A Rocinha, atraso e dinamismo
A intensa circulação de pessoas denodam formas de explicação do fenômeno, dependendo do gosto, tanto materialistas como idealistas. A parte e o todo de um país prenhe de um projeto nacional estão ali a alguns metros de uma das regiões mais valorizadas do Rio de Janeiro.
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Desci a serra de Petrópolis rumo ao Rio, bem cedo. Para determinados padrões de domingo cheguei cedo, com Luciana, no pé do morro da Rocinha onde me encontrei com o nosso Xaolin da Rocinha, um dos quadros políticos mais interessantes que conheci nos últimos anos. Como diz os economistas o “organismo é vivo”. Uma movimentação impressionante de pessoas, motos, comércio demonstra que ali é um pedaço do Brasil em ritmo tão frenético quanto o centro financeiro paulista. Gente trabalhando, cada um a seu jeito e a seu modo, buscando sobrevivência, vivendo sonhos. De moto fomos ao ponto mais alto do “altiplano”, tiramos fotos, conversamos com pessoas e racionalizando sobre a vida como ela é; no concreto.
O “organismo é vivo e pulsante”. Não existe simplesmente nada que se procure capaz de não ser encontrado. Desde funerária, passando por salões de beleza (para todos os gostos), pet shop e uma boa comida. Não é qualquer coisa perceber ali as razões por detrás de o povo brasileiro (com um empreendedorismo prussiano aliado a tenacidade portuguesa) ter sido artificie de um país que saiu da Idade Média em 1930 e adentrou em sua similar contemporânea em 1980. Num caminho que a Europa demorou a percorrer quase 1.000 anos. Ideologia do trabalho em seu estado mais candente.
A proximidade de uma das praias mais bonitas do Rio de Janeiro, acrescidas de uma gama de serviços que cresce geometricamente dentro da comunidade tem expressão numa renda “informal” da terra que s transformou num rústico mercado imobiliário, gerando “rendas diferenciais” que devem ser melhor estudadas por aqueles interessados em ir à fundo naquela realidade. Os aluguéis de imóveis variam de R$ 300, a R$ 1.200. Essa valorização não passa despercebida dos responsáveis em acoplar reservas de mercado urbanas, a começar pelo Estado e a prefeitura – agentes primários da especulação imobiliária privada. Segundo Xaolin, não são poucas as pressões e investidas do Estado no sentido de privatizar a terra para grandes empreiteiros, quando na verdade a lógica seria o de institucionalizar a ocupação, entregando à população o direito exclusivo de propriedade.
A lógica da exclusão é a outra face da mesma moeda dos financiamentos privados de campanha e seus fetiches fascistas nos ditos “choques de ordem” da prefeitura da cidade. “Choque de ordem” como forma de abrir caminho a uma estratégia privatista e antipopular em essência e aparência. Enganam-se aqueles que falam da “ausência do Estado”. Está mais presente do que imaginamos, seja com água, luz e um complexo esportivo. Seja com obras paradas do PAC (afinal de ninguém é de ferro, esse tipo de intervenção se continuada pode gerar “inflação inercial”, subversão da Lei de Responsabilidade Fiscal e alta nos preços dos alimentos [sic]). Bom lembrar das visitas incertas da força de extermínio do Estado e seus “camisas negras”. Refiro-me ao BOPE, evidentemente.
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Gostaria de retornar ao início de nossa conversa. Algumas horas na Rocinha não me permitem a escrever um tratado sobre o tema. Mas me arrisco a algumas generalizações.
A pobreza poder ser observada de diversas formas. A favela em si pode ser um grande quadro bem pintado de relato da pobreza como a mais brutal forma de violência que um ser humano pode sofrer. Mas um quadro deve ser pintado observando seu conjunto. Toneladas de dissertações e teses acadêmicas dão conta de muita explicação do problema, pessimismo diante de um exagero em focar a análise nas relações de produção de uma dada realidade em detrimento das forças produtivas (ociosas ou não) convivendo no território. De certo que a temática “forças produtivas” não estar na moda há muito tempo. É muito mais rentável utilizar a pobreza como fronteira de barganha em instituições de fomento (CNPq, CAPES etc) do que apontar as imensas potencialidades imanentes diante de nós. A pobreza é um “grande objeto de estudo” de 10 em cada 10 “centros de estudos de problemas urbanos”.
Na ponta do processo essa forma de abordagem da realidade acaba que por servindo de base para ideias que inclusive advogam a intervenção policial nas comunidades como forme de deter o domínio do território por terceiras forças. A naturalização da pobreza e seu “estado belo” pode ser percebida nas frases de efeito mais comuns que se ouve quando o assunto é favela: “o capitalismo é assim mesmo”, “não tem jeito” e que “aos capitalistas não interessa a mudança deste estado de coisas” etc. É o vício da ciência social paulista e carioca em colocar ênfase no atraso. Sim, a pobreza é expressão de atraso, a incidência alta de tuberculose idem, Mas a convivência deste atraso com o dinamismo está a olhos vistos.
A questão é mudar o foco de abordagem e perceber que a imensidão de oportunidades em meio ao caos aparente. Existem forças produtivas em pleno estado de ociosidade, sendo a principal delas contidas nas milhares de pessoas que andam “de lá prá cá” na comunidade; gente que poderia estar envolvida em grandes projetos habitacionais, formando-se em línguas estrangeiras para receber turistas ou mesmo como alvo à formação de engenheiros de várias áreas e voltados – após sua formação – a uma estratégia de plena urbanização destes espaços. As batidas soluções de “cidadania” e “políticas públicas” que se resumem a formação de costureiras, cabeleireiras, artistas de circo e outros serviços nada tecnológicos são expressão da visão de mundo de uma classe média muitas vezes preconceituosa, mas com dor na consciência de um estado de coisas que ameaça seu mesquinho status quo. E os governos – em todos os níveis – são espelho desta forma pequena de enxergar as coisas.
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Como enfrentar de fato esta indignidade social encerrada nas favelas? O primeiro dito é tirar do centro analítico um certo culto da pobreza a substituindo pelo paradigma do desenvolvimento. E isto não é qualquer coisa. Assim abrirão condições para por fim aos panegíricos sobre a “criminalidade do pobre” em prol da análise da grande criminalidade surgida pelo lado das classes dominantes sob forma de uma taxa de juros absurda e uma taxa de câmbio de tipo pacto colonial. Identificar na política determinados zumbis antinacionais (FHC), além de protótipos de fascistas para quem a pobreza é uma aberração, produto da falta de controle de natalidade dentre outras coisas. Enfim, a criminalidade que impede – de fato – de nosso país deslanchar. Esta mudança de paradigma analítica pressupõe levar menos a sério discursos bonitinhos acadêmicos e enlatados de “cidades mais humanas”, “políticas públicas”, “democratização do espaço público” e outros ladainhas de bom gosto, mas que não resolve a real natureza do problema e, principalmente, sua solução.
É inconcebível planejar o fim das favelas em nosso país fora dos marcos de investimentos da ordem de centenas de bilhões de reais sob forma de casas, apartamentos, saneamento básico, complexos esportivos e culturais, além de transporte público (metrôs, trens etc). A Rocinha não precisa de campanhas de caridade, nem de oficinas profissionalizantes e sim de muito dinheiro, geração de empregos de qualidade e projeto de desenvolvimento local. A cultura da violência não prospera onde existe dignidade humana plena com pais de família ao menos capazes de projetar algum futuro para seus filhos.
O problema não se resolve com discursos, “corte de gastos”, “responsabilidade fiscal” e outros crimes institucionalizados. O problema das favelas (e da própria reprodução urbana) é um problema de corte nacional e que demanda poderio financeiro pleno para seu enfrentamento.
Não precisamos ir muito longe para perceber que dentro dos atuais contornos em matéria de política monetária nacional, a solução das favelas continuará por muito tempo a cargo da polícia e no máximo de algumas unidades habitacionais entregues por este ou aquele governo.
Urge, de forma imediata, uma mudança completa de paradigma. Pelo bem da própria sobrevivência de nosso campo político. O resto é se igualar aos outros, com uma tintura mais vermelha, mais “democrática” e “social”.