Porto Franco, no Sul do Estado do Maranhão, é uma cidade singular. Foi essa a impressão que tive ao chegar lá na tarde ensolarada do domingo (30/05/2011) para acompanhar as homenagens ao guerrilheiro do Araguaia João Carlos Haas Sobrinho, o médico que morou ali por quase dois anos no final da década de 1960. Situada a mais de cem quilômetros de Imperatriz, a cidade pólo da região, Porto Franco impressiona pela organização, limpeza e hospitalidade.

Instalado em um modesto hotel — onde já estavam Sônia Haas, irmã de João Carlos, e Nelson Sales, presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) em São Leopoldo (RS), a cidade natal do médico —, fui recepcionado pelo secretário de Cultura, Vaner Marinho. A primeira visita foi à rua onde o “doutor João Carlos” — como é conhecido em Porto Franco e região — morou, em frente à antiga residência de Maurício Grabois (seu Mário), Elza Monnerat (dona Lúcia), Gilberto Olímpio (Gilberto) e André Grabois (Zé Carlos).

Dona Dedé e dona Dejacir

A vizinhança logo começou a descrever passagens em que o “doutor João Carlos” se destacou pela solidariedade e dedicação ao povo da região. Os relatos deram conta de um jovem desprendido, ousado e educado, que rapidamente conquistou a confiança de todos. Em duas residências que visitamos, os vizinhos se revezam para responder às perguntas do ansioso repórter e dos demais visitantes que queriam saber detalhes da convivência com os que seriam guerrilheiros do Araguaia.


Dona Dinorah, Izete, seu Políbio e dona Chiquinha, vizinhos do "doutor João Carlos", com Sõnia Hass

O “doutor João Carlos”, segundo seus vizinhos, não escolhia dia e hora para atender aos pacientes de uma região que nunca vira um médico. Auxiliado por dona Dedé (a enfermeira Desirée) e dona Dejacir, ele trabalhava dia e noite para dar conta de tanta demanda. A pé ou em um Jipe de um morador de Porto Franco, às vezes os três percorriam longas distâncias para prestar socorro na zona rural ou em outras cidades da vizinhança, enfrentando lama, poeira e estradas precárias.


Dona Dejacir, à esquerda, com Nelson Sales e Sônia Haas

Os moradores da casa em frente à do “doutor João Carlos” chegaram depois e, para os vizinhos, não davam sinais de que eram conhecidos. “Seu Mário” cortava cabelo dos vizinhos e ajudava Gilberto e Zé Carlos a vender miudezas — de roupas a utensílios domésticos — na própria casa ou em andanças com uma caminhonete Willys azul. Os vizinhos também relataram que ficavam horas e horas conversando, principalmente nas noites enluaradas, ou participando de brincadeiras típicas locais.


Izete, amiga do "doutor João Carlos", em frente a residência de Grabois, Elza Monnerat, Gilberto e Zé Carlos

“Seu Mário” tinha o hábito de deixar o rádio ligado nos noticiários em cima da mureta da casa enquanto conversava. Zé Carlos e Gilberto gostavam de jogar futebol e chegaram a integrar a seleção local que disputava torneios regionais. O primeiro era perna-de-pau — usava óculos e não primava pela habilidade com a bola nos pés, condição que sempre o empurra para a posição de goleiro —; o segundo era um exímio ponta-de-lança, com faro de gol. “Dona Lúcia” morou pouco tempo com o três, mas deixou a impressão de uma senhora distinta, prestativa e culta. As amizades — inclusive com o “doutor João Carlos — foram se solidificando aos poucos.


José Fernando, entre Sônia Haas e o filho José Hamilton, se emociona ao falar do "doutor João Carlos"

Saímos dali já com a noite avançando e fomos matar a fome em uma lanchonete com mesas ao ar livre, onde se juntou ao grupo o prefeito Deoclides Macedo (PDT) e o ex-vereador, ex-vice-prefeito do município e ex-deputado estadual Fortunato Macedo. Em meio à conversa, apareceu no local, por coincidência, José Fernando Porto de Aquino, o dono da perua Kombi que chegou com o “doutor João Carlos”, em 12 de julho de 1967, para apresentá-lo ao farmacêutico e até então “médico” da região, Jano Macedo — pai do prefeito Deoclides Macedo. Fernando, como é conhecido, não conteve a emoção ao lembrar aqueles fatos. Com lágrimas nos olhos, apresentou o filho José Hamilton, que nasceu pelas mãos do “doutor João Carlos", segundo ele o último parto do médico antes de deixar a cidade quase dois anos depois.


À esquerda, o vice-prefeito Lourival Milhomem, que providenciou as instalações para o hospital do "doutor João Carlos"

Na segunda-feira (31), a maratona de visitas e entrevistas começou cedo. A primeira parada foi no Ponto de Cultura “João Carlos Haas Sobrinho”, mostrado em detalhes pelo secretário Vaner Marinho. Mais uma coincidência: no local estava Lourival Milhomem, o vice-prefeito na época em que o “doutor João Carlos” chegou a Porto Franco que se encarregou de providenciar as instalações para o hospital em que ele iria trabalhar — hoje, o Fórum da cidade. O prefeito era Gerôncio de Souza, que de pronto apoiou a idéia.


À esquerda, Gerôncio de Souza, prefeito quando o "doutor Jão Carlos" chegou em Porto Franco. Segurando a placa, ao lado de Sônia Haas, Expedito, auxiliar administrativo do "doutor João Carlos".

À tarde, voltamos ao local em que os então futuros guerrilheiros residiram para entrevistas com os moradores, que serão disponibilizadas pelo Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois. Entrevistei também dona Dejacir — a auxiliar do “doutor João Carlos”—, que descreveu em detalhes a rotina de trabalho do médico e de dona Dedé, a enfermeira. Ao lado da irmã Maria Dejesus, ela falou com ternura e emoção, demonstrando que nutre pelo “doutor João Carlos” uma profunda gratidão.

Prisão e morte de Epaminondas

Entrevistei ainda uma senhora conhecida como Zelinha, nora de Epaminondas — importante apoio logístico da historia dos então moradores provisórios que seriam guerrilheiros do Araguaia —, que ficou preso em um campo de concentração em Imperatriz até ser transportado para Brasília, onde foi morto sob torturas. Bem falante e envolvida com a história do sogro, ela revelou fatos e documentos que comprovam a brutalidade da repressão. O dia terminou com a sessão da Câmara Municipal que entregou o título de “Cidadão portofranquino” pós-morte ao “doutor João Carlos”.


Sônia Haas, Vaner Marinho e o prefeito Deoclides Macedo

Por três dias, Porto Franco lembrou o médico guerrilheiro. A inauguração de um complexo esportivo na manhã do último domingo (29) se transformou em uma grande homenagem ao “doutor João Carlos” e aos combatentes da Guerrilha do Araguaia. O corte da fita simbólica e o descerramento da placa foram feitas pelo prefeito Deoclides Macedo, pelo ex-deputado federal Flávio Dino (PCdoB); Por Ricardo Gomyde (representando o ministro do Esporte, Orlando Silva); por Nelson Sales e por Sônia Haas. O povo se aglomerou no ginásio para assistir a solenidade, que contou também com a presença dos deputados estaduais Rubens Júnior (PCdoB), Carlinhos Amorim (PDT) e Valéria Macedo (PDT) — além de vereadores, lideranças sindicais e representações de comitês municipais do PCdoB de várias cidades da região.


Vaner Marinho

O prefeito Deoclides Macedo disse que o “doutor João Carlos foi um gaúcho que adotou Porto Franco como sua terra natal e aqui prestou relevantes serviços na área da saúde pública”. Mais que isso, destacou o prefeito, “ele foi um homem que pagou com a própria vida pelos seus ideais e é um dos responsáveis pela redemocratização de nosso país”. O prefeito de São Leopoldo (RS), Ari Vanazi (PT), mandou uma carta com mensagem de congratulações à iniciativa da prefeitura de Porto Franco. Segundo ele, ainda este ano será inaugurado um busto no centro de São Leopoldo em homenagem ao “doutor João Carlos”. Flávio Dino disse que “João Carlos e seus companheiros sacrificaram a vida para que nós tivéssemos liberdade, democracia e pudéssemos continuar sonhando com um novo Brasil”.


Sônia Haas, Ricardo Gomyde, Deoclides Macedo, Vaner Marinho e Flávio Dino

Em todos os relatos dos moradores locais, um misto de gratidão, saudade e solidariedade demonstrou o quanto o “doutor João Carlos” marcou aquela população. As conversas eram interrompidas por emoções que chegavam às lágrimas. O ponto mais dramático foi o da partida do “doutor João Carlos” de Porto Franco. Segundo os relatos, ele tomou a decisão após receber um telegrama que o deixou perplexo — “branco”, segundo os que presenciaram a cena. Era, possivelmente, o comunicado de que a ditadura havia decretado o Ato Institucional – 5 (AI-5), que instituiu o terror como política de Estado.

Ao vazar a informação, o padre local teria mobilizado outros sacerdotes — entre eles o bispo de Tocantinópolis —, prefeitos e personalidades da região para impedir a partida do “doutor João Carlos”. Uma reunião de emergência decidiu que o povo seria convocado para a praça em frente ao hospital na noite do dia seguinte para um ato que pretendia demover o médico da idéia de partir. Foi o “maior comício” da história de Porto Franco até hoje, segundo o ex-vice–prefeito Lourival Milhomem.


Local onde o "doutor João Carlos" trabalhou


As informações dão conta de que mais de três mil pessoas estiveram no local. Mas não houve jeito — na manhã do dia seguinte, o “doutor João Carlos” deixou a cidade. Foi para as matas do Araguaia, na região de São Geraldo, no Estado do Pará, onde adotou o nome de “Juca”. Morou na propriedade de Paulo Rodrigues, que seria o comandante do Destacamento C da Guerrilha, até ser morto pela repressão em setembro de 1972.

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Veja a Lei aprovada pela Câmara Municipal de Porto Franco:

A Câmara Municipal de Porto Franco concede título de cidadão Porto franquino Pos-Morte e medalha de honra ao Mérito ao médico João Carlos Haas Sobrinho

……Lei Municipal Nº 002/2008

….. Que concede Título de Cidadão Porto Franquino ao Doutor João Carlos Haas Sobrinho com homenagem Pós-Morte e da outras providências.

….. A Câmara Municipal de Porto Franco, Estado do Maranhão, em uso de suas atribuições legais e depois de ouvir a maioria de seus membros, aprovou a seguinte Lei:

….. Art. 1º – Fica concedido o Título de Cidadão Porto Franquino ao Doutor João Carlos Haas Sobrinho, em homenagem Pós-morte, com a concessão tambem de uma medalha de honraria.

….. Art. 2º – Esta Lei entrara em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. .

….. Gabinete da presidência da Câmara municipal de Porto Franco (MA) aos dezoito dias do mês de fevereiro de 2008.

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Veja breve memorial da passagem de João Carlos Haas Sobrinho por Porto Franco — um depoimento de Fortunato Macedo, mentor da proposta de concessão do título de "Cidadão portofranquino" a João Carlos Haas Sobrinho, pronunciado na sessão da Cãmara Municipal:

Meninos, eu vi doutor João Carlos

É impossível passar por Porto Franco sem sentir a presença de João Carlos Haas Sobrinho. Os depoimentos se sucedem, sempre marcados por visível emoção e um profundo respeito que 40 anos não sepultaram.

A referência imediata é a do jovem médico dedicado, sempre disponível, afável e solidário. Numa cidade sem nenhum médico permanente, João Carlos logo virou um ídolo na pequena Porto Franco de 67.

A saída, tão inesperada quanto a chegada, o silêncio, a saudade e enfim a notícia chocante de que o médico era um guerrilheiro e tinha sido morto. Um enredo vivo filtrado pela olhar de quem à época era uma criança.

A criança do final de 60 é hoje o cidadão Fortunato Macedo, ex-vereador que apresentou a sugestão para que a Câmara concedesse o título de cidadão portofranquino a João Carlos.

Ele descreve um breve memorial da passagem do médico-guerrilheiro que em menos de dois anos inscreveu seu nome na história da cidade e mais que isso, no coração das pessoas que o conheceram.

“A mãos desse homem são abençoadas”
Fortunato Macedo

Esse refrão, repetido em todos os cantos de Porto Franco, é a maior lembrança que tenho do Dr João Carlos.

Suas mãos tinham tato de bondade e de justiça.

Eu era criança, era muito curioso. É muito prazer, eu conheci o Dr João Carlos!

Não se sabia de onde ele vinha, quem era e o que queria, não se sabia de sua família. Foi bem melhor assim, pois os seus atos dispensaram qualquer pergunta. Ele foi perfeito.

Jamais Porto Franco viu tanto silêncio e paz como na sua chegada. Mas também nunca se viu por aqui tanto barulho, clamor, saudade e tanta consternação na sua saída. No fim daquela concentração na porta do posto de saúde/hospital – na Praça Getúlio Vargas, em cima daquele caminhão que serviu de palanque – o silêncio foi total. Na verdade, foi o silêncio mais ensurdecedor que ouvi até hoje – o Dr João Carlos iria embora. Que pena !!! Como Dr João Carlos deixou saudades !!!

Vejo até agora o Expedito botando água para o Dr João Carlos, lavando e engraxando sua bicicleta Monark Barra Circular – aquela bicicleta azul, bonita e novinha em folha. Eu morria de vontade de dar uma voltinha naquela bicicleta! Mas, por mérito, ele a deixou par o Expedito. O Expedito, não se sabe por que “cargas d´água”, ele trocou a biclicleta com o João Barros por um espingarda calibre 22 – uma fobéia.

Vejo a Dona Dejacir ajudando o Dr João Carlos e a Dona Dedé – parteira/enfermeira de todas as horas – enfermeira/parteira de todos nós.

Vejo-o lendo muitos livros de medicina, falando de Hipócrates, Paracelso e outros vultos da medicina. Meu irmão – o Ruy – perguntando tudo – creio que por isso e por ele ter curado o Ruy de uma verminose persistente ele seguiu a profissão do Dr João Carlos.

Entre tantas generosidades, agradeço por ele ter resolvido meu problema de hipovitaminose e raquitismo. Foi também por que que tive a oportunidade de casar com a Sinay – ela nasceu pelas mãos do Dr João Carlos e Dona Dedé.

Toda doença desconhecida naquela época era “febre”. Numas dessas febres resistentes, o Colemar Filho (Filho do vereador Colemar e autor do Projeto de Lei que concede o Título hoje comemorado foi salvo pelo Dr João Carlos).

Ele foi um defensor do meio ambiente, meu falou muito dos animais e dos alimentos – isto me ajudou a ser médico veterinário. E foi com alguma lembrança sua que me tornei advogado, na busca de prestação jurisdicional para os mais necessitados. Também não posso esquecer as nossas pescarias com Dr João Carlos na Ingarana ou na Pedra do Braga: sempre na companhia do Hélbio(filho do Seu Políbio), do Nélio(filho do Seu Antonio Sá) e do Hélio(meu irmão). Dr João Carlos adorava pescar Mandi Cabeça de Ferro e Piau Cabeça Gorda e depois comer frito no azeite de côco babaçu.

Sua fama de bom médico corria rápido e, como dizia a Dona Branca: “por aqui é Deus e o Dr João Carlos”.

Dr João Carlos era bom de baile. Lembro até de duas namoradas dele: a Aidê, uma jovem bonita de Pontalina-GO que passava férias em Porto Franco hospedada na casa da tia Carmelina; e a Cassionilda, que morava/estudava na casa do tio Edeci Santos. Dr João Carlos era participativo e muito integrado na nossa comunidade.

Lembro bem de sua presença lá em casa, contando muita história – era fantástica a sua cultura geral e o gosto pela medicina e pela justiça social. Vejo com muita clareza ele na conzinha lá de casa comendo costelinha de porco com polenta, aliás a tal da polenta que ele ensinou a mamãe fazer. Foi com ele que aprendi a comer polenta e beber chimarrão. Hoje já não faço mais isto, pois me disseram que polenta tem alta caloria. Dr João Carlos adorava comer banana comprida no leite, mingau de arroz, que ele chamava de arroz doce. Ele apreciava comer bolo cacete e as mangabas feita pela Dona Zeca ou pela Evinha da Lina. A mamãe e a dona Raimunda do Colemar mandavam a gente levar os bolos.

Eu, o Hélio(meu irmão) e o Ernani(meu primo), com muita frequência levávamos pequi, oiti e manga de cheiro para o Dr João Carlos. O Ernani inclusive é afilhado dele – quanto privilégio.

Dr João Carlos gostava de uma boa música, era desportista. Com certeza está hoje vibrando com o título deste ano de campeão gaúcho do seu Internacional, o Colorado.

Lembro muito bem o dia que o Dr João Carlos me levou,com o Haroldo, meu irmão, para cortar o cabelo com o seu Mário. Depois fomos várias vezes sozinhos. Seu Mário cortou o cabelo de muito menino em Porto Franco e toda vê repetia: “vou fazer um corte pra deixar você parecido com os galãs do Rio de Janeiro”. Nós virávamos, com muita alegria, apenas galãs do rio Tocantins. Muito tempo depois soube que quem cortava nosso cabelo era o senhor MAURÍCIO GRABOIS. Quanta honra pra mim!!!

Nós corremos muito atrás das partidas de futebol pra ver a seleção de Porto Franco jogar. Vimos muitos os amigos do Dr João Carlos, Gilberto e o Zé Carlos – dois sujeitos legais – jogando na seleção de nossa cidade. Gilberto, excelente ponta de lança goleador. Já o Zé Carlos era meio cintura dura, mas um ponteiro direito raçudo. Só tempos depois soubemos que o Gilberto era genro de Maurício Grabois e o Zé Carlos, ou André Grabois, era filho.

Interessante quando Dr João Carlos nos fala de história, economia, políticas públicas e conhecimentos gerais. Foi com ele que ouvi pela primeira vez falar de Karl Marx, Mostesquieu, Fran Kafka, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Érico Veríssimo e tantos outros escritores.

Dr João Carlos foi um excelente médico de corpos e médico de gente. Entendi muito bem os seus propósitos, a sua vontade de curar toda a sociedade de feridas profundas, como a pobreza total, a fome,a tortura, o analfabetismo, a corrupção e o desemprego.

Ele me fez entender, desde cedo, que ainda e sempre há tempo e esperança para combater desigualdades, preconceitos, ditaduras, tiranias e oligarquias. Dr João Carlos nos ensinou que a morte física jamais poderá servir de pretexto para de desistir sempre à morte ideológica.

Lamento muito terem sumido aquela foto tirada no batente lá de casa pelo fotógrafo Luis Penca. Era uma bela foto: o Hélio, meu irmão, de um lado e eu do outro, de calção e sem camisa, e o Dr João Carlos no meio, sentado, lendo pra nós Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Com ele aprendi a entender que só e transforma uma nação pela educação e pela justiça social.
Não esqueci até hoje quando ele cantava bem baixinho pra gente Hasta Siempre Comandante( De Carlos Puebla), Bella Ciao(música italiana de autor anônimo – criação dos combatentes partidários, de 1945) e foi com ele que comecei a gostar de Pra Não Dizer que Não Falei das Flores(de Geraldo Vandré).

Um dia ele nos falou do extraordinário cantor e compositor Lupicínio Rodrigues. Pareceu estranho, pois torcedor COLORADO não costuma falar em autor de hino GREMISTA! Dr João Carlos foi humilde e muito justo.

Foi por ele que pela primeira vez ouvi se falar da UNE. Creio que isto me inspirou a mais tarde pertencer a UNE e de tantas lutas nas escolas e nas ruas.

Não posso mais, infelizmente, mostrar os escritos que fazíamos para ele ler e receber o seu visto. Perdemos o seu precioso autógrafo, perdemos fotos e registros preciosos. Também fomos algozes de censuras, mas ficou a doce lembrança de muita coisa que ele fez.

Só muito tempo depois entendi que esperança sempre vence o medo.

Seu exemplo me ajudou a entender o que é liberdade política, inclusão e justiça social.

Sei que sua inspiração me deu a oportunidade de ter sido vereador,Secretário Municipal, Vice-prefeito, Secretário de Estado e deputado.

Fiquei honrado quando, Secretário Municipal d Planejamento e Coordenação Política no primeiro mandato do prefeito Deoclides Macedo, participei da municipalização da saúde e na construção do Hospital sugeri ao prefeito que desse ao Centro Cirúrgico o nome de Dr João Carlos Haas Sobrinho. A homenagem foi providencial e merecida.

Conheço bem a intransigência, o autoritarismo, a perseguição, a injustiça e a falta de oportunidades. Sempre vi os menos favorecidos serem desrespeitados em seus direitos e garantias sociais.

Na década de 70, morando em Goiânia, soubemos da morte do Dr João Carlos na Guerrilha do Araguaia. A mamãe chorou muito, o papai chorou muito, nós choramos muito. Parafraseando Bentinho ao falar de José Dias em Dom Casmurro: “Por que hei de negar que chorei por ele???”

Por tudo isso, um dia sonhei ver Dr João Carlos cidadão de Porto Franco, cidadão do mundo.
Quis numa época, mas o “sistema” não deixou, quis noutra época e o “sistema” não deixou novamente. Mas agora o povo está permitindo, o tempo deixou, a hora é agora, Deus permitiu.

Assim, agradeço a todos os vereadores, em especial o vereador Colemar Rodrigues do Egito, que entendendo não ser intempestiva a minha solicitação, aprovaram a outorga do título de cidadão portofranquino ao Dr João Carlos Haas Sobrinho. Que o Brasil siga esse exemplo.

Agora me resta a dizer, parafraseando Chico Buarque: “Meninos eu vi, juro que um dia eu vi um homem ser feliz”.

Meninos, eu vi o Dr João Carlos, eu vi um dos homens mais inteligentes e humanos da minha vida. Dr João Carlos foi perfeito.

Dr João Carlos, que a sua lembrança no seja suave e sábia, que a sua vida seja de muita inspiração e nos aguarde no céu: ainda iremos pra muitas trincheiras e, cobertos pela justiça imputada por Deus, haveremos de fazer muita justiça social e viver muita liberdade política.

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Discurso do poeta imortal, Fortunato Moreira Neto, quando do histórico ato público da população de Porto Franco e região, na tentativa de evitar a partida do "doutor João Carlos".

Ilustres Ouvintes:

Nobres concidadãos aqui presentes:

Na reunião popular de ontem, fui surpreendido para fazer uso da palavra. Então, falei, não porque me sentisse em plenas condições de fazê-lo; mas, circunstancialmente, para dar um simples haver num grande debito de gratidão. Creio, porém, que o crédito mais aumentou a importância do débito, o qual sempre há de ficar acima de todos os pagamentos! E aqui me encontro por causa de tal divida, por cujo motivo me cumpre dirigir-vos, em inculta linguagem, expressões e pensamentos, em referencia aos elevados e honrosos objetivos desta impotente e cordial manifestação de apreço, e condignamente feita, agora, o Dr. João Carlos, eminente medico e super-homem que, a serviço do bem, há tempos se encontra entrenós, como nobre benfeitor da humanidade.

Ora, senhores que a arte de falar bem – a mais difícil de todas as artes-, é sublime privilégio de raros homens chamados gênios, entre os quais posso citar: – Demóstenes, na Grécia; Cícero, na Itália; Dr. Joaquim Nabuco de Araujo, Dr. Rui Barbosa, o Padre Antonio Vieira ( o Crisóstomo); Monte Alverne e mais outros do Brasil; e todos de renome sobejamente conhecido da História da Civilização ou na História Universal.

Quisera meus amigos, ter o divino dom da oratória, e para vos dar uma inconcussa prova de leal amizade e de consideração, neste instante, e sobre o assunto em foco, e que ora tanto nos empolga e prende a atenção, e por justas razões.

Um simples palpite de minha parte quero juntar às vossas mais queridas aspirações, e que deram ensejo a esta segunda reunião coletiva e seleta, e que significa a continuação dos nossos melhores anseios pelo completo bem estar e felicidade do bom e heróico Povo da nossa querida Cidade!

Eis o meu singelo modo de pensar a respeito da crescente e prosperidade que desejamos a Porto Franco e a nossa Heróica gente e do sertão.

Primeiro que tudo devemos apelar para a Suprema Vontade da Providencia Divina, que trouxe o Dr. João Carlos ao nosso modesto Convívio, e para que tão douto e generoso médico prossiga conosco, como preciosa dádiva do Céu a todos nós, e ante as nossas dores e sofrimentos; segundo, continuarmos constantes no apelo que lhe aprouver, ou for conveniente a seus próprios interesses, e de modo que Deus sempre abençoe a sua honrosa estadia em nosso meio-ambiente.

Creio ser de nossa absoluta necessidade de, termos aqui uma importante junta Médica, e que lute, abnegadamente e incessantemente, no sentido de salvar-nos das doenças, e sob o
patriótico amparo da Bandeira do Brasil, heroicamente e hasteada ou desfraldada entre os suaves e harmoniosos acordes do Hino Nacional a nosso favor.

Da Junta Médica em pálida e obscura sugestão de um rude Mestre- escola do sertão, o Dr. João Carlos poderá ser o erudito Diretor ou Dirigente, tendo o necessário tempo para acompanhar a evolução da Medicina Moderna ou da Ciência Médica atualizada; e para inteira felicidade dos pacatos habitantes de Porto Franco, e de quaisquer outros lugares que procurarem os relevantes serviços do seu conceituado Consultório Médico bem esse que nos seja logo e inadiavelmente dado pela atual administração do País, em nome de Deus, e para maior Gloria de nossa Pátria estremecida.

E, assim, Dr.João Carlos, mais um mínimo haver no insolvível débito de gratidão que tenho convosco.

Ide e voltai imitando Pasteur!

Ide e voltai imitando Pasteur!

E ponto final, por enquanto.

Porto Franco, 1º de Novembro de 1968

Fortunato Moreira Neto – Poeta do Sertão