Desde o século XVIII os teóricos e praticantes da moderna economia política debatem os conflitos e contradições entre a moeda universal (e seu caráter mercantil) e o exercício da soberania monetária pelos Estados Nacionais.

No final do século XIX, a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa Continental foi acompanhada pela constituição de um sistema monetário global, amparado na hegemonia da Inglaterra. Essa construção política e econômica do capitalismo suscitou, no imaginário social e na prática dos negócios, a “ilusão necessária” acerca da naturalidade e impessoalidade do padrão-ouro e de suas virtudes na promoção do ajustamento suave e automático dos balanços de pagamentos.

Ao promover a ampliação do comércio internacional, o padrão-ouro impôs a reiteração e a habitualidade da mensuração da riqueza e da produção de mercadorias por uma unidade de conta abstrata. Assim – ironias da vida econômica – a confiança na moeda universal em sua roupagem dourada promoveu a expansão da moeda bancária, suscitando a progressiva absorção das determinações funcionais do dinheiro – unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor – por uma representação, um signo desmaterializado garantido pelas finanças do Estado.

O último quartel do século XIX presenciou uma intensa concentração bancária na praça de Londres e a progressiva transformação dos bancos emissores de notas em instituições de depósito, passivos bancários utilizados como meios de pagamento. Essas transformações asseguraram à praça de Londres o predomínio financeiro em todo o espaço econômico abrigado sob a hegemonia britânica. A Inglaterra possuía, então, todos os requisitos para o exercício da função de “financiadora do mundo”: a moeda nacional, a libra, era reputada a mais sólida entre todas e, por isso mantinha uma sobranceira liderança enquanto referência para a denominação das transações mercantis e como instrumento de denominação e liquidação de contratos financeiros.

Impulso decisivo para o avanço da globalização financeira daqueles tempos foi dado, em boa medida, pelo crescente endividamento dos países da periferia (e da semi-periferia europeia), obrigados a tomar empréstimos nas praças financeiras mais importantes com o propósito de sustentar a conversibilidade de suas moedas. Os problemas de balanço de pagamentos eram recorrentes, determinados pelas quedas de preços dos produtos primários e concomitantes às flutuações periódicas no nível de atividades nos países centrais. As economias periféricas funcionavam, na verdade, como áreas de expansão comercial e financeira dos países centrais nas etapas expansivas do ciclo e como uma “válvula de segurança” para o ajustamento das economias desenvolvidas nas fases de contração.

Nos anos 20 do século passado, o declínio da Inglaterra coabitou com incapacidade política do poderio econômico americano em afirmar sua hegemonia. O período em que prevaleceram as moedas inconversíveis, durante e logo depois da Primeira Guerra, foi marcado por desvalorizações e tensões inflacionárias na Inglaterra e na França e episódios de hiperinflação na Alemanha, na Áustria e na Hungria. Isto tornou problemática a restauração do padrão-ouro, mesmo sob a forma atenuada do Gold Exchange Standard que permitia a acumulação de reservas em dólares e libras.

Em sua ressurreição, o padrão-ouro foi incapaz de reanimar as convenções do período anterior. Os déficits e os superávits tornaram-se crônicos. Os países superavitários como a França (depois da estabilização do ranco “desvalorizado”) e Estados Unidos se empenharam em “esterilizar” o aumento das reservas em ouro para impedir os efeitos indesejáveis sobre os preços domésticos. Enquanto isso, a Inglaterra sofria as consequências econômicas de Mr Churchill. Winston Churchill cedeu à pressões da City e ignorou a inflação ocorrida nos anos do conflito.

Contra a opinião de Keynes, a Inglaterra voltou ao padrão-ouro restabelecendo a paridade que prevalecia no período anterior à guerra. As pressões sobre a libra ganharam força na segunda metade dos anos 20 e tornaram-se insuportáveis depois do crash de 1929. Em 1931 a Inglaterra abandonou o padrão-ouro e deu novo impulso à corrida de “desvalorizações competitivas”, já iniciada pelos países menores e periféricos. A disputa entre as moedas desvalorizadas provocou uma brutal contração do comércio internacional.

Em 1930 os Estados Unidos haviam declarado guerra ao livre comércio com a edição da lei Smoot-Hawley que elevou às alturas as barreiras tarifárias. Em 1933, no nadir da Grande Depressão, Roosevelt proibiu as exportações de ouro e, assim, saltou fora do moribundo padrão monetário.

Nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods em 1944, Keynes formulou a proposta mais avançada e internacionalista de gestão da moeda internacional. Baseado nas regras de administração da moeda bancária, o Plano Keynes previa a constituição de uma entidade pública e supranacional encarregada de controlar o sistema internacional de pagamentos e de provimento de liquidez aos países deficitários. O Plano visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro – ou por qualquer moeda-chave – enquanto último ativo de reserva do sistema. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor (como observamos agora), mas também de evitar que a moeda internacional assumisse a função de um perigoso agente da “fuga para a liquidez”.

O dinheiro internacional, o Bancor, uma moeda escritural, cumpriria as funções de unidade de conta e meio de pagamento. As transações comerciais e financeiras seriam denominadas em bancor e liquidadas nos livros da instituição monetária internacional, a Clearing Union. Os déficits e superáits seriam registrados em uma conta corrente que os países manteriam junto à Clearing Union. No novo arranjo institucional, tanto os países superavitários quanto os deficitários estariam obrigados, mediante condicionalidades, a reequilibrar suas posições, o que distribuiria o ônus do ajustamento de forma mais equânime entre os participantes do comércio internacional. No plano Keynes não haveria lugar para a livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.

Em 1944, nos salões do hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar – ancorado no ouro – como moeda universal. O segundo pós-guerra, diga-se, conta a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narra as dores da sucessão de crises cambiais e de ajustamentos traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.

Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveram ao gesto de 1971 – a desvinculação do dólar ao ouro – e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na “desinflação competitiva” e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar se fortaleceu, agora obedecendo ao papel dos Estados Unidos como “demandante e devedor de última instância”.

A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na contramão do senso comum, os investidores globais empreenderam, em um primeiro momento, uma fuga desesperada para os títulos do governo americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os títulos do governo dos Estados Unidos ofereceram repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas. Assim, os tormentos da crise cambial e dos balanços estropiados de empresas e bancos são reservados para os incautos que acreditaram nas promessas de que “desta vez será diferente”.

Na posteridade da crise asiática, os governos e o Fundo Monetário Internacional ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para “as assimetrias e riscos implícitos” no atual regime monetário internacional e nas práticas da finança globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira internacional. A reação do governo Clinton – aconselhado pelos conselheiros de Barak Obama, Robert Rubin e Lawrence Summers – foi negativa. Os reformistas enfiaram a viola no saco.

A pretendida e nunca executada reforma do sistema monetário internacional, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar as conturbações geradas pela decadência americana. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalização. Impulsionado pela “deslocalização” da grande empresa americana e ancorado na generosidade da finança privada dos Estados Unidos, o processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias “consumistas” americanas e a migração da indústria manufatureira para a Ásia “produtivista”. Não por acaso a China acumulou US$ 3 trilhões de reservas nos cofres do People’s Bank of China.

Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva. Os déficits em conta corrente dos Estados Unidos quase não respondem à desvalorização do dólar provocada pelas inundações de grana nas reservas dos bancos e demais instituições financeiras. A política de inundação de liquidez destinada a adquirir, sobretudo, títulos de dívida de longo prazo (quantitative easing) impulsionou a desvalorização do dólar, mas afetou muito pouco sua utilização como moeda de denominação das transações comerciais e financeiras, a despeito do avanço do Yuan nos negócios entre os países asiáticos.

Vou repetir o que já escrevi a respeito da farra dos capitais sob o efeito anabolizante das políticas que cuidaram de espancar a crise financeira. Observa-se um rearranjo das carteiras, outrora contaminadas pelos ativos podres criados pelos sabichões de Wall Street. Agarrados aos salva-vidas lançados com generosidade pelo Estado, gestor em última instância do dinheiro – esse bem público objeto da cobiça privada – os senhores da finança tratam de restaurar as práticas de todos os tempos. Neste momento o mundo dança ao ritmo imposto pelo “dinheiro caçando rendimentos” (money chasing yield).

Os gestores do capital líquido saíram à caça das moedas (e ativos) dos emergentes e das commodities, enquanto o dólar segue uma trajetória de declínio, depois da valorização observada nos primeiros meses de crise. Diante do frenesi que ora turbina as moedas (os ativos) dos emergentes e as commodities, não faltam prognósticos que anunciam o fim da crise e preconizam uma recuperação rápida da economia global, liderada pelos emergentes. Os movimentos observados no interior da circulação financeira, em si mesmos, não prometem à economia global uma recuperação rápida e brilhante, mas indicam que os mercados não temem a formação de novas bolhas de ativos nos mercados emergentes.

Ainda colunista do Financial Times, Willem Buiter, hoje economista-chefe do Citigroup, disparou, sarcástico, contra a suposição de que os Estados Unidos não podem corrigir os desequilíbrios externos porque nada têm a exportar. Segundo Buiter, essa constatação é incorreta. “Eles podem, sim, exportar crédito, explosão de preços de ativos e bolhas com a melhor tecnologia que possuem.”

No rol de vencedores da batalha contra a depressão global, figuram em posição de respeito a China, a Índia e o Brasil, cada qual com suas forças e fragilidades. Entre as fragilidades, sobressaem as pressões para valorização das moedas nacionais e as ações de esterilização dos governos, com efeitos indesejáveis sobre a dinâmica da dívida pública dos países receptores da “chuva de dinheiro externo”. Tais inconvenientes são particularmente danosos nos países com taxas de juros reais desalinhadas e métodos de intervenção inapropriados nos mercados cambiais.

Seja como for, a crise demonstrou que a almejada correção dos chamados desequilíbrios globais vai exigir regras de ajustamento não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual, aí incluído o papel do dólar como moeda reserva. Isto não significa prognosticar a substituição da moeda americana por outra moeda, seja o euro ou o yuan, mas constatar que o futuro promete solavancos e colisões nas relações comerciais e financeiras entre as nações.

___________

Economista, professor da Unicamp e diretor da Facamp.

Fonte: Carta Maior