Colocar aspas neste dito conceito de “socialismo rural” é um passo muito interessante na medida em que o socialismo deve ser visto sob o limiar do processo de urbanização, do desenvolvimento da divisão social do trabalho e da especialização. As cidades são o produto mais acabado deste processo de longo prazo. O processo de industrialização nada mais é do que a transferência às cidades de inúmeras atividades outrora incumbidas ao seio da fazenda. Produção de roupas, sapatos, pequenas máquinas e bugigangas para o uso diário passou a cargo dos artesãos. A Revolução Industrial coloca sob outro patamar esse processo, transformando o artesanato (departamento 1 “artesanal”) em base para uma indústria leve (departamento 2 da economia).

O processo de “especialização” nada mais é do que a “especialização” da agricultura em atividades-fins, entre elas a produção de alimentos. As relações de troca entre campo e cidade é a própria essência do nascimento dos Estados Nacionais modernos. A industrialização remete ao campo máquinas, equipamentos, assim como fertilizantes e complementos químicos, daí a indústria química ser um dos elos da cadeia da 2ª Revolução Industrial. Henry Lefebvre (“O pensamento marxista e as cidades”, 1975), baseado em Engels, assinala que a gênese da cidade é ao mesmo tempo a origem do Estado, das classes sociais, da civilização, da separação trabalho braçal-trabalho intelectual, campo e cidade e indústria e agricultura.

Nada disso ocorre sem conflitos. Estudar desigualdades de renda, desigualdades regionais e todo tipo de desigualdade em uma determinada sociedade requer a compreender as raízes da mesma. E a raiz não se encontra na “injustiça” em si e sim na própria desigualdade entre campo e cidade. Essa “injustiça” não deverá ser reparada com a volta a patamares primitivos de produção.

A anatomia do macaco se compreende a partir do estudo da anatomia humana. Logo, “o que está encima ilumina o caminho dos de baixo”. Nada mais simples do que perceber que o futuro do campo são as cidades. E não seu contrário.

***

Mas afinal de contas, o que vem a ser o socialismo? Será a grande expressão da luta “anticapitalista” contra a “desigualdade”, por uma “sociedade justa, igualitária”, “justiça social” e onde todos tenham “oportunidades iguais”? Seria o espelho do céu na Terra? Não acredito nessas coisas. Por essas bandeiras organizações como a Igreja Católica, os espíritas e mesmo organizações como a Al Qaeda e Jihad Islâmica as tem contemplado em seus programas. O “homem novo” não surge da mente do nada e sim de novas relações sociais resultantes da maximização das forças produtivas.

O ponto de partida da análise das tarefas da transição a uma sociedade de nível superior está na superação da divisão social do trabalho, na superação das diferenças entre campo e cidade, indústria e agricultura e entre trabalho manual e intelectual. Assim fica muito menos doloroso entender o fundamento principal da desigualdade e encetar um projeto de superação de determinadas situações que nos afligem no imediato. Afora a instalação de um poder que objetive a superação desta dita divisão social do trabalho, o desenvolvimento das forças produtivas, a industrialização e o aprofundamento das relações comerciais entre campo e cidade são os meios para este fim. Daí, para Lênin, o desenvolvimento sendo medido pela quantidade de pessoas que adentram na economia de mercado. E quando esse mercado – como expressão de um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas – não mais servir de parâmetro para o funcionamento do organismo social é sinal de que é algo a ser superado. Tudo tem seu prazo histórico de validade: o mercado, a propriedade privada e a lei do valor.

Qual o sentido da ânsia de Lênin e Deng Xiaoping, em seus tempos, em fazer progredir uma economia privada camponesa e criar um ambiente em que a realização individual dos mesmos pudesse contar com o apoio do Estado? Em economias destruídas por guerras, a recomposição de uma economia de tipo camponesa é o elo da própria reconstrução industrial nas cidades. Os camponeses florescem economicamente, depositam dinheiro no banco e esse mesmo banco será a base da modernização industrial sob intensa relação com os países capitalistas avançados. Forma mais genérica de internalização de novas tecnologias florescidas no mundo exterior. Industrialização das cidades é fator de modernização produtiva no campo que por sua vez faz com que pequenos produtores se transformem, também nas palavras de Lênin, em “granjeiros” via industrialização do campo, logo aproximação com o padrão de desenvolvimento previamente alcançado pelas cidades. Acredito que, no caso chinês, seria muito importante estudos sobre a “grande transição” entre uma agricultura de tipo “pequena produção mercantil” para outra caracterizada por uma grande massa de composição orgânica de capital. Além disso, é central perceber as conexões entre essa transição de dimensões estratégicas com um sofisticado e profundo sistema financeiro estatal e as novas formas de planejamento econômico advindas de novos paradigmas financeiros e tecnológicos germinados na China.

O que vemos no vídeo sobre o “socialismo rural chinês” nada mais é do que a realização deste projeto estratégico: zonas rurais mais se parecendo com cidades, camponeses acionistas de empresas rurais, e mobílias nas casas denunciando – positivamente – a existência de um sistema financeiro com capacidade de transformar sonhos de consumo outrora restritos a cidadãos urbanos em realidade no campo. O futuro do campo só pode ser a cidade!!!

***

Sobre o Brasil. Dentro do que expus, é evidente a desconexão existente entre a centenária bandeira da “reforma agrária” e a realidade de um país que já conta com cerca de 85% de sua população vivendo nas cidades. Esta bandeira só sobrevive onde existem “acadêmicos” cujo objeto de estudo – e acumulação financeira – é a pobreza. No sentido da realização da “inclusão social”, a verdadeira e única possível “reforma agrária” só ocorrerá sob o marco da queda da taxa de juros e de um câmbio que fortaleça a produção industrial nacional. Um capitalismo financeiro brasileiro suportando o esforço do aprofundamento da industrialização substituiu – há muito tempo – a necessidade de uma reforma agrária distributiva e alicerce de uma já consumada revolução burguesa no Brasil.

E o fato de a terra ter-se transformado em ativo financeiro de imenso valor impossibilita a própria entrada do Estado Nacional neste mercado de terras para desapropriação. No atual quadro do desenvolvimento da agricultura brasileira, quem ameaça a existência do latifúndio não é mais a militância do MST e sim os interesses da própria grande produção agrícola. Quanto mais terras ociosas, maiores os custos de produção e, por conseguinte, acarreta em perda da competitividade internacional da agricultura brasileira.

O grande problema é o financiamento de uma urbanização que dê guarida aos anseios tanto de uma estratégia nacional de inserção externa, quanto de uma chamada “questão social”. Não tomar uma correta tomada da extensão do problema em pról de uma visão que sacraliza o “modo de vida camponês” e à crença da resistência ao capitalismo pela via do camponês que colhe o limão do pé leva a equívocos que separam o pequeno do grande produtor e cria conceitos equivocados como a dita “agricultura familiar”. A agricultura, e sua especialização, deve ser vista como parte do processo de desenvolvimento da divisão social do trabalho.

Não é a toa que toda a produção de Lênin sobre a questão agrária escrita entre 1893 e 1910 é devidamente censurada. Lênin não vivia de ilusões. Vejam o que ele tem a dizer em seu notável livro “Agricultura e Desenvolvimento nos Estados Unidos da América”. Não leiam antes de dormir. Alguns princípios que tanto cultivamos em nossa (religiosa) militância poderá ir por água abaixo…

____________

Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, autor de “China: infra-estruturas e crescimento econômico” e pesquisador da Fundação Maurício Grabois