O êxito da eleição de José Graziano da Silva, ocorrida em 26 de junho último, para o cargo de Diretor-Geral da Organização para Alimentos e Agricultura (FAO) comporta vários significados e muitas interpretações. Trata-se de uma importante organização multilateral, integrante do sistema da Organização das Nações Unidas (ONU). A sede da entidade fica em Roma, capital da Itália.

O resultado final foi o reflexo de uma eleição bastante disputada entre o candidato do governo brasileiro e o candidato do governo espanhol, na figura do ex Ministro de Relações Exteriores, Miguel Ángel Moratinos Cuyaubé. Na Assembléia Geral do organismo, Graziano obteve 92 votos e seu concorrente ficou com 88.

A escolha vem promover a substituição do atual Diretor-Geral, o senegalês Jacques Diouf, que foi indicado pela primeira vez em 1994 e completará 18 anos no cargo, um período correspondente a três mandatos consecutivo de 6 anos. Em princípio, este último termina no final de dezembro, quando toma posse o brasileiro. O antecessor de Diouf era, igualmente, representante de um país do mundo em desenvolvimento. O libanês Edouard Saouma também ficou 18 anos à frente do órgão, no período compreendido entre 1976 e 1993.

Assim, é importante observar que, ao contrário do que foi muito comentado nas últimas semanas, não se trata da primeira vez que um representante do mundo subdesenvolvido é eleito para chefiar a FAO. Muito pelo contrário. Os acordos e os acertos das diplomacias muitas vezes conseguem indicar pessoas de determinada nacionalidade, mas a política a ser desenvolvida à frente do organismo é que vai ser o verdadeiro elemento para se avaliar sua “performance” no cargo. Afinal, há quase 4 décadas que o Terceiro Mundo, em tese, está por lá. Já a política da FAO no combate à fome e às especulações com as “commodities” agrícolas nem sempre corresponderam às necessidades da maioria da população mundial. Sabe-se, há muito tempo, que a quantidade de áreas agriculturáveis seria mais do que suficiente para resolver as necessidades alimentares atuais a nível global. Mas o problema é bem mais complexo do que tal evidência possa sugerir.

A eleição revelou-se, sem sombra de dúvida, como uma importante vitória de nosso País, em operação coordenada pelos nossos diplomatas do Itamaraty. Mais do que isso, pode ser vista como mais uma das conseqüências positivas da política externa levada a cabo ao longo dos 8 anos do Presidente Lula, com a presença de Celso Amorim à frente do Ministério das Relações Exteriores. Ao provocar uma inversão na postura brasileira de submissão aos interesses norte-americanos do período anterior, o governo propiciou à nossa diplomacia um espaço de intervenção inédito na esfera das relações internacionais. São bem conhecidos os principais pontos de tal mudança. Reforçar o eixo Sul-Sul, em detrimento de apenas se acomodar nas relações Sul-Norte. Avançar na integração latino-americana e sul-americana com o Mercosul, em detrimento do projeto da ALCA. Ampliar as frentes diplomáticas com os países da África e da Ásia, estimulando os grupos fora da hegemonia do mundo europeu e norte-americano. É o caso do conhecido G-77, grupo que reúne atualmente mais de 130 países. E um dos muitos frutos dessa nova postura é a maior importância exercida pelo Brasil nas instâncias multilaterais. É óbvio que esse tipo de percurso não costuma ser linear e que tópicos mais sensíveis ainda apresentam bastante dificuldade de aceitação, a exemplo da reivindicação brasileira de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Por outro lado, a vitória de Graziano tem o sabor também de um merecido reconhecimento internacional do programa Fome Zero. A própria figura do ex Ministro de Lula representa bem esse instrumento, que cada vez mais é utilizado no mundo afora como referência para as políticas de redução das desigualdades no interior dos países, e também entre as diversas regiões do planeta. O trabalho conjunto da equipe da Presidenta Dilma com Lula e Graziano contribuiu para reforçar a credibilidade da campanha entre os representantes dos demais países na Assembléia da FAO. Afinal, conseguiu-se ultrapassar os votos obtidos por um candidato da Espanha, apoiado indiretamente pela União Européia e que tem uma influência considerável sobre parcela expressiva dos países de língua espanhola em todos os continentes.

É amplamente sabido que instituições multilaterais dessa natureza apresentam limitações inerentes a sua própria característica política e diplomática. Como não existem instâncias deliberativas que criem constrangimentos para os países que não cumpram com as decisões adotadas, todos sentem-se mais ou menos à vontade para aplaudir e encaminhar as propostas com as quais concordam ou então ignorar aquelas com as quais apresentam algum grau de divergência. Mas a pior postura é a de tentar menosprezar ou desqualificar o potencial oferecido pela presença de um brasileiro à frente da FAO.

De qualquer forma, a pauta de assuntos emergentes é enorme. A questão da fome no mundo é tema permanente e as dificuldades para superá-la estão mais associadas a problemas de natureza econômica e geopolítica do que à capacidade de produção de alimentos na escala necessária. A reprodução das desigualdades regionais em termos das condições de produção e alimentação de alimentos também obedece ao mesmo esquema. O estabelecimento de estratégias de constituição de estoques volumosos de produtos alimentícios em escala global, para evitar a especulação nos momentos de carência de oferta, é urgente.

A necessidade de regulação sobre os mercados especulativos de bens agrícolas no plano internacional é mais do que evidente para os especialistas que apresentem um mínimo de isenção face aos interesses das grandes corporações envolvidas com esses negócios. A implementação de um tributo a incidir sobre as transações financeiras internacionais (a chamada Taxa Tobin ) tem sido proposta há muito tempo e poderia ser a base de constituição de um fundo a ser gerido pela ONU e voltado para a erradicação da fome e da miséria no planeta. As eternas divergências entre os países produtores de produtos agrícolas do Terceiro Mundo com as políticas de subsídios aplicadas pelos países industrializados que favorecem seus próprios agricultores e dificultam o ingresso de produtos primários importados. As questões associadas às mudanças climáticas e as dificuldades para a produção agrícola em diversas regiões do globo em razão da falta de água e do processo de desertificação.

Como se pode concluir, os temas são de elevada sensibilidade e os conflitos de interesse envolvidos com os mesmos são evidentes. A capacidade de articulação do Diretor Geral talvez seja até mais necessária do que a capacidade técnica e conhecimento da matéria, como bem atesta a experiência de Graziano na condição de professor, pesquisador e formulador de políticas públicas. Porém, o papel da direção da instituição é fundamental no sentido de estimular e direcionar o corpo técnico da FAO e de sua rede de colaboradores e estudiosos espalhados pelo mundo afora.

Na verdade, trata-se de mais uma trincheira que se abre na luta para redução das desigualdades sociais e econômicas no plano internacional, com um foco importante sobre a questão da fome e dos alimentos.

_______________

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Fonte: Carta Maior