui. Mas é um processo de fato muito lento.

CC: A explicação não está na constatação de que o poder civil ainda teme o poder militar?

MRN: Existem manifestações isoladas de setores que defenderam o golpe e que se beneficiaram dele. Mas isso é parte da democracia. Não almejamos que todos pensem igual. O problema dos sistemas totalitários, e em especial daquele que vivemos no Brasil, é que ou se pensava como eles ou se estava sob risco ao expressar uma ideia. Então, agora nós não cairemos na armadilha, que seria contrária à nossa própria lógica, de dizer que não podem ou não devem pensar como pensam. De qualquer forma, acho que eles expressam a opinião de um grupo muito pequeno. Esta não é a posição das Forças Armadas, totalmente leais ao seu comando maior constitucional, a Presidência da República. Não há nenhuma possibilidade de qualquer um dos ministérios da presidenta Dilma Rousseff defender institucionalmente uma posição contrária à Comissão da Verdade.

CC: Mas o seu antecessor no cargo não sofreu uma derrota humilhante durante a discussão do Plano Nacional de Direitos Humanos justamente pela forte oposição dos comandos militares, defendida pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim?

MRN: Não nego e não sou ingênua a ponto de pensar que os setores conservadores não tenham influência ou não se movam. Apenas prefiro considerá-las ações isoladas e acreditar que o poder da República, que eu integro, é muito forte, pois representa o poder da democracia. Não estamos tomando esse rumo exigindo das Forças Armadas da atualidade que respondam por todos os atos dos comandos de outrora. O melhor que pode acontecer ao Brasil é que as Forças Armadas atuais possam se diferenciar daquelas da ditadura. Elas têm uma função muito importante e cada vez maior em um país que caminha para ser a quinta maior economia do mundo.

CC: Como a senhora descreveria o papel do ministro Jobim?

MRN: Antes, queria dizer uma coisa. Não considero que o meu antecessor, Paulo Vanucchi, tenha sofrido nenhuma derrota humilhante como você diz. Ele foi o ministro mais longevo no cargo e deixou um legado fundamental. Sem as lutas que ele travou eu não teria condições de promover um entendimento agora. Já o ministro Jobim trabalha ao meu lado. Dialogo com os comandos militares por meio dele. Houve um avanço importante no Brasil, a criação de um Ministério da Defesa comandado por civis. E avançamos mais no momento em que a presidenta exige posições uníssonas dos integrantes do seu governo.

CC: A senhora considera um caminho natural, como aconteceu em outros países, o julgamento de torturadores e mandantes?

MRN: O projeto da Comissão da Verdade não prevê. Os integrantes da comissão terão a função de promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de tortura, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáver, ainda que a autoria tenha ocorrido no exterior. Prevê ainda a função de identificar os locais, públicos ou privados, onde essas violações de direitos humanos ocorreram. A comissão poderá receber testemunhas, informações, dados e documentos. Ela pode requisitar a documentação, quando esses dados não forem enviados voluntariamente. Ela pode convocar pessoas para depoimentos, pode realizar perícias para coletas e recuperação de documentos. Enfim, vai ter atribuições muito amplas.

CC: Mas, repito, o caminho natural não será o julgamento de torturadores e mandantes?

MRN: Essas identificações, por parte do governo, não serão feitas com o objetivo criminal. Nossa disposição é garantir o direito à verdade e à memória. Como o Judiciário e a sociedade vão se mover é outra questão. A criação de uma Comissão da Verdade não deságua necessariamente em julgamentos criminais. Na Argentina foi assim, mas na África do Sul, onde se analisaram os crimes do regime do apartheid, aconteceu de forma distinta. Não houve punições. O Brasil busca seu próprio caminho, mas o governo da presidenta Dilma não trabalha com subterfúgios. O projeto de lei é exatamente o que nós acreditamos que seja possível fazer.

CC: Os militares dizem que não existem mais documentos importantes a ser revelados. Grande parte teria sido destruída. A senhora acredita?

MRN: Se documentos foram destruí-dos, quem o fez e quem autorizou? É outra função da comissão. Saber se papéis foram destruídos e de que forma. Não acredito que não tenhamos documentação. Só estou preparada para achar documentos que contam apenas um lado da história. Não esqueçamos que quem escreveu os documentos foram aqueles que faziam relatórios aos ditadores, os mesmos que torturaram e mataram. Não podemos romantizar essa história dos documentos.

CC: E o que a senhora diz sobre a tese de que a comissão precisa ser para os dois lados?

MRN: Quem diz isso não compreendeu aquele período. Não foi um período de guerra, não havia dois lados. Havia militantes, estudantes, camponeses, gente como nós, e havia o Estado brasileiro, com suas Forças Armadas, suas estruturas de poder, sua censura aos meios de comunicação. Era completamente desigual. Não há uma correspondência. Se houve dois lados, foi assim: de um, pessoas torturadas e mortas. De outro, agentes que diziam agir em nome do País, mas que rasgaram a Constituição, fecharam o Congresso e se jogaram integralmente no massacre desses militantes.

CC: Os militares costumam carregar toda a culpa, mas a ditadura foi civil-militar. A Comissão da Verdade também deixará clara a participação civil nesse processo?

MRN: Segundo o projeto enviado ao Congresso, a comissão terá poder para identificar as ramificações nos aparelhos estatais e na sociedade que colaboraram para a tortura, mortes e desaparecimentos forçados. A comissão não será, em nenhuma medida, contra as Forças Armadas. Será contra a repressão política naquele período.

Fonte: Carta Capital