A dupla jornada e o feminismo
Já vai longe a época em que queimar sutiãs em praça pública simbolizava a luta pela igualdade dos sexos. Enquanto os sutiãs alcançaram novo status, tornando-se peças de vestuário a serem exibidas, os discursos das feministas parecem ter perdido a veemência. Na maioria dos países, o avanço feminino nos campos profissionais não foi acompanhado por estruturas que facilitem a dedicação ao trabalho, já que as tarefas domésticas e os cuidados com a família continuam recaindo sobre as mulheres. Terceirizar os serviços domésticos pela contratação de faxineiras e babás, até há pouco tempo saída acessível para as classes médias no Brasil, vem se tornando mais dispendioso. Mas nem todas as brasileiras pensariam em retomar a função de dona de casa em horário integral, opção que agrada às britânicas, mesmo as com carreiras bem-sucedidas, segundo pesquisa da antropóloga Catherine Hakim, da London School of Economics.
As conclusões de Catherine causaram polêmica e dificilmente encontrariam eco no Brasil. A tese que motivou maiores críticas foi a de que muitas britânicas procuram se casar com homens que lhes garantam segurança financeira, permitindo que optem por permanecer no lar. O comportamento da brasileira se assemelha ao das que vivem nos países desenvolvidos, adiando tanto o casamento quanto a maternidade e reduzindo o número de filhos. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) confirmou a tendência de crescimento no número de mulheres chefes de família no país em todas as categorias sociais. Apesar da nova postura, a dupla jornada de trabalho é assumida pela maioria das 38,4 milhões de mulheres no Brasil, que tem 40 milhões de donas de casa em tempo integral, número que seria inferior se houvesse mais creches no país, acredita a economista Hildete Pereira de Melo, editora da revista "Gênero", da UFF.
"A mulher pobre sempre trabalhou muito, apesar da carência de creches histórica no Brasil. Hoje, seriam necessárias creches para 2 milhões de crianças, que acabam ficando com as vizinhas, com as avós ou sob a supervisão de irmãos mais velhos. Esse tipo de arranjo não existe no norte da Europa, onde as famílias não têm os mesmos hábitos que as nossas", diz Hildete, que viveu na Inglaterra. Outro sinal dos tempos é o papel das avós nos cuidados com os netos. Mesmo com o adiamento da maternidade, nem sempre ele coincidirá com a aposentadoria da avó, que também tem uma carreira, sejam as mulheres de classe média ou as mais humildes.
Aparentemente, a luta das mulheres brasileiras começa no front doméstico, onde são encarregadas de afazeres que esporadicamente são assumidos pelos homens – principalmente depois que se aposentam. "A dupla jornada de trabalho é uma resposta à falta de políticas públicas de apoio à maternidade, que já não é o único foco de realização das mulheres", observa Bila Sorj, do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da UFRJ. "Há quem idealize ficar em casa, mas isso está ligado à qualidade da ocupação. São pessoas que trabalham exclusivamente para sobreviver e que encaram a aposentadoria como um prêmio."
O estresse dentro do lar deve aumentar, já que a tendência é de redução da oferta dos serviços hoje desempenhados pelas empregadas domésticas, ocupação de 6,2 milhões de brasileiras, que volta a ser a principal atividade profissional feminina desde a crise de 2008. No ano anterior, haviam sido superadas em número pelas comerciárias, mas a atividade cresceu depois das demissões na indústria e no comércio. "A remuneração do serviço doméstico foi a que teve maior crescimento nos últimos cinco anos, o que torna sua contratação inviável para muitas famílias", diz Hildete.
Desvalorizado, embora essencial, o serviço doméstico é trocado por atividades mais sofisticadas nos períodos de crescimento econômico. "As meninas pobres, que geralmente frequentam as escolas por mais tempo do que os meninos, buscam colocações melhores no comércio ou na indústria. A empregada doméstica que dorme no serviço e cuida das crianças, misturando as relações pessoais com as de trabalho, e que amortece a briga em torno das tarefas em casa, tende a desaparecer", diz a demógrafa Moema Guedes, que aponta um novo momento da luta pelos direitos das mulheres – o da conquista dos postos de chefia no trabalho.
As uniões "por interesse" que causam espanto para os ocidentais são bem mais recentes do que nos recordamos, diz a antropóloga Míriam Grossi, coordenadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina. "As pessoas se horrorizam, mas o casamento é um projeto social e sempre atende a interesses." Para ela, quando uma mulher abre mão da carreira por conta da função do marido, está investindo no projeto de carreira desenvolvido em parceria.
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Fonte: Valor Econômico