Ajuricabas e cabanos no mercado da cultura
Ajuricabas e cabanos no mercado da cultura
Estou entre aqueles admiradores de Luís da Câmara Cascudo que têm dificuldade em aceitar inovações na cultura popular ao preço da ignorância das fontes ou o aleijão da feição original da qual descendem. Todavia, como tudo na terra e nos céus se move incessantemente, nem mesmo o folclore poderia ficar parado no tempo e no espaço. A boa conservação preza, portanto, não perder o fio da meada de modo que se saiba donde vem e aonde vai a maré dos acontecimentos. Doutra parte, quando se trata de cultura popular toda tentativa de fulanizar a parada ou privatizar resultados cheira mal e embrulha o estômago.
Assim, com tais premissas a me fustigar o juízo vi pela TV, quase coincidentemente, dois dias do show “Terruá Pará”, diretamente do Ibirapuera, São Paulo; e três do Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas. Do primeiro, agradou-me sobremaneira a performance dos artistas, a notícia de que conjuntamente se estava a fazer promoção da gastronomia típica da terra do pato no tucupi e o valente esforço da equipe para marcar um ponto especial. Porém eu não me furtarei de criticar a tentativa de partidarizar eventos como este antes, agora e depois do atual governo estadual: uns porque em vez de fazer o público se empoderar do projeto o deixaram hibernando entre chuvas e esquecimento, passando recibo aos adversários. Outros porque, aparentemente, fazem retomada da coisa deixada ao relento com espírito de desforra. Desta forma, com a preconcebida exclusão de uns ou de outros, não existem ganhadores mas uma perdedora é certa: a Cultura.
Sobre os bois de Parintins tenho a dizer que me rendi completamente, posto que a um tradicionalista do Bumba Meu Boi e do Boi Bumbá aquilo me parecia próximo a um atentado iconoclasta. De fato, o espetáculo que se apresenta no Bumbódromo é coisa “pra inglês ver” (no bom sentido): uma excelentíssima ópera caboca de exportação é claro, mas também um espetáculo importante a fim de levantar a auto-estima do povo amazônico, ainda mais gerando emprego e renda local como atrativo turístico. A ilha Tupinambarana explode de alegria e entusiasmo na expressão da palavra, possuída pelos espíritos da floresta e dos rios: neste sentido, o Festival de Parintins é tão ou mais “terruá” (aculturado do regionalismo francês “terroir”) do que o show de música popular paraense.
E, para minha grande surpresa, os telespectadores viram em reportagem adita ao espetáculo, que a Parintins que recebe influência do Sambódromo com o grande espetáculo do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro e inova, com inspirada criatividade antropofágica que nem Oswald de Andrade imaginaria; é a mesma que conserva o Boi Bumbá de rua e a tradição da ladainha dos primeiros dias. O que faz pensar no casamento do sagrado com o profano no Çairé ou Sairé, de Alter do Chão, Santarém-PA. A rivalidade entre aficionados do boi Caprichoso (azul) e do boi Garantido (vermelho) tem raiz que a sociologia explicará, caso seja investigada. Se, por acaso, eu tivesse feito parte do júri faria corpo com aqueles que escolheram o Garantido como vencedor do festival de 2011. Não fosse por mais elementos, pelo menos o fato de que acertado no enredo – a mestiçagem cultural.
Passando do discurso à prática, o enredo do Garantido fez apelo à amazonidade e mostrou o Kuarup, festa dos mortos conforme o ritual xavante, do Xingu. A vizinha cidade de Juruti-PA, com o seu magnífico Festival das Tribos, estava representada na apresentação do boi Garantido. Ademais, este me lembra o boi de minha terra em priscas eras, o Resolvido, em Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. Então, eu sonhei que o Amazonas e o Pará poderiam se unir para abrir alas ao chamado desenvolvimento regional sustentável, com base num turismo inteligente baseado na cultura popular e na natureza.
Há trinta anos, diversas vezes transitei entre Belém e Manaus; oportunidade para aprender com Cleo Bernardo, Jaime Bevilacqua, Antístines Pinto, Jorge Tufic, Max Carpentier, Arthur Engrácio, Mário Rocha e outros tantos intelectuais e para escrever apelando a amazonenses e paraenses para abrir caminho a todos mais estados amazônicos brasileiros e países amazônicos num diálogo cooperativo abandonando velhas rixas, preconceitos e intrigas.
O debate de ideias, timidamente, se fez em torno de boa provocação lançada por Jaime Bevilacqua em resposta a meu quixotismo assumido pela união combativa de "ajuricabas e cabanos" contra a alienação regional, com nome para movimento amazônico e/ou projeto dito “Ajuricabano” (junção do nome do herói antiescravagista do Rio Negro, Ajuricaba, cacique dos Manaus; e dos combatentes cabanos contra o neocolonialisto luso-brasileiro com corte imperial do Rio de Janeiro). A palavra-chave "ajuri", na fala amazonenses oriunda do Aruak significa o mesmo que "mutirão" na fala paraense através do Nheengatu, 'cooperação' no vernáculo.
Até as pedras e as sujidades da Ladeira do Castelo, em Belém-PA, e o velho marco encardido de fronteira Portugal-Espanha, de 1750, fincado na praça de Barcelos-AM; sabem que unidos o gigante Amazonas e o grande Pará fariam do Brasil orgulho planetário em ser o maior país amazônico do mundo. Porém separados e brigando entre si abrem a região Norte às piores desgraças, deixando a nação brasileira envergonhada perante a opinião pública internacional.
Ora, o problema amazônico "é a economia, estúpido!", gritaria um valente homem de negócios com investimento na bolsa e seus representantes políticos e aliados na mídia em face de sonhadores ambientalistas e militantes sociais dos direitos humanos. Esse notável homem prático, sabe mas não lhe interessa que outros saibam o fato de que sim – nós também acreditamos na Economia como base desta questão – , mas o problema da conservação compatível com o desenvolvimento é onde a porca torce o rabo. Melhor dizendo, falta política econômica mais calibrada. E no arsenal de ferramentas um dos principais instrumentos constitui o fomento econômico do turismo receptivo e do mercado da cultura criativa como salvação da lavoura, em qualquer parte do mundo, mas principalmente em uma região sensível tal qual nossa verdejante Amazônia…
Agora que já sabemos como salvar a lavoura do trópico úmido com valor de mercado, também será preciso, para tirar o discurso do desenvolvimento sustentável das calendas gregas; que os responsáveis pela Cultura e o Turismo nacional saíbam que uma cooperação estratégica entre a FAO, OTCA e EMBRAPA, por exemplo, poderia oferecer a Amazônia oportunidade de ouro a fim de demonstrar de fato novo paradigma de desenvolvimento regional economicamente competitivo, ambientalmente sustentável e socialmente justo.
A lavoura sustentável pode salvar a Amazônia… Isto me lembra que a FAO pelo voto majoritário dos países-membros acaba de dar recado ao mundo com a eleição do pai do programa brasileiro FOME ZERO, doutor José Graziano da Silva; para comando geral da luta internacional pela segurança alimentar e erradicação da pobreza, a qual sem arranjo produtivo de base toda indústria e comércio de escala é insustentável e perigoso à convivência dos povos com crises recorrentes e bolhas de prosperidade feito soluços sem fim.
Consequentemente, se a Amazônia na verdade é tão importante assim como dizem para equilíbrio ecológico planetário, mesmo já se sabendo da patranha do tal "pulmão do mundo", com que o santuarismo esperto das velhas potências industriais quer manter as populações amazônicas em jejum e castidade num novo jardim do Éden com crescimento zero em favor das novas gerações civilizadas; será justo pagar pela prestação de serviços ambientais e financiar pesquisas de inovações em ciência e tecnologia próprias para regiões do Trópico Úmido planetário.
Que melhor recurso tem a Amazônia além de seu capital humano para o desenvolvimento sustentável? Além do óbvio patrimônio genético e savoir faire de "índios", "quilombolas" e "caboclos" (uma diversidade étnico-cultural de milhares de anos, que resiste à estúpida colonização e redução de milhares de linguas e culturas únicas na Terra) há ainda que considerar saberes da população amazônida oriunda de migrações dos Açores, Galiza, norte de Portugal, Líbano, Marrocos, Japão, etc., sobretudo descendentes de meio milhão de "soldados da borracha" (nordestinos) descendentes de antigos conquistadores tupinambás e mamelucos aliados aos brancos invasores.
Para obter a mais valia do capital humano amazônico, carece dar voz a esta brava gente a fim de fazer contraponto ao recalcitrante iluminismo e bandeirantismo doutras eras. Não vale a pena declarar guerra à tecnoburocracia que avassala os Brasis… É preferível baratinar o discurso da resistência cultural para refundar a República Federativa mediante uma dialética fundada nos direitos humanos universais e na soberania nacional, capaz de conquistar corações e mentes para plantar a rosa rubro-verde da amazônidade no seio da pátria amada Brasil.
Então, cairão as escamas dos nossos olhos: veremos como o Turismo é indústria e comércio; que ele não vive do vento nem se alimenta só de marketing e propaganda; sem agricultura moderna e tradição gastronômica não há rede de resorts, bandeiras hoteleiras e vôos charters que se sustentem. O turismo na agricultura familiar não pode ser uma presepada para angariar votos a caciques políticos, mas ser prioridade para conferir responsabilidade social a eventos como, por exemplo, o Festival de Parintins onde a gastronomia regional não deve ficar ausente da massa de turistas do Bumbódromo ansiosos para assistir a ópera ribeirinha amazônica…
No Pará, o pólo Marajó tem mais do que Boi-Bumbá e, portanto, a criatividade deve ser chamada para dar concretude ao "Inventário Nacional de Referências Culturais – MARAJÓ" que o IPHAN já entregou ao público. O estado do Pará se ele quiser liderar processo de desenvolvimento regional sustentável terá, necessáriamente, que apostar no Turismo economicamente competitivo, ambientalmente sustentável e socialmente justo… Pará isto só a PARATUR, relegada ao segundo ou terceiro escalão administrativo, separada do HANGAR como usina de eventos; não dá nem pra começo de conversa. Teria que ser criada a todo vapor a Secretaria de Estado de Turismo e Desenvolvimento Sustentável, que todos governos passados evitaram não se sabe bem por que cargas d'água e sempre tecendo as maiores loas à "indústria sem chaminés". Claro que para tal a impessoalidade de programas e projetos deve se impor às incompatibilidades de personalidade entre dirigentes de áreas afins, tais como a economia, a cultura e o meio ambiente. Estas questões são de interesse público, mas a conhecida carência de empregos, insuficiente aperfeiçoamento profissional e o caciquismo partidário conspiram para perpetuar a cultura que ensina que na prática a teoria é outra…
O diabo é que tudo isto a gente sabe num discurso mais velho do que a Sé de Braga, porém a tal vontade política dos governos de direita ou esquerda é manga de colete, com as manhas de sempre para favorecer certos financiadores de campanha que ridicularizam coisas tais como Bolsa Família, PRONAF, Fome Zero e torcem descaradamente pelo setor minerário bruto, guseiras, soja, madereiras como única via de "desenvolvimento"… Pelo menos, não há ilusão quando a maioria de eleitores revoltada com as promessas de mudança refuga candidatos ditos de esquerda para se vingar elegendo a direita. Então, fazer o quê?
Troca de informações entre Parintins e Marajó, por exemplo, seria auspicioso no sentido de criar produto marajoara com base na experiência dos bois Garantido e Caprichoso: uma Ópera Marajoara com base no folclore e na cultura tradicional.
Parintins chegou a estágio superior, em que o bairrismo está caindo. O modelo Parintins, permitiria um mix turístico-cultural em Marajó e Belém, nos fins de ano como o antigo Projeto Preamar, bolado pelo poeta João de Jesus Paes Loureiro, em que toda produção cultural paraense vinha a Belém, e agora amazônica fará maré cheia no estuário, inclusive Macapá atraindo turistas através das Guiana e Caribe. Como diria o poeta Thiago de Mello, "faz escuro, mas eu canto"…
José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da gente marajoara".
autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com