Conversas debaixo da mangueira

Ilhargas do forte do Presépio
costa-fronteira das ilhas do rio de Guamá
debaixo da velha mangueira de pomos carregada
presepadas do capitão-mor e Homens Bons
matabugres
ladeira do Castelo Branco
portal da memória do peixe frito ao azeite patauá
urubus à guisa de garis com fome
descendo à doca e feira do Ver O Peso
face à igreja de Santo Alexandre
sermão sebastianista do padre-mestre Vieira:
Quinto império do mundo…
e a ira sagrada de Cabelo de Velha,
tremendão Tupinambá morto em vida
e ressuscitado da morte por artes mágicas
caboclo Pena Verde santo de terreiro
Norte nordestino
Fado português do bom selvagem na casa de Mina
Guiné do desterro nas beiras do Solar da Beira
Casa das canoas
turcos encantados a bordo de caravelões
e igarités bastardas do Maranhão
Apocalypso contrabandeado de Porto Caribe
arco das gerações das Índias acidentais
traído pelos bons cristãos nas Antilhas
idem no Grão-Pará
a atiçar a fúria de setecentos e tontos
diabos matabrugres do rio das almazonas.

Fluxo e refluxo da maré
ar de chuva
altos vôos de urubu do Ver O Peso
reino das nuvens papavento
a ver quem desta feita vai preso
o tempo paresque que não se vai
da praça do Relógio
porém não se mergulha duas vezes
no barrento Guajará
espiral evolutiva das raízes da terra
até o espingarito das ideias
à riba d’espigão de concreto
edifícios da periclitante modernidade
cidade das mangueiras
sonhadora da ‘belle époque’ que nem escada de Jacó
Escadinha do caís da Port of Pará.

Cidade Velha do Pará velho de guerra
urbe viajante d’além mar
caminhos das Índias
parou aqui boca do igarapé do Piry
bebeu açaí ficou…
trouxe as mangueiras,
jaqueiras,
fruta-pão,
jambo,
gado cabo-verdiano,
zebu
búfalo,
casarão, azulejos e arabescos
sarampo,
peste de varíola…
levou drogas do sertão
e gados do rio em quantidade.

Pato no tucupi aqui na feira
do Açaí
maniçoba só de sobra pro jantar
crianças de rua sob teto de luar,
quem pagou o pato
no mato sem cachorro
foi índio cativo, negro escravo
e branco degredado:
segredos de estado!

400 anos como quatrocentos janeiros
mestiçagens à muque:
estupro civilizacional das amazonas
caminhos de Belém por mundos
e fundos de quintais
a cidade cresceu de costas para o rio,
subiu aos céus do avião e apartamento
a prestação
rio-me de mim sob chão de estrelas
feliz da vida sem ter eira nem beira
poeta e profeta de segunda
passageiro clandestino da terceira margem da história
à espera de cair do alto
aquela manga amarelinha matafome
mais desejada que todo ouro do El-Dorado
e as minas fundas e escuras de Carajás.

 José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da amazônia marajoara".

autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com