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    O Grito

    O Grito Madrugada alta, amada, parece que o mundo desabou e há um silêncio tão profundo quanto o esquecimento. Há em meu peito um herói das horas vencidas e ele escreve sobre as vertentes emocionais destas chuvas, destas casas destes dias lentos de março. Em minha cama os punhais das palavras cotidianas. Em minha cama […]

    POR: Redação

    3 min de leitura

    O Grito

    Madrugada alta, amada,

    parece que o mundo desabou

    e há um silêncio tão profundo

    quanto o esquecimento.

    Há em meu peito

    um herói das horas vencidas

    e ele escreve

    sobre as vertentes emocionais

    destas chuvas, destas casas

    destes dias lentos

    de março.

    Em minha cama

    os punhais

    das palavras cotidianas.

    Em minha cama

    os lençois noturnos

    e sulcos e cabelos e mãos:

    meu corpo, porém,

    está frio.

    Nada busco senão

    detratar as verdades oficiais

    dos burocratas de plantão

    e sigo,

    pequeno som na escuridão,

    por salientes operetas

    onde tudo parece ser

    e tecer

    as cores das semeaduras.

    Talvez exorte a esperança. Um dia, talvez.

    De terno busco auroras: não as encontro

    e volto para casa triste e sonolento.

    Estiolado volto para casa

    sabendo o mundo

    apenas o dia

    após o outro.

    Já não posso acovardar-me: meu caminho

    não tem volta e

    é sempre adiante.

    Conheço a estrela-guia

    e não tenho medo

    de seu brilho.

    Fui pelas estradas procurando cidades numerosas,

    fotografias desaparecidas,

    diários reveladores

    e sepulturas para que os odiosos

    nunca vençam a luta

    pela a memória de nossa época.

    Ofegante, apenas o vento

    conversara com meus cabelos

    e a paisagem do sertão

    e dos cordéis

    me pareceu

    inóspita.

    Fui pelas pessoas procurando saber

    dos destinos das grotas e das vidas

    e agreguei

    sob os romances das espingardas

    os motivos do fogo

    e os valores das trincheiras.

    Conversei em diversas línguas

    e li poemas com candeeiros.

    Andei à cavalo.

    Subi pelos pedrais da serra martirizada.

    Amei como um bruto

    e também amei

    com suavidade.

    Febril busquei as manhãs vermelhas

    e colérico continuo

    a detestar os senhores

    de terno e gravata

    da sacrossanta impunidade.

    Os velhos conservadores

    e os modelos de eficiência

    disseram-me que tudo estava

    em calmaria: fiz,

    na harmonia dos algozes,

    vastas denúncias de prisões.

    Falido estive antes de acontecer

    minha morte fora anunciada

    no ventre de minha mãe.

    Estive feliz

    e também passei tristezas,

    jamais andei

    com begônias na lápela.

    Para apagar o fogo

    fui gasolina.

    Para estancar o sangue

    fui lâmina cortante.

    Para o nascente vindouro

    fui noite profunda.

    Paulo Fonteles Filho

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