Em matéria do jornalista Lucas Figueiredo intitulada “Devaneio na selva”, a revista CartaCapital, edição 643, comenta de forma superficial e preconceituosa o que seria o diário de Maurício Grabois. Ao longo do texto, o comandante da Guerrilha do Araguaia é descrito como um indivíduo fora da realidade, autoritário com seus comandados e dado a veleidades. Esse tipo de abordagem deriva de um enfoque tacanho, segundo o qual nenhum personagem da história nacional parece ter qualquer valor — exceto, é claro, as figuras emblemáticas dos de “cima”.

Maurício Grabois, já na sua juventude, como aluno da Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro, atuou corajosamente junto ao grupo de militares de orientação patriótica e democrática que se formava. O golpe do Estado Novo, em 1937, fez com que recuasse para a clandestinidade e, como dirigente do setor de comunicação da juventude comunista, assumiu o papel de manter, com outros jornalistas, o lendário jornal A Classe Operária. Sobreviveu às mais duras provas impostas pela orientação fascista dos setores que comandavam a repressão no Estado Novo e emergiu, com a alteração da correlação de forças que levaria à redemocratização do país em 1945, como um dos articuladores do movimento democrático que pôs fim àquela ditadura.

Eleito deputado para a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, foi indicado líder da bancada comunista por um colegiado de parlamentares integrado por nomes como Jorge Amado, João Amazonas, Carlos Marighella e Luiz Carlos Prestes. A atuação parlamentar de Grabois, revela o Diário do Congresso, mostra sua capacidade teórica e política, reconhecida até pelos seus mais ferrenhos adversários ideológicos. Era respeitado por sua lealdade, por sua justeza no trato com as divergências e por sua cordialidade. Prova disso foi o socorro oferecido por Otávio Mangabeira, liderança destacada da União Democrática Nacional (UDN), quando acolheu Grabois e Prestes em seu apartamento no Hotel Glória para protegê-los de uma feroz caçada logo após a cassação dos mandatos dos eleitos pelo Partido Comunista do Brasil.

Segundo Jorge Amado, Grabois era, de todos os parlamentares comunistas, o de maior vocação, “um brilhante deputado”. “Não da mesma forma que era brilhante Marighella: diferente, menos zombador, mais malicioso”, escreveu. “Recordo ainda hoje um discurso que Maurício pronunciou às vésperas da cassação da bancada comunista, respondendo a Flores da Cunha que nos acusara de traidores da pátria. Um primor de discurso, de exemplar dignidade”, registrou Jorge Amado, enfatizando que, além de companheiros, foram amigos.

Jorge Amado descreveu Grabois como uma pessoa que sabia ouvir, “hábito raro em geral e ainda mais num dirigente”. Como parlamentar e jornalista — relançou, em 1946, o jornal A Classe Operária e dirigiu politicamente um complexo de comunicação que abrangia jornais locais espalhados por todo o país, a Tribuna Popular (de circulação nacional), duas editoras (a Vitória e a Horizonte), a revista Problemas, uma agência de cinema e uma agência de notícias — deixou uma vasta e respeitada obra que analisa diferentes aspectos da realidade brasileira. Muito do que escreveu serviu de orientação política para ajudar nos embates que garantiram a passagem do país pelos governos de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, em seu início, sem retroceder ao regime de força que combatera no final dos anos 1930.

Seus escritos de 1960, no aceso debate do V Congresso do Partido Comunista do Brasil — que levaria à cisão das fileiras comunistas e à reorganização do Partido em 1962 —, ainda hoje são referências para quem quer estudar a evolução histórica das forças patrióticas e democráticas em nosso país. Quando veio o golpe de 1964, Maurício Grabois estava entrincheirado no jornal A Classe Operária, mais uma vez relançado por ele no início dos anos 1960, fazendo o que mais sabia: a defesa da democracia e o combate ao arbítrio que batia às portas da República. Rompida a resistência, com o golpe, Grabois ocupou outras trincheiras — diante da impossibilidade da luta política legal nas regiões urbanas, estabeleceu-se na região do Araguaia, onde foi um dos primeiros a chegar para organizar uma forte linha de resistência à escalada de violência dos golpistas de 1964.

Jorge Amado lembra dessa fase da vida de Grabois com reverência.“A última vez que o vi, foi em Cuba. Veio comentar comigo uma entrevista que eu dera a um jornal de lá. Depois vieram os anos da ditadura militar, eu soube de Maurício apenas notícias vagas, até que alguém me informou que ele morrera, numa guerrilha, no Araguaia. Eu sempre vira nele mais um intelectual do que um soldado. Mas não admirei que morresse guerrilheiro: escolhera seu caminho e o trilhou até o fim. Haja o que houver, me disse um dia.” O comandante da Guerrilha do Araguaia morreu no final da manhã do dia 25 de dezembro de 1973, aos 61 anos, de arma em punho, se defendendo de um ataque infame comandado pelo que havia de mais reacionário no país.

Quem conhece a vida de Maurício Grabois sabe que seu nome está inscrito na lista dos que dedicaram suas vidas ao estudo da realidade do país e às ações que buscam abrir caminhos para transformar o Brasil em uma nação soberana, democrática, próspera e socialista. Como dirigente daquele movimento guerrilheiro, Grabois foi estimado pelos camponeses do Araguaia. Respeitava e era respeitado pelos seus comandados. Ao contrário da repressão, ele e os guerrilheiros que liderava não admitiam atrocidades e violações de direitos, mesmo com as ações armadas deflagradas.

Esta Fundação, que tem Grabois como seu patrono, vem a público manifestar sua oposição ao conteúdo que CartaCapital deu na repercussão do que seria o diário de Grabois, subestimando e distorcendo seu papel no comando daquela resistência. Reforça que a Guerrilha do Araguaia ainda é uma vasta fonte de pesquisa e de análise para garantir o direito à verdade e à memória dos que ali deram a vida no combate ao regime de terror que moldou o golpe de 1964. A Guerrilha do Araguaia foi um acontecimento que vai sendo dimensionado na medida em que dados novos são revelados. Será mais ainda quando os arquivos da ditadura forem abertos.

Sabemos que as interpretações de fatos históricos encerram opiniões distintas, o que é salutar em um ambiente democrático. Todo trabalho nesse sentido deve ser louvado. Mas a matéria de CartaCapital não se limita a uma opinião. Ela resvala para a adulteração dos fatos. Para interpretar a Guerrilha do Araguaia e outros movimentos de resistência armada, temos de considerar que foram atitudes que expressaram a consciência de boa parcela do pensamento avançado e democrático brasileiro. Havia, naquela conjuntura, um questionamento natural sobre se haveria ou não uma tomada de atitude frente à escalada da violência contra toda e qualquer forma de oposição.

A democracia que o país respira hoje resulta de uma convicta resistência ao regime discricionário de 1964, da qual a Guerrilha do Araguaia é parte destacada. Daí o estranhamento causado pela matéria de CartaCapital, um veículo de comunicação que conta com respeitáveis articulistas e destoa do coro do pensamento único propagado pelo monopólio midiático. A matéria não contribui para situar a memória desse grande brasileiro no lugar devido.

Esta Fundação, ao mesmo tempo em que rejeita o tratamento de CartaCapital ao legado de Grabois, enfatiza seu propósito de contribuir para o resgate da memória dos que deram suas vidas na luta pela democracia. Reforça também uma de suas principais bandeiras atuais: a garantia de justiça aos camponeses e seus familiares que sofreram as mais inomináveis crueldades no processo de repressão à Guerrilha do Araguaia. É necessário denunciar a perversidade da liminar que suspende as indenizações determinadas pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e lutar por sua revogação. Do mesmo modo, mantemos firme atuação no sentido de que os restos mortais dos guerrilheiros e camponeses desaparecidos no Araguaia (e das demais vitimas da ditadura) sejam resgatados para que seus familiares tenham o sagrado direito de dar-lhes um funeral honroso.

A Fundação Maurício Grabois conclama ainda à luta pela aprovação da Comissão da Verdade, para que se efetivem os trabalhos de resgate da memória dos patriotas e democratas que deram suas vidas pela causa da democracia. O tom preconceituoso e superficial da matéria sobre o que seria o diário de Grabois, no entanto, em nada contribui nesse sentido.

No Brasil, as elites têm tido a prática recorrente de tentar soterrar a memória da nação. Com tal atitude, buscam encobrir crimes cometidos contra o povo e ocultar as referências históricas capazes de impulsionar a luta pelo progresso. Um jornalismo digno desse nome contribuiria bem mais para o triunfo da justiça e o combate ao legado da ditadura se aprofundasse o assunto, resgatando a verdadeira memória de Maurício Grabois e de tantos outros que deram suas vidas na luta pela redemocratização do país.

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Jornalista, presidente da Fundação Maurício Grabois