Caminho da Liberdade (trecho)
(…) O patrão, um ianque alta e barbado, de botas de couro com a roupa úmida toda manchada, acabando de sofrer um ataque de malária, dirigiu-se a Gideon.
– Está falando por esses homens?
– Sim.
– Quantos são?
– Vinte e dois – respondeu Gideon.
– Pá, machado e picareta. Um dólar por dia. Sete dias por semana. De sol a sol. Pagamos nas terças-feiras.
– Está bem – concordou Gideon.
– Faça com que eles assinem ou deixem suas marcas – disse o ianque, acenando para a cabana de pagamentos.
Gideon, Trooper e Ferdinand ficaram com a turma da derrubada. Iam de árvore em árvore, de quinze a vinte centímetros de diâmetro, enterrados na lama e na água até os joelhos e durante todo o dia seus machados de lâminas duplas fendiam e penetravam na madeira. Para a maior parte dos negros que integravam essa turma, o trabalho na ferrovia era o primeiro serviço livre que jamais haviam prestado. Quando a companhia ianque estabelecia escritórios nas cidades próximas para o recrutamento de trabalhadores para a construção, os comerciantes locais sacudiam a cabeça e opinavam: “Perda de tempo. Negro só trabalha debaixo do chicote ou com um patrão que seja dono dele”. Era um escândalo, comentavam, pagar um dólar por dia a um negro; estragava-os e os arruinava; quem já tinha ouvido falar em um tal salário? Os chefes e engenheiros da companhia ianque davam de ombros e prosseguiam com a contratação. “De qualquer modo”, diria ainda a gente loca, “não é possível construir um aterro através daquele pântano e servir satisfatoriamente estes malditos ianques”. Estranhamente, porém, o aterro ia saindo. Quando a trama de troncos e galhos afundava e desaparecia de vista, os engenheiros enchiam de cascalho e começavam de novo. Quando chegavam as chuvas e o pântano se transformava em um lodaçal negro de lama viscosa, os homens permaneciam na lama que lhes chegava até a cintura e afundavam os troncos por sentimento. Quando os mosquitos atacavam e a malária mandava os homens tremendo de febre para o hospital, os avisos de recrutamento de trabalhadores apareciam de novo. O entusiasmo inicial fortuito, a que se deixara levar a região quando surgiu a notícia de que a ferrovia estava fracassando no Sul, cedo desapareceu; para os ex-proprietários de fazendas, supervisores e mercadores de escravos, havia algo de odioso, estranho e inevitável nessa empresa formada na Nova Inglaterra, de proprietários da Nova Inglaterra, que estava lançando uma ferrovia da mesma maneira insensata e inacreditável com que Sherman se lançara através do mar.
Para os negros, no entanto, era alguma coisa mais. Pela primeira vez, Gideon teve um indício do relacionamento entre o trabalho e toda a vida e a civilização. Como escravos, ele e sua gente tinham trabalhado, ano após ano, nada possuindo, nada ganhando, tal como as mulas e touros. Agora, a ferrovia punha anúncios sobre um produto que ela desejava comprar; o produto chamava-se trabalho; Gideon e sua gente chegaram e venderam seu trabalho por um dólar por dia e, fruto de seu trabalho, estava surgindo uma concepção e um sonho, um aterro, faiscantes trilhos de aço, um trem cortando o silêncio da noite. Dali eles saíram homens livres, homens que dispunham de algum dinheiro e, por sua vez, comprariam. E, atrás deles, deixariam algo construído pelo seu trabalho e pelo seu suor.
Gideon ignorava se esse trabalho poderia ter sido executado pelo trabalho escravo ou não; o que ele sabia é que escravos nunca trabalharam tanto quanto então, mesmo com o chicote estalando em suas costas. Sua turma cortava e aparava os troncos para a trama. De frente um para o outro, dois homens atacariam uma árvore, um mais embaixo, outro mais em cima, oito talhos no tronco e, em seguida, afastando-se e alertando “Madeira! Madeira!” O ruído produzido pelo tronco ao cair na água, o ajustamento em linha, golpe a golpe, e em seguida oito homens erguendo o conjunto e o lançando dentro do vagonete puxado pela mula. Os homens trabalhavam nus da cintura para cima, os corpos negros reluzentes, os músculos se contraindo. No princípio cantavam as velhas canções de escravos, mas isso não ajudava; os ritmos não prestavam, o compasso tinha sido modificado, e não havia de que lamentar-se. Assim, primeiro sem palavras, surgiram novos cantos; era preciso que cantassem e as primeiras palavras foram os fios mais simples do pensamento “Madeira velha não gosta do meu machado, madeira velha não gosta do meu machado…”, as palavras foram surgindo, a música foi desaparecendo… (…)
Caminho da Liberdade, tradução de Carlos Evaristo M. Costa – São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1986, pág. 120.