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    Comunicação

    Do sermo vulgaris à vulgar língua paraense

    Do sermo vulgaris à vulgar língua paraense Com quantos paus se faz uma canoa? O caboco perguntava a seu filho sentado em riba da tolda da igarité à vela na espera da virada da maré. Aquela boa gente ribeirinha, paresque, havia no sangue a sina das navegações, então o moço aprendendo a ler e escrever […]

    POR: Redação

    9 min de leitura

    Do sermo vulgaris à vulgar língua paraense

    Com quantos paus se faz uma canoa? O caboco perguntava a seu filho
    sentado em riba da tolda da igarité à vela na espera da virada da maré.
    Aquela boa gente ribeirinha, paresque, havia no sangue a sina das navegações,
    então o moço aprendendo a ler e escrever danou-se a saber
    quem ‘havera’ de ter inventado o mundo…
    Ora essa!
    Foi assim que o velho muito sábio lá das suas coisas deu
    de escutar heresias do filho: diz-que, fazendo favor…

    O moço:
    a nau de Camões fez melhor negócio do que a caravela de Vasco da Gama,
    esta e as mais que lhe seguiram o trilho do Cabo da Boa Esperança,
    não levaram de volta a Portugal toda especiaria que a Europa queria:
    mas porém, “Os Lusíadas” aportaram sermo vulgaris ao vasto mundo
    onde nenhum legionário ou mercador jamais um dia botaria os pés.

    Já beiramos a duzentos e sessenta milhões de falantes!
    Claro, cada povo lá com seu sotaque e língua particular
    E as academias a pelejar e correr atrás da algaravia popular
    daquela inculta e bela “última” flor do Lácio sempre a inventar moda.
    Claro está que menos a vontade de César e mais a necessidade da gente
    em resistir ao império, o latim foi embora mundo afora
    que nem cometa semeando vidas novas com letras mortas
    desdobrou-se em mil com a diversidade de línguas da terra
    e mestiças em quantidade
    prodigiosa civilização parida da latinidade:
    cruzamentos culturais com a história comum
    das misérias e grandezas destas Índias orientais e acidentais.

    Foi assim também que do bélico berço do Presépio de Belém do Grão-Pará,
    Plantado à margem direita do rio das amazonas,
    entre fezes e urina como todo mundo, nasceu a engenhosa invenção
    Cantada em versos soltos
    E a batida do carimbó de mestre Lucindo de Marapanim-Pará:

    “O papagaio é um bicho inteligente.
    ele fala toda língua,
    até a língua paraense.
    Papagaio louro, oi, oi,
    do bico dourado, oi, oi,
    ele falava tanto,
    agora está calado.”

    Calado no exílio carioca, o índio sutil Dalcídio Jurandir,
    na mansarda de Laranjeiras, não tirava o pensamento da sua Amazônia Marajoara,
    escreveu carta para Maria de Belém, filha de seu babalorixá Bruno de Menezes,
    dizendo ele à amiga:

    “Que a floresta amazônica seja protegida, e os índios
    também, esse índio ameaçado, em breve expulso do
    seu chão, massacrado. Belém se cobriu também de
    sangue de índio, batizou-se nesse sangue. Que o
    progresso não corra tanto, a ponto de nos tornar, mais
    depressa, mais infelizes e mais duramente iludidos de
    que somos civilizados, por bem servidos pela técnica
    […] Temo pela descaracterização de Belém, condenada
    a urbs desumana, poluída, igual a qualquer cidade.
    Esse progresso desigual faz robots, não cria alma.
    Aumenta a riqueza e multiplica a necessidade…”.

    Antão, o “índio sutil” que Jorge Amado apelidou era contrário
    ao progresso? Cruz credo! Claro que não…
    Mas ele sabia de cor e salteado a história do idolatrado
    desenvolvimento, insustentável, do Diretório dos Índios…

    Ai, ai! O velho voltou à vaca fria e dizia:
    “era aí, meu rapaz, que eu queria chegar”…

    Dalcídio sabia, disse o moço, que pra poupar índio do trabalho escravo
    Os padres incentivaram escravidão do negro… Não era segredo, não!
    E colonos pra se vingar dos Jesuítas apoiaram a política de Pombal.
    O que seria legal, se a “liberdade” declarada no papel e fala dos brancos
    não fosse conversa mole pra boi dormir:
    civilização por decreto terminando em servidão
    Não mais do índio “extinto”, mas do caboco inventado e tirado do mato,
    Extraído a muque da pele do selvagem…

    Aí está o dilema da Amazônia: a força de trabalho extraída da Floresta
    Com bichos e plantas da biopirataria:
    lupem proletariado da nova zona tórrida.
    Quem há de pegar no pesado sob o sol e chuva debaixo do equador?
    Pra responder à questão há que ver o peso do passado até aqui:

    Diretório dos Índios decretado em 1755, ano do terremoto de Lisboa;
    Posto em execução em 1757, com a transmigração da toponímia lusa
    e a expulsão da Companhia de Jesus dois anos depois.
    Até aí o Diretório revogou cem anos de “liberdade” dos índios.
    Desta feita a lei era de 1655; arrancada pelo padre Antônio Vieira a el-rei D. João IV,
    Simples extensão do Estado do Brasil da lei de proteção aos índios
    editada pelo rei D. Sebastião, ao Estado do Maranhão e Grão Pará.
    Imagina só o que acontecia antes, debaixo do pendão da União Ibérica…

    A liberdade dos índios era uma quimera, sujeitado ao Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão que aplicava aos nativos práticas da Europa e de Portugal
    das Ordenações, pela qual filhos órfãos de operários ou de pais vivos dementes,
    deviam se dedicar a ofícios mecânicos ou trabalhar a soldo.
    “O mesmo parece justo que se observe com os filhos de índios
    ainda que tenham pays vivos, porque por dementes e pródigos se reputam
    governados por Directores como seus tutores”.

    O progresso do Diretório foi uma violenta estocada aos Jesuítas,
    Mas quem pagou o pato foram os libertos indígenas
    A lei nova dispunha sobre aldeias do Estado do Grão-Pará e Maranhão.
    Em 1758 um Alvará estendeu tais medidas ao Estado do Brasil.
    Missões religiosas nas aldeias foram extintas
    Aldeias foram “elevadas” em Vilas ou lugares
    trocando o nome nativo pela toponímia portuguesa,
    governados por um diretor nomeado entre Homens-Bons.
    Cada Vila ou Lugar deveria ter escola,
    com mestre para meninos e outro para meninas,
    proibido outro idioma que não o português sob Santa Férula, a palmatória…
    Os indígenas deveriam ter sobrenome português.
    A nudez, antes elogiada na Carta de Pero Vaz de Caminha, proibida
    bem como moradias coletivas, enquanto a mestiçagem era estimulada.
    O Diretório foi revogado em 1798, mas aí já era tarde, Inez era morta.

    No entanto, sem índio brabo ou manso não haveria Maranhão nem Grão-Pará
    pra dar Amazônia a Portugal e depois ao Brasil: sem índios não se poderia
    botar pra correr colonos franceses do Maranhão, nem holandeses e ingleses
    do Xingu, Gurupá e Amapá…

    Sem a utopia selvagem dos tupinambás jamais o capitão Pedro Teixeira
    Sequer atravessaria a baia do Marajó para cruzar o canal do Tajapuru
    e subir a remos o grandíssimo Amazonas até Quito, no Equador.
    Sem acordo dos índios Nheengaíbas as ilhas do Marajó e o Cabo do Norte
    Não deixariam os jesuítas com o payaçu Antonio Vieira botar os pés
    Ao rio Babel (Amazonas dos catequistas):
    e nunca os frios canhões do Presépio sozinhos seriam capazes
    de romper a indelével linha de Tordesilhas apenas defendida
    pela guerrilha selvagem do índio Marajó.

    Só desta maneira – o moço arrematou – foi possível a Alexandre de Gusmão
    invocar o direito romano do “uti possidetis” real, que prevaleceu no Tratado de Limites de Madri de 1750 e por fim reconhecido definitivamente válido em Santo Ildefonso 1777,
    fim do despotismo esclarecido de Pombal.
    Como diria Oswald de Andrade, “fizemos Cristo nascer na Bahia ou em Belém do Pará”.
    “A proeza não foi fácil, hen, este menino!”,
    disse o velho içando a vela pra recomeço da viagem. A maré virou.

    José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da gente marajoara".

    autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com

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