A cadeira do barbeiro Arnaldo.

Desde menino vou cortar o cabelo com o Arnaldo.

Aliás, quando menino ia também ao barbeiro para, em tempos de festa junina, comprar os foguetinhos e foguetões da desgraça canina alheia.

O Arnaldo é um daqueles barbeiros da moda antiga e o salão, no pátio de sua casa, não têm os apelos narcisistas de nossa época e tudo é muito simples, sem nenhuma afetação que o culto a beleza sugere.

Lá no Arnaldo é possível jogar no bicho e saber das notícias do futebol. Para a desgraça dos torcedores do Paysandu, aí estou incluso, há pôsteres daquela coisa feia, o Clube do Remo. É Remo prá cá, Remo prá lá, Remo de um tempo em que disputava alguma divisão de campeonato brasileiro. Hoje nem isso mais para a tristeza do velho barbeiro.

Há mais de trinta e cinco anos vou lá sempre dar um trato na juba, no pêlo, mas nunca me dei conta da cadeira daquele barbeiro e apenas hoje é que tomei consciência disso.

Para ter assunto para além do mundo da bola é que perguntei há quanto tempo é que o tratador mais antigo das madeixas do bairro me respondeu: “tenho essa cadeira há 50 anos”.

“Égua, que idade essa cadeira têm?”, perguntei.

O Arnaldo, já com a cabeça branca de tantos cabelos cortados me disse para olhar para baixo e ver a idade do assento.

“O quê, 1878?”, não acreditei. E produção inglesa, dos tempos da revolução industrial.

A cadeira, bem mais velha que o velho barbeiro tem 133 anos.

Pelo espelho fiquei vendo o Arnaldo, com aqueles óculos fundo-de-garrafa. E eu ali, sentado e refletindo sobre as muitas cabeças (ou bundas) que já passaram por lá para um corte de cabelo.

Mas, como o bairro de minha avó Hilda é de origem popular, das gentes da estiva, o Telégrafo, em função das instalações telegráficas realizadas pelos norte-americanos à época da segunda grande guerra é que reflito que as pessoas que passaram por ali, nas últimas cinco décadas, são sempre de origem modesta. Modesta como a origem de minha família por parte de mãe.

Foram coureiros, estivadores, garrafeiros, verdureiros, feirantes e peixeiros que deixaram toneladas dos cabelos do povo nos últimos cinqüenta anos.

São os cabelos de pretos e de mulatos. São os cachos sociais da periferia de Belém e de seu povo mestiçado.

E antes? Será que aquela cadeira já recebeu alguma bunda ou cabeleira pomposa? É possível que sim porque, afinal, a cadeira de 1878 é inglesa, daquela terra distante do chá-das-cinco e de Grenfell que, a bordo do brigue “Maranhão” conseguiu a adesão da Província do Pará ao nascente império brasileiro.

O próprio militar inglês, a serviço do Império brasileiro, foi quem chegou a amarrar o Cônego Batista Campos na boca de um canhão em agosto de 1823 e quem liderou, em outubro daquele mesmo ano, a infâmia no brigue “São José Diligente”, depois rebatizado “Palhaço” onde, sob suas ordens mais de 200 patriotas paraenses foram mortos nos porões daquele navio tumbeiro.

A matemática é bem simples: dali a um pouco mais de cinqüenta anos a cadeira seria fabricada, mais cinqüenta anos o Arnaldo a compraria e mais uns trinta e poucos anos eu estaria lá, sentado, jogando conversa fora.
O que não faz um corte de cabelo com a nossa imaginação?

Paulo Fonteles Filho.