O SUS, a saúde e o desenvolvimento
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Ele abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país.
Amparado por um conceito ampliado de saúde, o SUS foi criado em 1988 pela Constituição Federal para ser o sistema de saúde de todos os brasileiros. Além de oferecer consultas, exames e internações, promove campanhas de vacinação e ações de prevenção e de vigilância sanitária – como fiscalização de alimentos e registro de medicamentos –, atingindo, assim, a vida de cada um dos brasileiros.
Seu conceito está enunciado no artigo 196 da Constituição, que considera a saúde como resultante de condições biológicas, sociais e econômicas. O direito à saúde, diz o texto constitucional, pressupõe que o Estado deve garantir não apenas serviços públicos de promoção, proteção e recuperação da saúde, mas adotar políticas econômicas e sociais que melhorem as condições de vida da população, evitando-se, assim, o risco de adoecer. Ou seja: com a Constituição de 1988, o direito à saúde foi elevado à categoria de direito subjetivo público, num reconhecimento de que o sujeito é detentor do direito e o Estado o seu devedor.
Com esse conceito, abandonou-se um sistema que apenas considerava a saúde pública como dever do Estado no sentido de coibir ou evitar a propagação de doenças. A visão epidemiológica da questão saúde-doença, que privilegia o estudo de fatores sociais, ambientais, econômicos, educacionais que podem gerar a enfermidade, passou a integrar o direito à saúde. Esse novo conceito considera as suas determinantes e condicionantes (alimentação, moradia, saneamento, meio ambiente, renda, trabalho, educação, transporte etc.), e impõe aos órgãos que compõem o SUS o dever de identificar esses fatos sociais e ambientais e ao governo o de formular políticas públicas condizentes com a elevação do modo de vida da população.
Em 1990, foi editada a Lei n. 8.080/90 que, em seus artigos 5º e 6º, cuidou dos objetivos e das atribuições do SUS. São objetivos do SUS: a) a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; b) a formulação de políticas de saúde destinadas a promover, nos campos econômico e social, a redução de riscos de doenças e outros agravos; e c) execução de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, integrando as ações assistenciais com as preventivas, de modo a garantir às pessoas a assistência integral à sua saúde.
Assim, não se pode mais considerar a saúde de forma isolada das condições que cercam o indivíduo e a coletividade. Daí dizer-se que sem redução das desigualdades sociais, sem a erradicação da pobreza e a melhoria do modo de vida, o setor saúde será o estuário de todas as mazelas das más políticas sociais e econômicas. E sem essa garantia de mudança dos fatores condicionantes e determinantes não se estará garantido o direito à saúde, em sua abrangência constitucional. Por isso, o direito à saúde, nos termos do artigo 196 da Constituição, pressupõe a adoção de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde para a sua promoção, proteção e recuperação.
Embora esse conceito e esses dispositivos constitucionais e o trabalho realizado pelo SUS desde sua criação sejam uma conquista importante, há uma distancia muito grande entre o que a Constituição ordena e a realidade da saúde pública no Brasil. O fato é que o nosso povo sofre em demasia pela precariedade do sistema e a nação perde a vida de muitos de seus filhos em situações que poderiam ser evitadas. Quando não perdem a vida padecem de doenças que poderiam ser evitadas e quando as contraem frequentemente percorrem uma verdadeira via crucis em busca de alguma porta que se abra para socorrê-los.
Peço licença para uma rápida digressão para ilustrar o que acabo de dizer. No final da década de 60 e início da década de 70, Maurício Grabois, liderança, herói do povo brasileiro, que honrosamente nomeia nossa Fundação, se deslocou para uma região da Amazônia brasileira em companhia de um grupo de quase 70 pessoas. Todos eles militantes do Partido Comunista do Brasil. Foram para lá, defender de armas em punho, a liberdade e a democracia que hoje respiramos e que naquela época estava sufocada por um regime tirano. Grabois e seus camaradas passaram a viver de igual para igual com os camponeses do Araguaia.
Partilhando com eles a labuta pela sobrevivência e procurando ajudá-los nas suas carências. Naqueles ermos amazônicos do sul do Pará não havia uma só escola, um só hospital. O povo morria à míngua, padecia de doenças endêmicas. Entre os guerrilheiros, havia um médico João Carlos Hass Sobrinho, o Juca, e outros e outras com formação na área da Saúde. Na memória dos camponeses que apoiaram de um modo ou de outro a Resistência Armada do Araguaia , além da lição de amor e coragem ao Brasil e ao seu povo, deixado pelos guerrilheiros do Araguaia, das marcas da violência praticada pelo o regime militar, ficou a lembrança da solidariedade, do esforço que os comandados de Grabois empreendiam para pelo menos remediar a situação crítica da população local em relação à saúde. Guerrilheiras faziam partos, distribuíam remédios, orientavam, enfim, acudiam no que podiam.
Fecho essa digressão para dizer que passados quase 60 anos, muitas regiões do Brasil profundo, da Amazônia , do Cerrado, da Caatinga, ainda continuam a padecer a mesma carência: sem hospitais, sem médicos. E por fim, já que citei, o nome de Maurício Grabois, quero dizer, que a Fundação que leva seu nome, em conjunto com as forças democráticas lutam pelo direito da Nação à Memória e a Verdade. O que exige que se cumpra o direito sagrado dos familiares e dos companheiros dos mortos e desaparecidos do Araguaia , da época do regime militar, de enterrar em túmulo honroso os restos mortais de seus entes queridos. O que exige a abertura dos arquivos da época da ditadura, com o fito de que a tortura, as atrocidades, não se repitam jamais.
Por isso, é oportuno lembrar que o Projeto de Lei Complementar apresentado para regulamentar a Emenda 29, se encontra no Congresso Nacional à espera de votação. Além de regulamentar os critérios de rateio de transferências dos recursos da União para Estados e Municípios, busca disciplinar, de forma mais clara e definitiva, o que são ações e serviços de saúde e estabelecer o que pode e o que não pode ser financiado com recursos dos fundos de saúde. Em seu contexto está a Contribuição Social para a Saúde (CSS) que, caso aprovada, deverá injetar algo em torno de R$ 12,5 bilhões a mais no setor da saúde pública por ano.
Lembremos do fim da CPMF em primeiro de janeiro de 2008 que representou um duro golpe no financiamento do SUS. O seu término veio da vitória da oposição neoliberal contra o governo do presidente Lula, em votação no Senado Federal realizada em dezembro de 2007. Lembremos, também, que isso se deu através de um conluio entre as elites econômicas, os banqueiros e a grande mídia brasileira. Reconheçamos, ainda que a resistência do campo político e social progressista em defesa do SUS e contra a extinção da CPMF foi tímida e insuficiente.
Fortalecer o SUS, dando-lhe mais qualidade, é um imperativo da realidade brasileira. São necessários maiores investimentos, gestão moderna, democrática e eficiente, exercida pelo poder público, e normas e limites para a saúde gerida por grupos privados – que, em perspectiva, devem ser substituídos pelo regime único de saúde pública. Observa-se que um novo debate sobre saúde e desenvolvimento, baseado sobretudo na indagação a respeito dos conflitos políticos gerados ao separar a política econômica, voltada para o complexo produtivo da saúde, e a política social, voltada para a proteção social em saúde, está tomando corpo. Isso porque a melhoria das condições de saúde da população não depende só do êxito das políticas de saúde, mas da combinação virtuosa entre desenvolvimento econômico e social.
Apesar das pressões e instabilidades provenientes de um mundo sacudido por uma crise capitalista que persiste, acreditamos que o governo da presidente Dilma Rousseff se inicia em condições políticas favoráveis que possibilitam mais ousadia para o nosso país ingressar numa nova etapa de seu projeto nacional de desenvolvimento. Para tal é preciso incrementar o desenvolvimento econômico progressista e avançar nas reformas estruturais.
Pelo o exposto é que situamos, a bandeira do fortalecimento do SUS com objetivo de garantir o direito do povo à saúde, com uma parte destacada do novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. O fortalecimento do SUS integra o elenco de reformas estruturais (política, educacional, tributária, agrária, urbana, dos meios de comunicação e fortalecimento da seguridade social e segurança pública) que devem ser realizadas visando a democratização da sociedade brasileira nas condições atuais. O entendimento é que a democracia não se restringe à liberdade política ou a proclamação formal de que todos são iguais perante a lei. O conceito de democracia pressupõe o direito a todos de usufruir das riquezas produzidas pela nação. O direito à saúde se insere nesse conceito.
Considerando que os modernos sistemas de saúde são o resultado da complexa interação de processos econômicos, políticos e sociais, o objetivo deste seminário é discutir a relação entre saúde e desenvolvimento no Brasil. Creio que o esgotamento do modelo liberal de política econômica abre nova perspectiva para a retomada do desenvolvimento, entendido como combinação entre crescimento da economia, mudanças na estrutura produtiva e melhora das condições de vida da população.
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O complexo produtivo da saúde joga papel decisivo nesse processo, pois constitui um campo em que inovação tecnológica e acumulação de capital geram oportunidades de investimento, trabalho e renda, além de produzir avanços importantes para melhorar o estado de saúde das pessoas.
O lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em janeiro de 2007 é um exemplo de esforço voltado para o desenvolvimento. Pretende implantar medidas em cinco grandes blocos – investimento em infra-estrutura, estímulo ao crédito e ao financiamento, melhora do ambiente investimento, desoneração e aperfeiçoamento do sistema tributário e medidas fiscais de longo prazo – mobilizando recursos públicos e privados da ordem de R$ 503,9 bilhões. Embora os investimentos do PAC possam contribuir para melhorar, de forma indireta, as condições de saúde da população, é importante notar que ele não contempla programas específicos na área da saúde.
Para essa finalidade, entretanto, o Ministério da Saúde formula o chamado “PAC da Saúde”, um conjunto de medidas que deve beneficiar diversos setores do complexo produtivo da saúde, incluindo a produção de medicamentos para hipertensão, diabetes e colesterol, aparelhos de ultra-som, marca-passos e cateteres, além de vacinas e hemoderivados. O objetivo é fortalecer a produção nacional desses produtos, reduzindo a dependência de tecnologia do exterior. Os critérios utilizados para seleção dos setores a serem beneficiados são coerentes com esse objetivo: aqueles ligados a doenças que mais matam no país; onde as despesas do governo são mais elevadas; e setores em que já existe alguma produção nacional. Tais iniciativas do governo evidenciam que a questão do desenvolvimento nacional voltou a ser um eixo prioritário na agenda pública.
Mas os lugares que se encontram ainda à margem dos processos atuais são justamente aqueles onde o SUS encontra as maiores dificuldades para atrair e fixar profissionais, manter serviços qualificados e alocar recursos financeiros para serem investidos no sistema de saúde. A combinação entre desenvolvimento econômico e social e a forma como essas dimensões se combinam configuram diferentes tipos de associação entre política econômica e política social, podendo constituir um par virtuoso entre saúde e desenvolvimento, baseado em um atendimento equânime para todo o território nacional.
A realidade brasileira exige simultaneamente o fomento das indústrias ligadas à área, com privilégio do segmento de Ciência e Tecnologia e uma regulação voltada para critérios sociais e includentes. A recente adoção de políticas e programas indutores do desenvolvimento nacional, com iniciativas específicas para a área da saúde, sugere que o Brasil tem trilhado caminhos importantes nesse sentido.
Finalmente, espero que este seminário contribua para desencadear um vigoroso movimento social e político pelo fortalecimento do SUS. Nenhuma conquista vem sem luta e mobilização.
Não se pode falar em Nação próspera , desenvolvida sem que povo tenha acesso a um serviço de saúde pública de qualidade.
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