Belluzzo, O Capital e o refúgio das novas conexões
O professor Belluzzo – dileto amigo e nosso prestigioso colaborador [1] – está concluindo mais uma empreitada inovadora. Seu novo livro promete dar uma revirada – por “de cabeça para cima” – à interpretação das desordens do capitalismo financeirizado dos dias que correm.
Para tal, Belluzzo tece a partir da construção teórica fecundada pelo velho Marx, entretanto reiterando escoimar vulgaridades difundidas em nome do revolucionário cientista social alemão. Em idêntica senda que a “Escola de Campinas” (economia da Unicamp, São Paulo) terminou também por forjar, desde a publicação de “Valor e capitalismo. Um ensaio sobre economia política” (Brasiliense, 1980), originalmente Tese de doutorado (1975) do professor paulista de Bariri.
Mas esta angular analítica do capitalismo contemporâneo esteve presente, mais recentemente, em grande parte dos “Ensaios sobre o capitalismo no século XX” (UNESP/Unicamp, 2004), e notadamente em “Os antecedentes da tormenta. Origens da crise global” (UNESP/FACAMP, 2009) – este uma reforçada coletânea de ensaios antigos e novos.
Certamente, quem lhes deitou os olhos tem por obrigação (e convencimento) reconhecer a larga erudição do professor Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, bem além – afirmo aqui – dos insights da economia política crítica latino-americana. Erudição e disposição para o exercício da compreensão dialética dos fenômenos gerais e gravíssimos impasses em que se debate a civilização do regime do capital; notadamente em suas formas assumidas de sociedades burguesas européia e americana.
Por isso mesmo, nada tem de trivial a presença de Belluzzo no “Biographical Dictionary of Dissenting Economics” (2ª edição, 2000, Edward Elgar Publishing, UK), editado em 1992, pelos pesquisadores britânicos Philip Arestis e Malcolm C. Sawyer. Ao contrário: além dele, apenas Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares são os únicos brasileiros a freqüentar o heterodoxo e instigante compêndio, junto às grandes estrelas da história da economia política internacional.
A exemplo de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, lá estão os norte-americanos Maurice Herbert DOBB (1900-1976), Paul Alexander BARAN (1910-1964), Hyman Paul MINSKY (1919-1996) e Paul Marlor SWEEZY (1910-2004), os ingleses Joan ROBINSON 1903-1983, John Maynard KEYNES (1883-1946), os italianos Claudio NAPOLEONI (1924-1988) e Piero SRAFFA (1898-1983), os poloneses Rosa LUXEMBURG (1871-1919) e Michal KALECKI (1899-1970), o russo Nikolai Ivanovich BUKHARIN (1888-1938), o canadense John Kenneth GALBRAITH (1908-2006), o alemão Rudolf HILFERDING (1877-1941), o húngaro Nicholas KALDOR (1908-1986), o chileno Raul PREBISCH (1901-1985), os austríacos Josef STEINDL (1912-1993) e Karl POLANYI (1886-1964), o belga Ernest MANDEL (1923-1995), entre os quase cem nomes selecionados.
Mas, a propósito do novo livro do professor Belluzzo, gentilmente ele nos cedeu (e autorizou) a publicação do inédito Capítulo IV, “O Capital” e a Ontologia do Ser Social. Nele, como verá o (a) leitor (a), o autor refina o desvelar dos movimentos categoriais que estruturam a totalidade da natureza do processo da produção capitalista, muito provavelmente sintetizado na seguinte formulação:
“A investigação de Marx examina a reprodução do capital em suas determinações materiais e sociais: trata-se da reprodução conjunta das relações de produção e das formas materiais impostas às mercadorias pelo regime do capital”. Ou ainda, o propósito de Marx, ali, “é analisar simultaneamente a reprodução, em conjunto, das formas materiais do capital e das relações sociais da produção”.
Nada simples, porém francamente inteligível, é sabido que o pensar de Marx, particularmente em O Capital, sofre decisiva influência das leis da dialética hegeliana. Mas em Marx, estações, fases, contradição, superação e totalidade lógicas desfilam emanadas do real, de sua materialidade histórica.
O livro do professor Belluzzo, articulando uma apreensão – à lupa – da teoria marxiana originária, aos desvãos das engrenagens do regime do capital hodierno, certamente reforçará nosso arsenal crítico de combate por uma nova civilização.
Nota
[1] Belluzzo escreveu dois artigos exclusivos para a Revista Princípios: “O regime do capital e o desenvolvimento capitalista”, nº 79, jun./jul 2005; “Marx e Keynes e a finança capitalista”, nº100, mar./abr 2009.
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“O Capital” e a Ontologia do Ser Social
L. Belluzzo
Introdução
“O triunfo do capitalismo é a generalização do mercado. (Gilles Dostaler, Marx, La Valeur e L’Economie Politique)
A Economia Política Clássica já estava “contida” no pensamento político e moral inglês do século XVII e na filosofia da Ilustração do século XVIII, que tentavam responder aos desafios colocados pelo nascimento de uma sociedade de indivíduos livres, nos interstícios da ordem assegurada pelo Estado Absolutista.
Carl Schmitt afirma que ninguém compreendeu tão bem a natureza da sociedade dos indivíduos como Hobbes. Quando Hobbes se refere ao estado de natureza, não está se referindo ao momento de constituição do Estado, mas a um momento em que o Estado está ausente, em que as hordas privadas mergulhavam a sociedade dos indivíduos na guerra civil. Isto o fez concluir que é o medo do aniquilamento que constrange os indivíduos a entregar a própria liberdade aos cuidados do Leviatã.
Para o Hobbes de Schmitt, a visão do estado de natureza como um estado em que os homens conviviam pacificamente, em que o homem era naturalmente bom, só pode surgir em uma sociedade em que o Estado está consolidado, em que a sociedade civil já está submetida às leis emanadas do Soberano. A visão do bom selvagem, do homem predisposto ao contrato com o outro, como Locke a formula, pressupõe o Estado já organizado.
Hobbes, ao contrário, surpreende a sociedade dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo. Para Hobbes, a possibilidade de o Estado ser destruído numa crise desencadeada pelas rivalidades “particularistas” da sociedade civil é permanente.
Na Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith dispõe-se a refutar “tão odiosa doutrina e provar que, anteriormente a qualquer lei ou instituição positiva, a mente estava dotada naturalmente da faculdade que permitia distinguir, em certas ações e afeições, as qualidades do certo, do louvável e do virtuoso, e, em outras, aquelas do errado, do condenável e do vicioso… É através da razão que descobrimos estas regras gerais de justiça que regulam nossas ações.”
Na Riqueza das Nações, Smith deriva a propensão para a troca a partir das inclinações naturais do indivíduo naquele “estado rude e primitivo da sociedade”. A troca de mercadorias decorre da disposição natural dos indivíduos privados à relação com o “outro”, cimentando em bases firmes e racionais a nova “sociabilidade”. Os indivíduos, produtores independentes de mercadorias, buscando o seu interesse, “constituem” a sociedade. Smith procede, na verdade, a uma “despolitização” das relações sociais, buscando afirmar a autonomia da sociedade econômica em relação ao Estado Absolutista, sublinhando o seu caráter natural e “espontâneo”, que se deixa revelar na sabedoria providencial e impessoal da Mão Invisível.
Enquanto permanecia a dependência do político, como sustentavam as teorias econômicas do mercantilismo, não era possível pensar a economia como um sistema natural, submetido à operação de leis semelhantes às que comandam o mundo físico e biológico. A economia surge, portanto, com a pretensão de se constituir numa esfera privilegiada da convivência, em que a liberdade é uma imposição das leis que regem a natureza humana. As leis naturais encontram na “razão” dos indivíduos a predisposição para as relações contratuais, concertadas mediante a livre disposição vontade das partes. Tais leis devem seguir o seu curso, desembaraçadas da interferência e do arbítrio da política. “Laissez-faire, laissez-passer” clamavam os fisiocratas, imaginando o organismo econômico como um análogo dos organismos biológicos.
A economia, ao longo do século XIX, foi tomando como paradigma cientifico a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII. O homo oeconomicus, dotado de conhecimento perfeito, busca maximizar sua utilidade ou os seus ganhos, diante das restrições de recursos que lhe são impostas pela natureza ou pelo estado da técnica.
Os modelos de equilíbrio geral, com informação perfeita ou com mercados completos, são os replicantes do Demônio de Laplace. Em seu pecado original de orgulho iluminista, ele se pretende “uma inteligência que abarcaria, na mesma fórmula, os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor átomo: para ele nada seria incerto e o futuro e o passado, estariam sempre presentes sob seus olhos.”
A versão dos epígonos da Economia Clássica busca apresentar o ser racional, calculador e egoísta como fundamento da sociedade, definida como a agregação dos indivíduos atomizados. São naturais e, portanto, incontornáveis, as leis que induzem todo o indivíduo à troca e o submetem ao veredicto da concorrência, ao julgamento impessoal e imparcial do mercado, entendido como lócus de conciliação dos egoísmos privados.
O regime do capital teve sucesso na empreitada de “re-naturalizar” os nexos monetários e mercantis e apresentá-los como as condições necessárias e suficientes para se alcançar simultaneamente a Liberdade, a Igualdade e a fruição da máxima Utilidade para todos. A operação ideológica promove a identificação do regime do capital ao mercado, à liberdade de contrato e à desimpedida circulação de mercadorias, incluída a força de trabalho.
A racionalidade individual é um pressuposto metodológico da corrente dominante, necessário para apoiar a “construção” do mercado como um servomecanismo capaz de conciliar os planos individuais e egoístas dos agentes. Quando este pressuposto está ameaçado por alguma evidência lógica ou empírica que o contraria, diz Lawrence Boland, os teóricos neoclássicos frequentemente empregam argumentos ad hoc para rechaçar qualquer crítica; assim a crítica da hipótese da maximização da utilidade pelos indivíduos racionais tem, antes, que enfrentar o método da economia neoclássica e não o próprio pressuposto.
A epistemologia da corrente dominante oculta uma ontologia do econômico que postula uma visão da estrutura e das conexões da sociedade mercantil capitalista. Para este paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários, tais como os que atavam Robinson Crusoé a Sexta-Feira. Explico melhor este ponto, com a ajuda do filósofo Roy Bhaskar: A concepção atomística exige que as relações de causalidade devam ser extrínsecas. Os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca, isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem. Assim, toda a ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos “atomizados” não são afetados interação com os demais e, portanto, a ação humana ela deve se resumir à comunicação das propriedades a eles atribuídas.
Bhaskar refere-se ao paradigma da física clássica. Mas sua definição é imediatamente aplicável aos fundamentos da concepção neoclássica da sociedade econômica formada por indivíduos racionais e maximizadores. Essas partículas definem a natureza da ação utilitarista e que jamais alteram o seu comportamento na interação com as outras partículas carregadas de “racionalidade”. Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o mercado como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais eficiente possível a circulação da informação relevante.
Essa metodologia reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo. Na versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da experiência sensível. Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância regular de eventos que se expressa, depois de processada pelo sujeito do conhecimento, sob a forma de leis naturais. Não é surpreendente, portanto, que a suposição fundamental das teorias novo-clássicas, com expectativas racionais, afirme que a estrutura do sistema econômico no futuro já está determinada agora. Isto porque a função de probabilidades que governou a economia no passado é a mesma distribuição de probabilidades que a governa no presente e a governará no futuro. Haveria por detrás das ações humanas estruturas naturais capazes de garantir a reprodução, quase sem atritos, das relações sociais. Tudo o que é sólido não se desmancha no ar.
Richard Marsden, em seu livro The Nature of Capital faz uma discussão até certo ponto inovadora sobre o “método” da Economia Política, tal como Marx o apresenta na Contribuição à Crítica da Economia Política e nos Grundrisse. Digo inovadora até certo ponto porque outros autores já haviam apontado a importância desses textos para a compreensão do chamado “método” lógico-genético. Nos Grundrisse, Marx afirma que: “toda a ciência histórica, social, ao observar o desenvolvimento das categorias econômicas, deve sempre levar em conta que o sujeito – neste caso a moderna sociedade burguesa – é algo dado, tanto na realidade como na mente. As categorias expressam, portanto, formas de ser, determinações de existência, frequentemente simples aspectos desta sociedade determinada, deste sujeito, e que, portanto, desde um ponto de vista científico, sua existência de nenhum modo começa no momento em que se começa a falar dela como tal”. (Grundrisse, volume I)
O sujeito (objeto) é o regime do capital plenamente constituído e sua lei de movimento, tal como aparecem aos olhos do observador interessado. “Do ponto de vista científico” o deslindamento do objeto em questão obriga a uma incursão retroativa para que se possa chegar às categorias mais simples desta totalidade complexa. Daí é possível a exposição das conexões entre estas categorias elementares, abstratas e as formas mais desenvolvidas, concretas.
Nos Prolegômenos Para Uma Ontologia do Ser Social, Georgy Lukacs cuida de explicar que Marx concebe de saída o mundo que nos é dado (seja a natureza ou a sociedade) como a síntese real de processos e não como “imediatidade” cujas determinações se constroem primeiro no pensamento. “O método de conhecimento é determinado pela constituição objetiva (ontológica, categorial) de seu objeto… O conhecimento científico e também filosófico deve partir da objetividade concreta do existente que a cada vez torna-se seu objeto e desembocar no esclarecimento de sua constituição ontológica.”
Lukacs reafirma a visão de Marx sobre o método da economia política apresentado no primeiro capítulo do Volume I dos Grundrisse e na Contribuição à Crítica da Economia Política. Marx diz que seria impraticável e errôneo alinhar as categorias econômicas na ordem em que foram historicamente determinantes. Sua ordem de sucessão está, ao revés, determinada pelas relações que existem entre elas na moderna sociedade burguesa e que é exatamente o inverso do que parece ser sua ordem natural. “Não se trata da posição que as relações econômicas assumem historicamente em sucessão nas distintas formas de sociedades. Muito menos de uma ordem de sucessão “na ideia”. Trata-se de sua articulação no interior da moderna sociedade burguesa.” (Grundrisse)
A análise marxista dos modos de produção tem como objetivo expli¬citar o conteúdo histórico e concreto das relações de propriedade e dominação. Ao enumerar os diferentes modos de produção, o objetivo de Marx não era o de fazer uma simples tipologia, senão demonstrar a diferença específica entre o capita¬lismo os modos de produção anteriores. A especificidade do modo de produção capitalista se manifesta por uma separação entre o político e o econômico de tal modo que a propriedade atinge uma “natureza” puramente econômica, diferente, portanto do conteúdo que assume nos demais modos de produção. Desta maneira não se revela como um traço universal, homogêneo, a partir da qual se possam explicar as relações de produção nos outros modos de pro¬dução. Marx observa:
"Em todas as formas em que o trabalhador imediato permanece possuidor dos meios de produção e dos meios de trabalho…, a relação de propriedade vai fatalmente manifestar-se simultaneamente como uma relação (política) entre senhor e servo; o produtor imediato não é, portanto livre: mas esta servidão pode atenuar-se, desde a servidão com obrigação de corveia até ao pagamento de um simples foro… Nestas condições, são necessárias razões extra econômicas, qualquer que seja a sua natureza, para os obrigar a efetuar trabalho por conta do proprie¬tário titular das terras… São, portanto, absolutamente necessárias rela¬ções pessoais de dependência, uma privação de liberdade pessoal… em suma, é necessária a servidão na plena acepção da palavra…".
O problema a ser analisado no regime do capital é o de desvendar a relação de propriedade, aí enten¬dida como o controle efetivo dos instrumentos de produção. Não se trata apenas da forma jurídica de que se reveste a propriedade de indivíduos livres e iguais, libertos dos nexos pessoais e políticos que o acorrentavam nos modos de produção pré-capitalistas. Este processo, no entanto, não termina pela simples dissociação (expropriação) dos produtores diretos de seus instrumentos de produção.
A acumulação primitiva instaura a dominação econômica, apenas formal, de uma classe sobre outra. Mas é a subordinação real que revela a verdadeira essência do “econômico” e de seus poderes. Isso vai ocorrer, com o surgimento da grande indústria, ou seja, pelas transformações do processo de trabalho que submete os pro¬dutores diretos à condição de simples extensão do capital. À relação formal de apropriação passa a corresponder uma relação real, o trabalhador isolado dá lugar ao trabalhador coletivo, de tal maneira que o capitalista e o trabalhador passam a se constituir em simples suportes de uma relação mais ampla de dominação. Isto pressupõe a compreensão dos processos de controle e de subordinação de classe implícitos na constituição e desenvolvimento do regime do capital. O “sujeito” da análise, o capital, constitui-se conjuntamente com as trans¬formações que levam ao modo especificamente capitalista de produção. Este sujeito não é o capitalista individual senão o próprio capital e o trabalho coletivo como sua extensão. Marx analisa de duas maneiras este processo: no Capítulo Inédito, mediante uma contraposição entre a forma não desen¬volvida do capital (dominação formal) e a forma específica ou plenamente desenvolvida (dominação real); e em O Capital, mediante uma análise da gênese desta última forma, a partir daquela.
Consideremos a primeira abordagem, seguindo o próprio Marx: "Justamente por oposição ao modo capitalista plenamente desen¬volvido, denominamos de subsunção formal do trabalho ao capital a subordinação ao capital de uma forma de trabalho desenvolvida antes que houvesse surgido a relação capitalista". Neste texto verificamos que a existência de uma relação de pro¬priedade definida apenas formalmente não permite, para Marx, estabe¬lecer o que é relação de produção especificamente capitalista, ideia esta que se explicita melhor abaixo:
"O fato de que o trabalho se torne mais intenso ou que se prolon¬gue a duração do processo de trabalho: que se torne mais contínuo sob o olhar atento do capitalista, mais ordenado, etc…, não altera em si e para si o caráter do processo real de trabalho. Surge nisto, pois, um grande contraste com o modo de produção especificamente capitalista. Como vimos, ele se desenvolve no curso da produção capitalista. Revoluciona não só as relações entre os diversos agentes de produção, senão simultaneamente a índole desse trabalho e a modalidade real desse pro¬cesso de trabalho em seu conjunto".
Apenas com o desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, com “criação” das formas do trabalho coletivo e na divisão do trabalho dentro da fábrica torna-se possível o emprego do maquinismo. A objetivação do processo de produção no sistema de máquinas torna possível o emprego consciente ou inconsciente das ciências naturais, Assim, "o modo de produção capitalista agora se estrutura como um modo de produção `sui generis', dá à produção uma forma diferente; de outro lado, esta modificação da forma material constitui a base para o desenvolvimento das relações capitalistas, que exigem, pois, um nível determinado de evolução das forças produtivas para encontrar sua forma adequada".
Na visão de Marx a dominação real do capital implica a dominação absoluta do capital sobre o trabalho, a qual só pode se dar mediante a socialização não só do processo de trabalho imediato, como também da escala em que o capitalista é proprietário e detentor dos meios de pro¬dução. A análise do processo pelo qual se constitui a dominação abso¬luta ou real é feita de forma multo incisiva em O Capital, em seus capí¬tulos XI, XII e XIII.
Referindo-se à manufatura, Marx observa que "enquanto a coope¬ração simples em geral não modifica o modo de trabalhar do indivíduo, a manufatura o revoluciona inteiramente e se apodera da força individual do trabalho em suas raízes". E mais adiante: "A divisão manufatureira do trabalho opõe-lhes (aos trabalha¬dores) as forças intelectuais do processo de produção, como proprie¬dade de outrem e como poder que os domina. Este processo de disso¬ciação começa com a cooperação simples em que o capitalista representa, diante do trabalhador isolado, a unidade e a vontade do trabalhador coletivo. Este processo desenvolve-se na manufatura, que mutila o traba¬lhador, reduzindo-o a uma fração de si mesmo, e completa-se na indústria moderna que faz da ciência uma força independente do trabalho, recru¬tando-a para servir ao capital".
Apesar das profundas alterações que a manufatura impõe ao pro¬cesso de trabalho, não é ainda através dela que o capital consegue coroar sua obra de dominação, pois: "Embora ajustasse as operações parciais aos diversos graus de matu¬ridade, força e desenvolvimento de seus órgãos vivos de trabalho, o que levava à exploração de mulheres e crianças, chocava-se esta tendência, geralmente, com os hábitos e a resistência do trabalhador adulto mascu¬lino (…). Uma vez que a habilidade manual (ainda) constituía o funda¬mento da manufatura e que o mecanismo coletivo que nela operava não possuía nenhuma estrutura material independente dos trabalhadores, lutava o capital constantemente contra a insubordinação do trabalhador. (…) Faltava `ordem' na manufatura, baseada no `dogma escolástico da divisão do trabalho' e `Awkright criou a ordem' ".
Somente com o desenvolvimento e a generalização da maquinaria "tem a indústria moderna o organismo de produção inteiramente objetivo que o trabalhador encontra pronto e acabado como condição material da produção. Na cooperação simples e mesmo na cooperação fundada na divisão do trabalho (manufatura) a supressão do trabalhador indivi¬dualizado pelo trabalhador coletivizado parece ainda ser algo mais ou menos contingente. A maquinaria, com exceções, só funciona por meio de trabalho diretamente coletivizado ou comum. O caráter coopera¬tivo do processo de trabalho torna-se uma necessidade técnica imposta pela natureza do próprio instrumental de trabalho".
Na faina de impor sua dominação, o capital executa uma tarefa de “socialização” do processo de tra¬balho e de coletivização da propriedade. Assim: "Um mínimo determinado e sempre crescente de capital nas mãos de todo o capitalista é a premissa, bem como o resultado constante do modo de produção especificamente capitalista. O capitalista deve ser proprietário ou detentor dos meios de produção a uma escala social: seu valor não tem, de ora em diante, nenhuma proporção com aquilo que pode produzir um indivíduo ou sua família. Este mínimo de capital é tão mais elevado em um ramo de produção quanto este seja explorado de uma maneira mais capitalista e quanto mais desenvolvida a produti¬vidade social do trabalho. À medida em que o capital vê aumentar seu valor e assume dimensões sociais, ele perde todas suas características individuais" .
O nascimento das ciências sociais e da economia tem a ver basicamente com a questão das condições de reprodução de uma sociedade fundada na divisão social do trabalho, na “separação” entre os indivíduos e na busca do enriquecimento privado. Os economistas clássicos, Adam Smith e Ricardo, para não falar de Marx trataram desta questão acima de todas as demais. O importante, porém, não foi a forma específica como cada um deles a tratou, mas o fato de que procuraram demonstrar o caráter problemático da reprodução desse sistema social e econômico.
O regime do capital é uma novidade histórica radical. Por um lado, engendra um processo econômico e formas de sociabilidade cujo desenvolvimento liberta a vida humana e suas necessidades das limitações impostas ao homem pela natureza. Por outro, constitui relações de produção, estruturas técnico-econômicas e formas de convivência que aparecem e agem sobre a cabeça dos protagonistas da vida social como forças naturais, fora do controle da ação humana.
Mercadoria, Dinheiro e Capital
No primeiro volume de O Capital, Marx empreendeu uma crítica radical da teoria do valor-trabalho formulada por Smith e Ricardo, sem deixar de reconhecer a importância da “descoberta” da natureza dos nexos mercantis por seus antecessores. Adam Smith estava prestes a formular o conceito de trabalho abstrato ao observar a divisão do trabalho entre produtores livres. Concluiu que o egoísmo privado move o intercâmbio generalizado de mercadorias, um depende inexoravelmente da labuta de outro.
Os regulacionistas franceses insistem na afirmação de que a moeda é uma instituição social que precedeu o mercado. Marx não pretende empreender uma narrativa histórica sobre origens e formas do dinheiro nas economias pré-capitalistas. Não obstante nessas sociedades o dinheiro cumprisse funções de unidade de conta e meio de pagamento, as relações de produção baseadas no trabalho compulsório, escravo ou servil, bloqueavam a mercantilização geral imposta pelo regime do capital.
Não há dúvida de que o conceito de trabalho abstrato de Marx nasce da intuição de Adam Smith ao observar o avanço da divisão do trabalho entre produtores independentes, cujo egoísmo, para o bem geral, é coordenado pelo processo impessoal da mão invisível. No “mundo abarrotado de mercadorias”, a igualação dos trabalhos produzida pela expansão dos mercados, ou seja, pela multiplicação de produtores independentes – proprietários dos meios de produção – se efetua pela transfiguração do estado “natural” dos “produtos” em sua qualidade social de mercadorias. A digressão de Marx busca demonstrar que o intercâmbio generalizado de mercadorias pressupõe a admissão pelos produtores individuais da “igualdade” de seus trabalhos concretos.
O intercâmbio generalizado é possível porque o trabalho de um produtor de mercadorias é entendido pelo outro como equivalente. No processo de intercâmbio o caráter útil de cada trabalho submerge na indiferença imposta pela expansão do valor e na autonomização do valor que se valoriza, como veremos a seguir. (“entendido” quer dizer imposto pelo movimento de totalização das relações sociais executado pelas forças impessoais do mercado). Mas o intercâmbio de mercadorias não pode ser realizado diretamente pela equivalência de seus tempos de trabalho. Eles não trocam os seus tempos de trabalho. Eles trocam os produtos de seu trabalho que se oferecem no espaço das trocas como mercadorias, encarnações do trabalho para outrem. A troca entre o trabalho do cidadão produtor A pelo trabalho do produtor B ocorre necessariamente através das mercadorias. A existência de trabalhos igualados pelo intercâmbio generalizado cria a possibilidade da troca, mas a troca efetiva só ocorre na medida em que as mercadorias se confrontam no mercado como valores de uso distintos sob o comando da forma valor.
Marx vai mostrar que, já na forma simples do valor a mercadoria A exprime o seu valor na mercadoria B. São as mercadorias que se enfrentam enquanto produtos de trabalhos úteis equivalentes, mas na economia mercantil, em que a sociedade se move através do metabolismo da troca, esse enfrentamento só pode ser realizar mediante a seleção de uma mercadoria particular que exprime o valor de troca de todas as demais. Essa mercadoria particular vai ser “escolhida” pela reiteração da troca. É pouco mencionado que, já nos capítulos em que cuida da circulação simples de mercadorias e dinheiro, Marx apresenta o Estado Moderno como companheiro inseparável da mercantilização geral. Nos capítulos sobre a gênese do dinheiro em sua formatação mercantil, Marx apresenta o Estado como fiador da moeda e garantidor da confiança dos produtores no resultado de sua labuta. Na apresentação das funções do dinheiro essa questão será tratada mais extensamente. O sistema jurídico liberal – particularmente as codificações do direito civil e comercial – foi concebido para permitir a fluidez da circulação de mercadorias e dinheiro e, ao mesmo tempo, conter os impulsos individuais dos que pretendam arranhar as ilusões de equivalência e igualdade. Em sua essência a soberania monetária está apoiada na arquitetura jurídica que sustenta os indivíduos livres em sua condição de produtores de mercadorias, apenas submetidos às normas dos contratos garantidos pelo Estado.
A unidade contraditória entre valor de uso e valor, presente na mercadoria, se exterioriza na forma de equivalente geral. Em uma sociedade em que a troca é generalizada, em que todos os produtos do trabalho são voltados para a troca, estamos obrigados a imaginar teoricamente a existência de uma mercadoria capaz de exprimir o valor de todas as demais. Cuida-se aqui de uma mercadoria cujo valor de uso encarna o trabalho abstrato errogado pelo conjunto de produtores. Essa mercadoria é, ao mesmo tempo, a afirmação do trabalho abstrato como substância do valor e a negação necessária da possibilidade da troca direta de mercadorias (barter) no capitalismo. [Devo ao professor José Carlos Braga uma observação seminal: na construção de Marx, o valor é o “inconsciente” da sociedade mercantil-capitalista].
A economia de troca generalizada é necessariamente uma economia monetária, ou seja, uma economia que impõe a manifestação das relações entre os trabalhos privados mediante a “exteriorização” de um equivalente geral. O aprofundamento e a difusão das relações de troca estimulam e são estimulados pela divisão do trabalho, a especialização das atividades e os ganhos de produtividade que estabelecem o tempo de trabalho socialmente necessário.
Isto quer dizer que os produtores finalmente produzem diretamente para a troca com o objetivo de transformar a sua mercadoria particular em dinheiro, na forma do valor e na expressão geral da riqueza. Esse é o sentido da sociedade de intercâmbio generalizado. Lucca Fantacci em seu livro, La Moneta – Storia di uma Instituizione Mancata, observa que a economia de troca direta de produtos (barter) pode envolver e, em geral, envolve a presença do dinheiro como unidade de conta e como meio de circulação. Mas, no escambo o dinheiro desaparece da circulação e, portanto, não cumpre sua função primordial na economia monetária, a de reserva de valor, ou seja, de forma geral do valor e expressão universal da riqueza.
Ao produzirem diretamente para a troca, os produtores são obrigados a chegar ao ponto final do processo chegar ao objetivo final, o dinheiro. Nesse sentido, o circuito M-D-M (Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria) é auto contraditório, na medida em que, nesse circuito, o objetivo da troca é a recomposição da cesta de valores de uso dos produtores. A contradição abrigada no circuito M-D-M revela que só na economia capitalista, cujo objetivo é a acumulação de riqueza abstrata e não a recomposição da cesta de valores de uso, a atividade dos produtores se destina diretamente para o mercado. O dinheiro “nasce” do mundo das mercadorias – porém uma mercadoria especial, uma vez “escolhida” para exprimir o valor das demais. A passagem do equivalente geral para o dinheiro-mercadoria é um procedimento lógico-genético que exprime de maneira teórica a “natureza social” e o “desenvolvimento” das relações mercantis observadas no regime do capital já constituído. As mercadorias não podem circular sem exprimir o seu valor na mercadoria universal e perdem a condição de valores se “fracassarem” no momento do salto mortal, ou seja, na conversão da mercadoria em dinheiro. Elas foram produzidas com o objetivo de realizar seu preço em dinheiro, mas é permanente o risco da recusa do mercado, entendido como um processo incessante de totalização das relações sociais que se realiza às costas dos produtores, independentemente de suas preferências ou escolhas. Neste momento, manifesta-se a natureza da sociabilidade imposta pelo mercado. O mercado comanda a “liberdade” dos produtores individuais e opera como um movimento de totalização das relações entre os trabalhos privados dos produtores, constantemente renovado e sujeito à incerteza e ao colapso. Não há, portanto, na análise de Marx a possibilidade de se estabelecer à priori as condições de equilíbrio nas relações de intercâmbio entre os valores definidos pelos produtores individuais. A realização dos valores pretendidos pelos possuidores das mercadorias só pode ser verificada a posteriori. O valor “ideal” das mercadorias deve ser chancelado pelo veredito impessoal do mercado, ou seja, pela transformação das mercadorias em dinheiro.
Na Miséria da Filosofia, Marx critica a proposta de John Gray de medir o valor das mercadorias diretamente pelo tempo de trabalho gasto em sua produção mediante a emissão do dinheiro-trabalho. Esse “dinheiro” emitido por uma autoridade central recompensaria cada produtor individual conforme sua contribuição à formação da totalidade do valor gerado pela sociedade.
Marx investe contra o dinheiro-trabalho com uma argumentação fulminante: “(Gray) imaginou que as mercadorias poderiam se relacionar entre si, diretamente, como produtos do trabalho social… Elas, porem, só podem se relacionar entre sí por aquilo que são. E são, imediatamente, produtos de trabalhos privados, independentes e isolados, que, através de sua alienação no processo da troca privada, devem ser reconhecidos pela alienação universal dos trabalhos individuais… Mas ao colocar o tempo de trabalho contido nas mercadorias como imediatamente social, Gray o coloca como tempo de trabalho coletivo ou como tempo de trabalho de indivíduos diretamente associados… Neste caso, realmente uma mercadoria específica como o ouro e a prata não poderia apresentar-se face às outras como encarnação do trabalho geral; o valor de troca não se converteria em preço; mas tambem o valor de uso não se transformaria em valor de troca e o produto não se transformaria em mercadoria, de forma que a própria base da produção burguesa seria suprimida”.
As determinações funcionais do dinheiro
Os “bens de consumo” assumiram funções monetárias em economias primitivas em que a troca estava restrita aos interstícios da sociedade governada pelas regras da tradição religiosa ou militar. O gado e o sal, por exemplo, desempenharam ao longo da história a função de meio de troca e de pagamento. Nesse ambiente de desenvolvimento mercantil limitado eram exatamente os bens de maior utilidade que protagonizavam as funções monetárias. Lucca Fantacci em seu livro observa que “na antiguidade o dinheiro era um bem concreto como a pecora, pecúnia … a riqueza poderia ser contada e recontada em termos de dinheiro, mas não contabilizada de forma abstrata: existiam dívidas concretas, mas não passivos abstratos registrados no balanço.”
Os metais preciosos, como o ouro e a prata, ao contrário, tinham escassa utilidade na satisfação das necessidades mais imediatas. Mas passaram a cumprir as funções monetárias no mesmo passo em que se dava a expansão dos mercados. Esses metais não são “naturalmente” moedas, mas suas qualidades naturais os tornaram elegíveis para desempenhar as funções monetárias exigidas nas sociedades em que o mercado passa a dominar a criação e distribuição da riqueza e da renda. É possível afirmar que o progresso da produção para o mercado promove a absorção das funções monetárias nos metais preciosos, quase inúteis do ponto de vista da satisfação das necessidades.
Já na Antiguidade, os metais circulavam como moedas quando submetidos à sanção do Soberano. A cunhagem do ouro ou da prata, um procedimento jurídico-político, determinava, simultaneamente, a conjunção e a distinção entre moeda e matéria. Durante o processo histórico de transformação dos metais preciosos em moeda (especialmente o ouro e a prata), a cada fração de peso desses metais era atribuído um valor, grafado no metal cunhado. Diz Lucca Fantacci que o ato político-jurídico da cunhagem “transformava a unidade de medida ideal no meio de troca real, ao mesmo tempo em que dissociava o metal enquanto moeda do metal enquanto mercadoria”.
O processo conjunto de expansão do comércio e de formação do Estado Moderno – lançou um desafio à prerrogativa do Príncipe ou do Soberano. A partir da Revolução Comercial e do Renascimento, episódios que acompanharam o declínio do Feudalismo, a coexistência entre a vigorosa universalização mercantil e o processo de formação dos Estados Nacionais suscitou a criação de duas esferas monetárias: enquanto o ouro e a prata eram moedas-mercadoria de valor universal, como queria o mercantilista Galiani, aptas a denominar contratos e liquidar obrigações no comércio à longa distância, o poder de cunhagem dos príncipes fixava o valor da moeda imaginária no âmbito do comércio local ou nacional.
A concomitância entre a expansão do mercado mundial e a formação dos Estados Nacionais acentuou as contradições entre o poder do príncipe – o exercício da soberania monetária em seu território – e as exigências mercantis e capitalistas de uma ordem monetária global. Entre os séculos XV e XIX, o embate prático e ideológico – desde os mercantilistas até os fundadores da moderna economia política – travou-se em torno do conflito entre a universalização da moeda a partir de seu caráter mercantil-capitalista e as limitações impostas pelo exercício da soberania. (A crise financeira de 2008 reintroduziu de forma dramática essa contradição que, a meu ver, não será resolvida tão cedo a julgar pelos debates entre as hesitantes lideranças mundiais).
No final do século XIX, o avanço e a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa Continental, foram acompanhados pela constituição de um sistema financeiro global, sob a hegemonia da libra. Essas transformações da economia mercantil-capitalista “resolveram”, provisoriamente, – no imaginário social e na prática dos negócios – a “contradição” a favor da concepção mercantil e metálica da moeda, com a adoção do padrão-ouro.
Ao promover a ampliação do espaço das trocas, a mercantilização geral, o padrão-ouro impôs o predomínio absoluto dos critérios de mensuração da riqueza sob a forma abstrata. Esse movimento se desenvolve como já foi dito, nas práticas da vida material e no imaginário social dos protagonistas do processo econômico. Mas ironicamente, a afirmação da moeda universal promove a crescente abstração de suas determinações materiais. A forma material se submete às determinações funcionais, ou seja, as moedas eram socialmente aceitas pelo valor que diziam portar. A quantidade de ouro que elas de fato carregavam foi se tornando indiferente, produzindo uma dissociação de seu papel monetário do conteúdo material que a constituía.
A função primordial da moeda na sociedade mercantil desenvolvida é a de medida de valor que se realiza na prática sob a forma de unidade de conta, “nome aritmético” da medida de valor. “Como o dinheiro enquanto padrão de preços é algo puramente convencional e algo que precisa ser acatado por todos, é preciso a intervenção da lei para regulamentá-lo… Como se vê, os preços e as quantidades de ouro em que se convertem idealmente os valores se expressam agora em nomes monetários, ou seja em nomes aritméticos que a lei determina”. (O Capital, vol I).
É desta função primordial que decorrem as demais, meio de circulação, meio de pagamento e reserva de valor. A função de meio de circulação está diretamente associada à unidade de conta. Essas duas funções executam de forma reiterada os ritos do reconhecimento social que acompanham o processo de socialização dos indivíduos privados, livres e separados: primeiro, denominar cada mercadoria particular no dinheiro ideal, declarar sua pretensão de se transformar em dinheiro real, depois, submeter-se à aceitação dessa declaração pelo tribunal do mercado, mediante a sua transformação efetiva na forma geral do valor. Marx diz que o dinheiro é valor substantivado e todas as mercadorias têm que referir-se a ele, mas, como já foi dito, trata-se de uma aposta. Não há aí um sistema de preços “reais” relativos que garantam o equilíbrio do sistema. É preciso deixar isso claro para não confundir Marx ou Keynes com Walras. Morishima fez um péssimo trabalho, dizendo que Marx tem uma teoria dual do valor. Ainda hoje, os Walrasianos sustentam a lenda da separação entre o real e o monetário. O dinheiro em Walras é apenas um numerário, um véu. Em Marx mercadorias e dinheiro são inseparáveis em seu movimento, ao mesmo tempo, unitário e antitético. Se há troca generalizada de mercadorias, o movimento dos preços relativos tem de ser descobertos através dos preços monetários.
O desenvolvimento material da economia em que a produção é diretamente para a troca torna inescapável o batismo monetário das mercadorias particulares. Elas não podem sair das mãos dos possuidores sob a forma natural para enfrentar a aventura do mercado. Os preços correspondem a uma determinação formal das mercadorias no sentido de que elas não podem ingressar no processo de intercâmbio generalizado antes de serem apresentadas ao dinheiro enquanto medida de valor, expressão da sociabilidade entre os produtores privados de mercadorias. As mercadorias já entram, portanto, na circulação com preços monetários, ou seja, não mais existem em sua determinação natural senão em sua determinação social, enquanto valores de troca. O dinheiro assume, então, sua segunda função, enquanto instrumento de realização do preço das mercadorias.
A função medida de valor ao exigir a numeração das mercadorias, antes da entrada no mercado, enseja a dissociação da troca em duas operações distintas, a venda e a compra. Os protagonistas do processo de intercâmbio generalizado “descobrem” a possibilidade de acumular o representante da riqueza geral, a mercadoria universal sem precisar gasta-la imediatamente na aquisição de outra mercadoria particular.
Assim, a generalização das relações mercantis, o predomínio absoluto do valor suscita a possibilidade de interrupção do processo de circulação de mercadorias – vender sem comprar -, ou seja, a busca da acumulação de riqueza sob a forma abstrata. Marx invoca a autonomização do dinheiro: em sua condição de mercadoria geral, o dinheiro dispõe do poder de ser trocada por qualquer outra. Isso, de outra parte, abre espaço para compra sem a venda, operação que explicita a função de meio de pagamento, fundamento lógico e histórico do sistema de crédito, cujo desenvolvimento ao longo dos três últimos séculos acelerou a acumulação de capital e o progresso tecnológico.
A função reserva de valor corresponde à busca de certeza nas decisões intertemporais que acompanham a preservação e a acumulação da riqueza, inexoravelmente avaliada sob a forma monetária e abstrata. O truque do monetarismo de Friedman consiste basicamente em “desmonetizar” a economia capitalista e em atribuir a outros bens ou ativos a função de reserva de valor. Friedman e seus discípulos insistem na afirmação “o dinheiro importa”. Mas a sua presença do dinheiro só tem um sentido quantitativo. Friedman, ao proceder à desconstituição teórica do dinheiro como forma geral da riqueza e objetivo da produção capitalista, constrói uma economia de escambo com dinheiro falso. A transformação de outros bens ou ativos particulares em poder de compra geral envolve custo e tempo (sua venda pode levar meses, e as condições de liquidez do mercado podem impor a venda com perda de capital). É nesse sentido que a moeda é o ativo de maior liquidez da economia.
Na função de meio de circulação, o dinheiro apenas realiza o preço, a denominação das mercadorias em dinheiro. As mercadorias não podem circular sem que recebam essa “capa” monetária, não podem ser trocadas diretamente. Uma vez que recebem essa capa monetária passam a ser, “dinheiros particulares” que buscam sua “confirmação no mercado” no momento crucial da realização de seu preço. A mercadoria só confirma sua “natureza mercantil” quando o preço “declarado” pelo possuidor de riqueza é sancionado pela realização de seu valor de troca em dinheiro.
O dinheiro na função de meio de circulação não precisa aparecer em sua forma material originária, mas pode ser substituído por uma representação de si mesmo. A circulação mercantil à medida que se desenvolve faz com que o dinheiro permaneça na circulação, enquanto as mercadorias entram e saem. O dinheiro se autonomiza em primeiro lugar porque é a mercadoria geral e sua presença permite que a circulação se inicie apenas de maneira ideal, sem que esteja efetivamente presente. Pode haver uma operação de compra e venda sem que haja a participação direta, imediata do dinheiro. O dinheiro assume, enquanto mercadoria universal, a função de meio de pagamento. A função de meio de pagamento pressupõe a realização de uma compra em troca de uma promessa de liquidação da operação em dinheiro. Faz – se uma transferência de propriedade da mercadoria com uma promessa de pagamento posterior, o que dá origem às relações de débito-crédito.
Na terceira determinação, o dinheiro, como meio de pagamento, vai liquidar os débitos e créditos assumidos reciprocamente pelos protagonistas da troca. Estamos aquí diante de uma “torção” fundamental: a autonomização do dinheiro permite a circulação de mercadorias sem ele estar presente, mas, ao mesmo tempo, permite que ele exerça sua função antes que as mercadorias estejam presentes.
Na passagem teórica crucial do processo de mercantilização, a força de trabalho se transforma em mercadoria e o dinheiro em capital. Nesse momento teórico, o dinheiro passa de resultado a pressuposto da circulação. Não se trata de uma evolução histórica, mas de uma demonstração lógica: a produção e circulação dos produtos do trabalho destinados diretamente para a troca são fenômenos do capitalismo constituído, ou seja, quando a finalidade da produção é a acumulação de riqueza abstrata pelos detentores dos meios de produção.
A crítica da Economia Política se recusa a conceituar o capitalismo como um regime de produção cujo objetivo é, apenas, a produção de mercadorias mediante a exploração e submissão da capacidade de trabalho dos produtores diretos. Em sua metamorfose, o capital está obrigado a passar necessariamente pelo calvário da produção material e da exploração da força de trabalho com uma única finalidade: a acumulação de riqueza abstrata, encarnada no dinheiro.
O dinheiro enquanto forma universal da riqueza capitalista deixa de ser um intermediário das trocas já existentes e passa a ser uma antecipação em relação à produção futura, ou seja, capital-dinheiro. “Mas se pretendemos que o dinheiro só troca riquezas materiais já existentes, então isto é falso, já que com o dinheiro se troca e se compra também trabalho, ou seja, a própria atividade produtiva, a riqueza potencial”. (Grundisse)
No primeiro volume Marx cuida de desencavar os segredos do fetiche da mercadoria a e do dinheiro, trazendo à luz o caráter inexoravelmente monetário da economia capitalista. Por detrás da dança dos objetos que se movimentam no espaço da troca generalizada está o metabolismo social que submete a atividade dos produtores independentes aos diktats da realização do valor, às intempéries do processo de “totalização” das relações sociais operada quotidianamente no mercado, fora do controle dos indivíduos.
A possibilidade de o dinheiro funcionar positivamente como meio de pagamento significa também que o dinheiro pode funcionar antecipadamente para comprar trabalho vivo, riqueza a ser criada. O dinheiro não aparece apenas no momento de realização do preço das mercadorias na circulação, mas torna-se o “motor” do processo de circulação. O dinheiro “nasce” da circulação e passa a ser seu pressuposto, sua condição de existência. Quando passa a ser uma aposta sobre a riqueza futura, o dinheiro é pressuposto da circulação.
A circulação passa a ser “posta” pelo dinheiro, e aí o dinheiro exerce não apenas outra função, mas muda também sua natureza. O dinheiro passa a funcionar como capital, valor que se valoriza. Enquanto tal, a realização do valor na circulação do capital impõe o gasto na contratação de força de trabalho aos proprietários dos meios de produção, ao mesmo tempo em que na reiteração do ciclo D-M-D’ os capitalistas estão sujeitos, como veremos adiante, à desvalorização do capital já existente. Aqui Marx dá o primeiro passo para discutir o fenômeno da tendência à queda da taxa de lucro.
O impulso de acumular riqueza sob a forma monetária na circulação mercantil simples, em que os produtores almejam diversificar sua cesta de valores de uso, só tem a função negativa. Quando o dinheiro passa a ser pressuposto da circulação e da produção o fluxo só pode prosseguir na medida em que os detentores dos meios de produção continuem dispostos a renovar o circuito D-M-D’, gastar dinheiro na aquisição de força de trabalho e meios de produção para obter mais dinheiro. O entesouramento na circulação simples tem uma função negativa na medida em que rompe o circuito M-D-M. Mas quando a força de trabalho se transforma em mercadoria, o desejo de acumular riqueza monetária, torna-se uma força positiva, fundamental para mover o processo de circulação.
Marx diz: “A terceira determinação do dinheiro – dinheiro como pressuposto da circulação e da produção – supõe as duas determinações anteriores e constituí a sua unidade… O dinheiro tem, pois, uma existência autônoma fora da circulação. Como mercadoria particular pode ser transformada de sua forma dinheiro em objetos de luxo, joias de ouro e prata. Pode também ser acumulado como dinheiro e constituí um tesouro. Enquanto o dinheiro em sua existência autônoma surge na circulação, se apresenta nessa existência mesma: como resultado da circulação, chega a coincidir consigo mesmo através da circulação. Nesta determinação, está contido já de forma latente, seu caráter determinante de capital. O dinheiro é negado como simples meio de troca. Sem embargo, historicamente pode ser posto como medida antes da troca generalizada, antes de ser posto como medida universal.
No caso, existiria apenas como mercadoria privilegiada, pode assim também, apresentar-se historicamente em sua terceira determinação antes de ser posto nas precedentes. Mas como dinheiro, o ouro e prata podem ser acumulados somente se já existiam em uma das duas determinações, na terceira determinação só pode apresentar-se em nível desenvolvido se desdobrou das duas outras precedentes, senão sua acumulação é só acumulação de ouro e prata e não de dinheiro. Também nesta terceira determinação está o dinheiro em relação com a circulação, já que como representante material e universal da riqueza, surge da circulação, e como tal é igualmente produto da circulação, a qual é simultaneamente troca elevada à última potência e uma forma particular da troca. O dinheiro se contrapõe à circulação como algo autônomo, mas essa autonomia sua não é mais que o próprio processo de circulação. De igual modo, surge da circulação como volta a entra nela, fora de toda a relação com a circulação não seria dinheiro, mas um objeto natural, ouro ou prata. Nessa determinação o dinheiro é tanto suposto como resultado, sua própria autonomia não significa a caducidade de sua relação com a circulação, senão relação negativa com ela; isso está presente em tal autonomia como resultado do processo D-M-D’. No dinheiro como capital está implícito:1º) que é tanto suposto como resultado da circulação; 2º) que sua autonomia é tão só relação negativa, mas sempre em relação com a circulação; 3º) que ele mesmo é posto como instrumento da produção, enquanto que a circulação não se apresenta mais em sua primeira simplicidade, como troca real, material, e assim o dinheiro mesmo termina por ser determinado como um momento particular desse processo de produção. Na produção, não se trata só de uma simples determinação dos preços, vale dizer de uma tradução dos valores de troca das mercadorias em uma unidade coletiva.” (Grundrisse)
Na economia monetária desenvolvida pelo regime do capital, a reprodução das três determinações é problemática, não raro, contraditória. A “estabilidade” da reprodução conjunta das três funções, como se verá adiante, não pode ser garantida a priori pela gestão estatal e muito menos pelas “expectativas” dos protagonistas do intercâmbio generalizado de mercadorias.
Marx discute o problema da reprodução conjunta das três funções do dinheiro – unidade de conta, meio de circulação e reserva de valor. Com esse procedimento ele busca demonstrar o caráter problemático dessa reprodução. Nas economias mercantis capitalistas, o dinheiro, como forma geral da riqueza é, simultaneamente, um bem público – uma instituição social, diriam os regulacionistas – e objeto da cobiça privada.
Enquanto “bem público”, referência para os atos de produção e intercâmbio de mercadorias, bem como para a avaliação da riqueza, o dinheiro deve estar sujeito a normas de emissão, circulação e destruição que garantam a reafirmação de sua universalidade como padrão de preços, meio de circulação e reserva de valor. Para reafirmar continuamente a sua universalidade e a unidade das três funções o dinheiro não pode ser produzido privadamente, nem qualquer decisão privada pode substituí-lo por outro ativo. Ou seja, numa economia mercantil capitalista nenhum agente privado deveria ter a faculdade de comprar mercadorias, pagar suas dívidas ou avaliar seu patrimônio com moeda de sua própria emissão. Isto significa que as expectativas de receita, os cálculos de custos e preços, os direitos aos rendimentos do trabalho e dos ativos instrumentais, o valor das dívidas e a avaliação do estoque de riqueza real e financeira são “declarações” ideais de quanto pretendem valer, em termos do “equivalente geral”. Mas estas declarações só podem ser reconhecidas “socialmente” quando acontece o “salto mortal” das mercadorias e dos ativos privados, a sua metamorfose na forma geral da riqueza.
Numa economia com estas características, tanto a produção de mercadorias quanto a posse de ativos é uma aposta, em condições de incerteza, na capacidade destas formas particulares de riqueza de, no momento da conversão, preservarem seus valores em dinheiro. Esta aposta supõe, por outro lado, que serão respeitadas as regras que garantem a “credibilidade” do padrão monetário. Isso significa, fundamentalmente, o estabelecimento de limites ao refinanciamento das posições que sustentam a posse de mercadorias ou ativos de riqueza “desvalorizados”.
Nas economias de hoje, a moeda está fundada exclusivamente na confiança. A confiança é um fenômeno coletivo, social. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceita-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção, dos pagamentos depende do grau de certeza na preservação da forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente. (Cf: Dinheiro e Transfigurações da Riqueza, Belluzzo, L.G.)
Em seu livro La Monnaie Souveraine, os economistas Michel Aglietta e André Orléan, definem a existência de três lógicas articuladas que sustentam a reprodução da ordem monetária enquanto dimensão essencial da ordem social: a confiança hierárquica, a confiança metódica e a confiança ética. “A confiança hierárquica se exprime sob a forma de uma instituição que anuncia as normas de utilização da moeda e que é responsável pela emissão do meio de pagamento final… A confiança metódica opera no âmbito da segurança das relações inter-individuais, garante a reprodução quotidiana e rotineira dos atos que constituem a ordem monetária, sobretudo os pagamentos das dívidas nascidas do seu funcionamento… A confiança ética diz respeito à caráter universal dos direitos da pessoa humana.”
Em última instância, a reprodução da sociedade fundada no enriquecimento privado depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores independentes. A ordem monetária é indissociável da soberania do Estado, e sua sobrevivência supõe que os proprietários privados acatem a moeda com uma convenção necessária para a reiteração do processo de circulação das mercadorias, de liquidação das dívidas e avaliação da riqueza.
Dinheiro e Capital
Quando uma soma de dinheiro passa a funcionar como capital, o dinheiro está posto como instrumento de produção. Deixa de ser simplesmente um elemento para realizar os preços, para impor os valores de troca em uma “unidade coletiva”, criando o caráter determinado dos preços. O pagamento dos salários monetários determina os custos básicos da produção em termos monetários. A relação do assalariamento para Marx, além da subordinação aos ditames do capital, impõe o caráter determinado dos preços. Não é apenas um problema da forma – preço, senão que o conteúdo da produção é um conteúdo diretamente monetário que deriva da relação salarial.
O pagamento dos salários impõe necessariamente o cálculo dos custos e do valor esperado da produção (aí incluído o cálculo da mais-valia, o trabalho não pago) sob uma forma monetária. Marx vai demonstrar que há uma inversão no processo de determinação de valor: a determinação do valor e dos preços passa agora necessariamente não só pelos custos incorridos no presente, mas pelo cálculo monetário dos valores que o capitalista espera obter do resultado de sua produção. Marx, mais uma vez, está pressupondo as formas desenvolvidas para analisar as elementares. As formas elementares interessam não em si mesmas, senão como passos para analisar as mais desenvolvidas, como elos da cadeia de construção lógica. A controvérsia entre marxistas e neoricardianos sobre a transformação de valores em preços ganhou importância depois da publicação da obra de Piero Sraffa, A produção de Mercadorias por Meios de Mercadorias (ver Capítulos II e III deste livro). Mas uma leitura atenta revela que Marx, ao cuidar da concorrência no volume III – agora apresentada sob sua forma “desenvolvida”, trata os preços como antecipações. Não são preços de equilíbrio e de reprodução simples ou de trajetórias de estática comparativa, mas preços de reprodução ampliada do sistema. Esses valores monetários são calculados a partir dos custos salariais e ganhos monetários a serem obtidos pela extração de mais-valia no processo produtivo, sob o acicate da concorrência.
Marx diz que “O dinheiro para atuar produtivamente, deve ser em sua terceira determinação, não só um suposto, mas também um resultado da circulação… Como seu suposto, é também um momento da mesma, algo que é posto por ela. Entre os romanos, por exemplo, que estavam roubando todo o mundo, não era este o caso. Na determinação simples do dinheiro mesmo, está implícito que pode existir como momento desenvolvido da produção somente ali onde existe trabalho assalariado. Sendo assim, em lugar de dissolver as relações capitalistas, o dinheiro torna-se uma condição do desenvolvimento das forças produtivas. Só quando o dinheiro assume essa condição, o trabalho deve produzir imediatamente valor de troca”. Grundrisse
A sociedade mercantil simples é uma abstração destinada a demonstrar que a “aparência” – ou o modo de se apresentar da circulação – precisa confirmar a ilusão de igualdade exigida pela justiça dos mercados. Mas, o trabalho dos produtores-proprietários produz diretamente valor de troca em contradição com a finalidade da circulação M-D-M. No entanto, Marx analisa a circulação M-D-M apenas como um “momento” teórico da circulação mercantil generalizada, ou seja, capitalista. No regime do capital plenamente constituído o circuito M-D-M se apresenta como uma forma subordinada da circulação do capital. Aí o os salários pagos (os rendimentos dos trabalhadores) retornam aos capitalistas. O dinheiro, antes encarnação do capital variável retorna à forma dinheiro da circulação simples, onde os que vendem sua força de trabalho adquirem as mercadorias produzidas por eles mesmos, mas para usufruto dos que controlam os meios de produção.
Somente quando o capital-dinheiro coloca a circulação sob seu domínio, o trabalho está produzindo diretamente para a troca. “O trabalho deve produzir imediatamente o valor da troca, isto é dinheiro, por isso tem que ser trabalho assalariado. A sede de enriquecimento como impulso generalizado pelo qual todos querem produzir dinheiro, só o cria, na verdade, a riqueza universal”. (Grundrisse)
Marx concebeu a lei do valor, não apenas como uma teoria sobre as condições de reprodução do processo de intercâmbio generalizado de mercadorias em que as ilusões da igualdade operam como força material na imaginação dos produtores. Mas a reiterada igualação dos trabalhos é permanentemente perturbada pela lei central de movimento desse modo de produção, a lei do valor enquanto norma do processo de valorização do capital. Esse é o ponto crucial da crítica de Marx a Adam Smith e, particularmente a Ricardo. Os dois grandes economistas clássicos, ao formularem a teoria do valor trabalho não conseguiram escapar das ilusões necessárias que administram os olhares e as mentes dos produtores privados. Ao conceber o trabalho diretamente como medida do valor fracassam na tentativa de desvendar a natureza do dinheiro e, portanto, de descobrir as condições em que os trabalhos privados são submetidos, primeiro, à autonomização do dinheiro e, depois, à disciplina da transfiguração do dinheiro no valor que se valoriza. O depois é a forma desenvolvida do primeiro. O pressuposto, a igualação dos trabalhos privados realiza seu conceito no posto, a produção de dinheiro pelo trabalho assalariado comandado pelo Capital.
A estrutura do capital em geral se move mediante a concorrência entre os capitais individuais, sempre no propósito, mediante o progresso técnico, de violar constante da lei que os obriga a produzir de acordo com o tempo de trabalho socialmente necessário. A lei do valor é, portanto, como já foi dito acima, a lei da violação permanente das condições existentes da equivalência. Ao mesmo tempo, a lei só pode funcionar se os protagonistas da troca (inclusive os possuidores da força de trabalho) se submetem à “ilusão necessária” que os convence das condições de “igualdade” no processo de intercâmbio generalizado.
No seu processo de valorização o capital é obrigado a submeter simultaneamente massas crescentes de trabalho e, no processo de concorrência, superar seus sócios-competidores e desvalorizar continuadamente o valor da força de trabalho, tornar o trabalho redundante. Alguns marxólogos, para não falar dos antimarxistas, têm, na minha modesta opinião, dificuldade em compreender o método de exposição utilizado em O Capital. A construção das formas se desdobra, como veremos, do universal abstrato – a mercadoria – para a vida concreta em que predominam as relações de débito e crédito, a moeda bancária, o capital fictício a concorrência em suas determinações definitivas.
Isto significa que só no regime do capital plenamente constituído, aí incluídas as forças produtivas especificamente capitalistas, se concretizam “o mundo abarrotado de mercadorias” e as condições sociais e materiais de acumulação de riqueza abstrata. Nos modos de produção anteriores, a sede de riqueza era apenas uma idiossincrasia de um produtor isolado, que subtrai da troca um volume qualquer de dinheiro enquanto meio de circulação. Agora a sede de riqueza se impõe a todos os produtores de mercadorias, ou seja, de dinheiro particular que aspira ao salto mortal à forma universal. “Só assim a sede de riqueza pode se converter na fonte de riqueza universal, sempre e renovadamente criada”. Na circulação mercantil simples, o dinheiro e as mercadorias vinham de vários pontos, não havia uma determinação. Agora há uma determinação: as mercadorias só circulam com objetivo de fechar o circuito com mais dinheiro. Só quando as mercadorias se tornam o meio para valorizar o dinheiro é possível determinar claramente quais os valores monetários, qual o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir. Só no regime do capital plenamente constituído a concorrência se executa mediante a revolução permanente das bases técnico-econômicas, ou seja, das forças produtivas especificamente capitalistas, no “propósito” incontornável de elevar a produtividade social do trabalho mediante a submissão real dos produtores diretos.
A sociedade de produtores independentes de Marx analisa o metabolismo econômico do regime do capital na “ausência” do capital. No capitalismo constituído o dinheiro funciona como capital, e isso supõem a regulação efetiva do tempo de trabalho socialmente necessário que só pode ser imposto aos trabalhadores sob o domínio do sistema de máquinas. Uma vez admitida a subordinação real, o capital “regula “os preços e determina “ex-post” a formação da taxa de lucro média. No capitalismo constituído a fixação dos preços monetários é realizada por aqueles que controlam diretamente o processo produtivo. Os capitalistas, nas palavras de Marx, “não sabem, mas fazem”.
“Nesse momento, o trabalhador assalariado tem por finalidade imediatamente o dinheiro, a riqueza geral é posta como seu objetivo e sua finalidade. O dinheiro como finalidade se converte aqui em meio da laboriosidade universal, a riqueza universal é produzida para que alguém se aproprie de seu representante, de modo que se abrem as fontes reais de riqueza. Por ser a finalidade do trabalho, não um produto particular que está em relação com as necessidades particulares de um indivíduo, que é o caso da sociedade mercantil, – senão o dinheiro, ou seja, a riqueza em sua forma universal; a laboriosidade do indivíduo passa a não ter nenhum limite. É agora indiferente a qualquer particularidade e assume qualquer forma que sirva para esse fim. É rica e inventiva na criação de novos objetos destinados à necessidade social. Resulta então claro que sobre a base do trabalho assalariado a ação do dinheiro não é dissolvente, senão que produtiva, enquanto que a entidade comunitária antiga já em si mesma está em contradição com o trabalho assalariado como fundamentalmente geral. Uma industriosidade universal é possível somente ali onde cada trabalho produz a riqueza universal. Não uma forma determinada dela, por conseguinte, ali onde a retribuição do indivíduo é o dinheiro. (Grundrisse)
A relação de assalariamento não significa apenas que o capital subordina e impõe ao trabalho certas normas de produção. Não se trata apenas da relação entre o custo unitário de produção calculado em termos monetários, mas da interdependência que se estabelece entre os trabalhadores que passam a trabalhar para ganhar dinheiro e, portanto dependem do trabalho dos demais para manter a própria subsistência. O trabalhador coletivo passa a ter a mesma relação universal com a forma dinheiro. Daí o erro ricardiano e sraffiano que concebe o salário em termos físicos, como se os trabalhadores pudessem fixar o salário real. Marx trabalha com o salário nominal, cujo poder de compra só pode ser determinado ex-post. O poder de compra de salários não está dado de antemão por um determinado conjunto de mercadorias, como pretendem os ricardianos. No capitalismo, os salários têm que ser fixados em termos nominais e o seu poder de compra vai depender da operação do conjunto da economia, ou seja, da taxa de exploração, da produtividade social do trabalho e da estabilidade do padrão monetário. Nessas condições, os trabalhadores e os capitalistas não dispõem dos meios para regular o salário real.
Marx trata do custo de reprodução da força de trabalho com o propósito de definir as condições mínimas exigidas para o regime do capital regenerar continuamente suas condições de existência. Essas condições de reprodução do sistema devem garantir a sobrevivência do trabalhador e de sua família. Mas, Marx também diz enfaticamente que o salario fixado em termos monetários é uma grandeza variável, não obstante entre as condições essenciais de reprodução regime do capital esteja a definição de piso real para os salários, o mínimo que garante a subsistência do trabalhador e de sua prole. (Em Ricardo o salário está sempre no nível de subsistência, esmagado entre os lucros e os rendimentos decrescentes da agricultura.)
No volume III Marx faz a crítica dos que confundem o dinheiro ora circulando como renda ora como capital. O dinheiro funciona neste sistema predominantemente como capital e secundariamente como renda. A circulação do dinheiro como renda depende da circulação do capital-dinheiro. A circulação M-D-M se subordina à circulação D-M-D. O circuito M-D-M não pode sobreviver sem que os que comandam os meios de produção e o crédito decidam oferecer emprego aos que só dispõem de sua força de trabalho. Os salários se destinam à aquisição de valores de uso e o dinheiro aí funciona como instrumento de circulação da renda monetária, mas só pode circular como renda se antes circulou como capital, porque a recepção de renda por parte dos assalariados depende da circulação do capital. Ou seja, da disposição dos capitalistas de colocar em operação a capacidade produtiva existente nos setores de meios de consumo e de bens de produção. Por isso Marx diz que quando está analisando o circuito M-D-M, a crise é mera possibilidade que surge da separação dos atos de compra e venda, mas o dinheiro aí é intermediário, a interrupção do processo de troca é acidental. Ao passo que em D-M-D, a possibilidade é concreta, relacionada com a natureza do processo capitalista de produção e circulação, cujo objetivo intrínseco é o valor acrescentado. Se olharmos M-D-M em seu fluxo contínuo, não difere formalmente do D-M-D’, em ambos tem se um fluxo contínuo de dinheiro e mercadorias. Entretanto, no primeiro circuito o objetivo é externo: a recomposição da cesta de valores de uso dos produtores. Em M-D-M, a continuidade da circulação depende da coincidência entre oferta e demanda. A presença do dinheiro, no entanto, impede, mesmo nas condições abstratas da circulação simples, reivindicar a vigência da lei de Say. A interrupção do processo está inscrita na autonomização do dinheiro, já instituído como ente coletivo que comanda as relações entre os produtores. Nas Teorias da Mais-Valia volume II, quando discute a crise em Ricardo, Marx diz claramente que no capitalismo a possibilidade de interrupção do processo de acumulação monetária se dá: 1º) pelo fato de que toda riqueza deve se expressar seu valor na mercadoria geral. Ou seja, em termos monetários; 2º) a mercadoria é apenas um meio para valorizar a riqueza capitalista; 3º) A produção de mercadorias sob o capitalismo depende da avaliação que o capitalista faça do comportamento de sua riqueza. A interrupção do circuito só pode se dar se o capitalista quer preservar a riqueza existente, o que só pode fazer sob a forma monetária. Preservar a riqueza existente significa interromper o fluxo de renda, a criação de valores e geração de mais valia.
A continuidade do fluxo depende da disposição dos capitalistas de arriscar a forma geral da riqueza na aquisição de matérias-primas e de força de trabalho, o que só pode ser feito se há “financiamento”, próprio ou de terceiros, a cada “início” do processo de produção. A questão de desvalorização do capital diz respeito à própria natureza do circuito. Na medida em que a classe capitalista resolva produzir, ela está buscando a valorização de seu capital, mas esse ato é ao mesmo tempo ato de desvalorização da riqueza existente. Quando, por exemplo, Marx discute tendência decrescente da taxa de lucro, ele analisa a natureza do processo de acumulação impulsionado pela concorrência intercapitalista que impõe aos detentores dos meios de produção a contradição entre a criação da riqueza nova e a desvalorização da riqueza já existente. O aumento da produtividade social do trabalho desvaloriza as mercadorias produzidas sob os métodos de produção anteriores. Toda criação de riqueza nova desvaloriza a massa de valores produzida anteriormente. A interrupção do circuito D-M-D’ tem uma razão interna que decorre do impulso irrefreável à acumulação: a produção de riqueza nova vai desvalorizar a riqueza já criada. A lei do valor, enquanto lei de valorização do capital, é ao mesmo tempo a lei que governa a desvalorização do capital e da força de trabalho.
Quando se observa o circuito D-M-D’ – pensa-se em um fluxo. Mas o processo de valorização capitalista não é apenas um fluxo. Envolve o estoque de riqueza já produzida ou de direitos à riqueza e à renda que, com o desenvolvimento do sistema de crédito, assumem as mais diferentes formas. O fluxo tem efeitos sobre o valor do estoque acumulado. Daí ser importante verificar o ganho líquido que o fluxo trás comparado com a desvalorização do estoque. Marx trata disso quando discute Ricardo: deixa claro que a crise é uma crise de desvalorização. O capítulo da tendência declinante da taxa de lucro só é compreensível na perspectiva da desvalorização, fenômeno que a acumulação “sem limites” impõe à avaliação e decisão dos capitalistas.
Vimos até aqui, o problema da gênese do dinheiro, o percurso lógico-genético do capital desde a sociedade mercantil simples até o “aparecimento” do dinheiro com capital.
Circulação e Reprodução do Capital
O Livro II de O Capital trata dos problemas da circulação do capital e da sua reprodução (em sua última sessão). É conveniente discutir as expressões circulação e reprodução uma vez que muitos comentadores de Marx as apresentam como equivalentes. Por que Marx discute a circulação do capital antes de sua reprodução, e o que as distinguem? A ideia de circulação do capital é logicamente prévia ao da reprodução, não é um problema de abrangência apenas. No processo de exposição, os dois conceitos ocupam lugares diferentes. A ideia de circulação diz respeito às formas necessárias que todo capital individual deve percorrer em seu movimento de valorização no conjunto do capital social. Marx vai então tratar do processo de circulação do capital como a forma capitalista de circulação de mercadorias. As mercadorias agora circulam como produtos do capital. Na circulação capitalista, a concorrência entre os capitais impõe a tendência à continuada redução dos tempos e custos de circulação, no período que vai da aquisição de força de trabalho e meios de produção até a realização do valor acrescentado pela extração da mais valia.
Nicola Badaloni chama a atenção para a sutileza de Marx na investigação da circulação capitalista: Ricardo anula os tempos de circulação, o que para Marx configura a dissolução da realidade da produção capitalista em sua idealidade. A lógica interna da acumulação reclama, de fato, a “anulação” do tempo de circulação, mas a materialidade da produção impõe obstáculos a essa pretensão. Esse fenômeno é observável no capitalismo contemporâneo pela prática do just in time, pela formação de redes entre produtores e fornecedores e, agora, pelo comércio eletrônico.
Marx insiste no fato de que o início do processo se dá com o capital- dinheiro. D – M – P – M’ – D’ – Estas as etapas que tem que ser percorridas. O capital dinheiro compra força de trabalho e matérias – primas; materiais auxiliares, etc que ingressam na esfera do capital produtivo, o âmago do processo de valorização. M’ representa as mercadorias acabadas, carregadas de mais valia, e D’ supõe a transformação das mercadorias em dinheiro para que se possa recomeçar o ciclo D-M-D”. Marx ressalta a unidade entre a circulação e produção para explicar o movimento do capital em seu conjunto. As fases podem ser analisadas individualmente, mas sempre em relação com as demais, dento do conjunto do processo de circulação. Cada capital individual tem que cumprir todas as etapas para poder se reproduzir. Isso significa a subordinação de todas essas etapas formais às leis de circulação capitalista. Mas Marx ao mesmo tempo que ressalta a unidade, sublinha a necessária assincronia do processo de circulação do ponto de vista dos capitais individuais. A assincronia significa que enquanto um capital individual se encontra na fase de início do processo, o outro está na etapa final, etc. Do ponto de vista dos capitais individuais existe necessariamente uma não coincidência entre os momentos em que cada capital individual está realizando o processo de circulação. Esta assincronia deriva do lapso temporal que decorre do próprio processo de circulação que exige a passagem pelo circuito capital dinheiro, capital produtivo, capital mercadorias e, finalmente, de novo capital dinheiro.
O movimento da circulação dos capitais individuais faz com que se tenha sempre a qualquer momento, o capital existindo sob estas distintas formas: sob a forma dinheiro, sob a forma de matérias primas, de capital produtivo, de capital sob a forma de mercadorias acabadas, etc.
Rosa de Luxemburgo levanta a questão de como é que se realiza a mais-valia, de onde vem o dinheiro que permite a circulação das mercadorias carregadas de mais valia. Existiria segundo Rosa um problema lógico: Como é que se partindo de certa quantidade de dinheiro se chegaria à uma quantidade maior? Se observada do ponto de vista do capital individual, o problema é insolúvel. Mas olhando do ponto de vista assincronia entre os momentos da circulação do capital – capital-dinheiro, capital produtivo capital mercadorias e capital dinheiro a questão pode ser resolvida. É a própria assincronia que permite que a mais-valia se realize. No momento em que um capitalista está realizando a mais valia, um outro está injetando dinheiro na circulação ao comprar meios de produção.
(Keynes no “Treatise on Money” divide o capital da empresa em Money capital (D), working capital (M), (matérias primas que estão sendo processadas, liquid capital (mercadorias prestes a se transformar em dinheiro) (M’) e introduz ainda o conceito de loan capital que são os fundos que as empresas retêm sob a forma líquida, a massa de capital dinheiro que a cada momento as empresas têm acumulados. São exatamente esses fundos líquidos que permitem a uns capitalistas financiarem os outros que estão comprando matérias primas por exemplo, o “M” em Keynes).
O que nos interessa é saber que não existe o problema da Rosa de Luxemburgo, ela se debate com um problema inexistente. Lênin mostrou que o problema da realização da mais valia estava resolvido pela própria forma como Marx apresenta o processo de circulação do capital. Lênin mostra que o problema maior não é o da realização da mais valia, mas do capital constante, que vai ser resolvido quando Marx trata da reprodução e não mais da circulação.
Marx está supondo que a circulação está sujeita a interrupções, a possibilidade de interrupção está colocada desde a circulação mercantil. Marx analisa como esse sistema, que se funda na busca da acumulação de riqueza monetária, pode ter uma circulação ‘normal’, a despeito de sua natureza contraditória. A circulação capitalista tem uma “circulação normal” por conta das relações entre o movimento do capital em geral e as condições em que circulam e se reproduzem os capitais individuais. A assincronia, enseja que cada uma das formas do capital esteja permanentemente presente no processo de circulação. Da mesma forma que Marx dizia que a circulação simples, produz constantemente dinheiro, a circulação produz permanentemente capital-dinheiro. A questão da fluidez da circulação se resolve pelo crédito que se concedem mutuamente os capitalistas. Marx aqui prescinde do sistema de crédito comandado pelos bancos. O crédito, nesse momento da análise, decorre do financiamento mercantil, que os capitalistas se concedem uns aos outros. Marx recupera novamente a análise da circulação simples de mercadorias: o dinheiro propriamente dito, só precisa funcionar como meio de pagamento geral, só precisa funcionar efetivamente, na contratação de força de trabalho, por que os trabalhadores precisam comprar em “cash” as mercadorias que necessitam. Os capitalistas podem comprar uns dos outros, via credito que se concedem reciprocamente. Hilferding vai retomar essa questão, mostrando que, se o sistema de crédito comandado pelos bancos ainda não está constituído, ele já existe em potência no credito intercapitalista. Hilferding vai mostrar que é na circulação de capital que a letra de cambio começa a substituir efetivamente o dinheiro metálico. Na medida em que uma capitalista concede credito, está criando um instrumento de circulação, a letra de câmbio. Esse instrumento circula a partir da garantia que cada capitalista dá na letra, através do endosso. Isso significa que a qualquer momento, apresentando a letra se obtém o dinheiro metálico, a liquidação da letra. A letra de câmbio está apoiada na existência de operações mercantis entre os capitalistas, sendo que estas operações mercantis para serem liquidadas dependem do sucesso ou não da produção. Essa letra de cambio passa a circular entre os capitalistas como meio de pagamento, substituindo o dinheiro metálico. Marx diz que o funcionamento dessas letras como meio de pagamento pode se dar indefinidamente se o processo de circulação ocorrer sem interrupções. Qualquer interrupção faz com que ocorra simultaneamente uma crise de crédito, no sentido de que um capitalista não honrando o endosso que fez na letra, a crise de credito pode se generalizar para todo o sistema. Essa crise de credito resulta da interrupção do processo de circulação, ou entre D –M ou entre M’ – D’, a possibilidade da crise ainda é apenas formal.
Somente nos capítulos que tratam do capital a juros, Marx vai desenvolver a hipótese de uma crise de credito típica do capitalismo “desenvolvido”. Do ponto de vista monetário, a letra de cambio significa a substituição da moeda metálica progressivamente pela moeda de credito. Mas essa substituição está restrita às relações entre os capitalistas. Estes, na ausência da concentração do crédito e da gestão da riqueza líquida nos bancos (títulos de crédito e direitos de propriedade) tem que manter uma reserva permanente em recursos em dinheiro para pagar a força de trabalho. Sem o dinheiro de crédito, decorrente da concentração da riqueza líquida nos estrato mercantil encarregado de administrá-la, o sistema perderia a sua “natureza”, expressa no movimento do sujeito absoluto do processo capitalista que busca de todas as formas expurgar as barreiras que limitam sua auto expansão.
Os capítulos sobre a reprodução simples e ampliada investigam a acumulação, ainda sob a perspectiva do movimento do capital em seu conjunto, isto é prescindindo da concorrência entre os capitais individuais. A investigação de Marx examina a reprodução do capital em suas determinações materiais e sociais: trata-se da reprodução conjunta das relações de produção e das formas materiais impostas às mercadorias pelo regime do capital. Marx analisa como o capital produtivo em suas formas materiais adequadas para levar adiante o processo de acumulação. Isso é feito pela distinção entre capital constante (sobretudo o capital fixo) e variável. O propósito é analisar simultaneamente a reprodução, em conjunto, das formas materiais do capital e das relações sociais da produção. Nos esquemas de reprodução de O Capital, e também nas Teorias da Mais-Valia Marx diz que vai analisar conjuntamente como se reproduzem capital constante e capital variável enquanto expressões materiais das relações de produção. Por isso vai dividir a economia em dois departamentos, o de meios de produção (Departamento I) e o de meios de consumo (Departamento II). Do ponto de vista da teoria da circulação monetária, importa sublinhar que as duas formas de capital, constante e variável, são reproduzidas em uma temporalidade diversa. Além disso, é importante e distinção dentro do capital constante entre o capital fixo e circulante. O que Marx diz é que uma parte do capital circulante transfere seu valor para a mercadoria na medida em que a matéria prima é absorvida no processo de produção. Supondo condições de realizações normais, o dinheiro volta para o capitalista para ele repor no momento seguinte a massa de capital circulante que ele necessita. No caso do capital variável, o trabalhador reproduz o valor de seu salário. Mas no caso do capital fixo, é transferida uma parte de valor para a mercadoria, esta repõe apenas uma parte do valor do capital fixo desgastado. O capitalista, entretanto, não substituiu o capital fixo por partes, mas apenas quando as máquinas deixam de ter valor de uso. Sendo assim, na medida em que se dá a reprodução do conjunto do capital, vão-se acumulando fundos de depreciação subtraídos à circulação, entesourados como reserva para a substituição do capital fixo depreciado. Implicitamente Marx está aí fazendo uma critica à noção de poupança (Nassau Sênior). O fundo social destinado à reprodução do capital fixo nasce naturalmente da operação do sistema capitalista. Esse fundo acumulado necessariamente sob a forma monetária está na origem do crédito de capital destinado à ampliação da capacidade produtiva. É uma critica à noção de abstinência que celebra a acumulação capitalista como fruto das virtudes do indivíduo frugal.
Esse fundo social dá origem ao credito de capital. O sistema capitalista cria, em seu movimento de expansão, dois fundos: o fundo mercantil e o fundo disponível para a acumulação. Na critica a Nassau Senior, quando Marx fala: “acumulai, acumulai” eis Moisés e os profetas” está desdenhado a hipótese da abstinência e o sacrifício da poupança. Assim, acumulam-se os fundos financeiros administrados pelos bancos enquanto delegados dos proprietários dos meios de produção, incumbidos da gestão da riqueza “liquida” coletiva e, portanto, da administração e direcionamento do crédito.
Para Marx o conceito de mais-valia é central na construção da estrutura lógica de O Capital e na formação de suas leis de movimento. É através dele que Marx se liberta do conceito ricardiano de excedente, incompatível com o funcionamento de uma economia monetária. O regime do capital, em sua forma plenamente constituída, ou seja, já ancorada nas forças produtivas propriamente capitalistas incorporou à sua dinâmica os elementos históricos que precederam e prepararam sua constituição – o comércio e o crédito.
O império da acumulação capitalista impôs suas regras e desregramentos aos elementos da era mercantil, aqueles que se incumbiram da dissolução da economia feudal, cujos capítulos mais dramáticos foram escritos pela chamada acumulação primitiva, pela expansão colonial e pela reinvenção da escravidão. Na esteira do doloroso e violento processo mercantilização da força de trabalho- leia-se da expropriação dos produtores diretos dos meios de produção- o regime do capital acelerou a uma velocidade impressionante a produção e reprodução dos elementos materiais da riqueza. O economista francês Michel Husson tem suas razões em afirmar que Marx, em determinados momentos, apresentou uma visão otimista a respeito da possibilidade do capital industrial submeter as formas antediluvianas do capital comercial e do capital a juros. Assim no volume II das Teorias da Mais Valia Marx escreve: “O capital commercial e o capital a juros são formas mais antigas do que o capital industrial. Mas no curso de sua evolução, o capital industrial deve subjugar estas formas e transforma-las em funções especiais ou formas derivadas de si mesmo. Ele encontra essas formas como antecedentes e não como formas de seu próprio processo de reprodução. Onde a produção capitalista desenvolveu todas suas múltiplas formas e tornou-se o modo de produção dominante, o capital a juros e o capital comercial transformaram-se em meras formas do capital industrial, derivadas do processo de circulação.” (Teorias da Mais Valia vol. III)
No próximo capítulo, cuidaremos de mostrar as idas e vindas da investigação de Marx sobre as relações entre capital industrial e capital a juros.