Os ovos da serpente
E o que inicialmente ocorreu aos media, aos que nos visitam no nosso domicílio e aos que lhes servem de fontes de sabedoria, foi dizer-nos que provavelmente se estava em presença de mais uma enorme maldade do terrorismo islâmico, pelas mãos da Al Qaeda ou outras da mesma cepa. Aparentemente, dava-lhes jeito que assim tivesse sido: afinal, a euroatlântica civilização ocidental, que é a boa, está de facto em guerra com a civilização islâmica, que é a má, e aquele horror que acabava de ser noticiado ainda que incompletamente viria confirmar as razões dos bons e a selvajaria dos maus.
Infelizmente, porém, a convidativa hipótese não pôde durar muito tempo: depressa ficou claramente sabido que o autor da sinistra façanha era um europeu por sinal muito puro, loiro e de olhos claros como se supõe serem os anjos e como eram os arianos tão estimados pelo inesquecível senhor Hitler, seus adeptos e arredores, há setenta anos e hoje ainda.
O próprio Anders Breivik, pois é este o nome da besta, o confirmou orgulhosamente, acrescentando que não está só no mundo ou pelo menos na Europa, esperando que os seus cúmplices por agora apenas virtuais prossigam o trabalho por ele tão espectacularmente encetado.
Quanto ao futuro da tarefa, é ainda pelo menos duvidoso, mas no que respeita à disseminação de criaturas que pelo menos aprovem e aplaudam o projecto as dúvidas são poucas ou nenhumas pelo menos nos que tenham estado atentos à sobrevivência da gangrena que o termo da Segunda Guerra Mundial e a derrota militar do nazifascismo não extirpou. Porque desde logo houve quem não tenha querido extirpá-la.
Um título pilhado
Como todos ou quase todos já terão percebido, o título que encima estas duas colunas não é meu: é pilhado a um filme de Ingmar Bergman, creio que de 77, que no seu final alertava as gentes para a persistência do vírus nazi então, como aliás ainda até hoje, remetido a uma prudente discrição mas não a uma completa inactividade. O massacre da Noruega veio agora expô-lo aos olhos do mundo.
Ainda assim, contudo, parece haver quem não o queira exibir em toda a sua evidência. Terá sido neste quadro que, ao noticiar a infâmia, um conhecido e reputado telejornalista caracterizou Breivik como um sujeito com uma ideologia «obscura». Obscura? O homem desde logo se afirmou não apenas racista como também brutamente anticomunista, de tal modo que divulgou pelos mais modernos meios de comunicação listas de comunistas (ou equiparados, como sempre fizeram os anticomunistas) cuja liquidação física recomenda.
Entre os seus heróis contam-se em lugar destacado algumas figuras emblemáticas do frustrado III Reich. Até no gosto pelas fardas vistosas e as condecorações flamejantes o indivíduo se revela próximo das tradições da direita mais extrema, muito fazendo lembrar o amor de Herman Goering, segunda figura do regime hitleriano depois da nunca completamente esclarecida defecção de Hess, pela espectacularidade pessoal.
É certo que a motivação imediata actualmente disponível é o racismo dirigido contra a imigração não-europeia: hoje, o anti-semitismo formatado segundo o modelo hitleriano não apenas já não se usa como também é inconveniente, pois o Estado de Israel é obviamente uma testa-de-ponte da «civilização ocidental» em pleno Médio Oriente.
Assim, os negros, árabes, asiáticos, mais os que com eles se pareçam, estão maduros para serem alvos imediatos e para servirem de apoio de passagem ao anticomunismo, alvo último e definitivo do nazifascismo que na Europa, para não falar de outros lugares menos bem conhecidos, está a passar de uma situação endémica mas relativamente despercebida, sobretudo para quem dela não se queira aperceber, para uma fase epidémica.
Torna-se óbvio, pois, que a diluição deste facto serve bem à serpente de que nos falou Ingmar Bergman e aos seus ovos, e é inevitável a inserção neste quadro na tal referência à suposta «ideologia obscura». Referência que não terá radicado em qualquer deliberada manobra de apoio ou camuflagem a Anders Breivik. Acontecendo, porém, que na área da informação, mais ainda que na política, «o que parece, é», como dizia o outro.
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Fonte: jornal Avante!