Brasil: de receptor a cooperante internacional
A Food and Agriculture Organization (FAO), a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, nasceu como um instrumento desse processo. Ela não é um fundo ou agência financeira, mas uma organização de associação voluntária dos países que gera e difunde conhecimento; oferece um foro neutro para debates e adoção de normas internacionais; e presta assistência aos governos em matérias de políticas públicas relacionadas à alimentação e à agricultura.
Hoje a fome ainda comanda a vida de uma em cada sete pessoas do planeta. Esse fracasso não é responsabilidade exclusiva da FAO ou de qualquer iniciativa unilateral. Superá-lo, da mesma forma – em suas manifestações estruturais ou lancinantes, como na Somália, hoje – cobra um esforço de reordenação institucional.
A crise dos países ricos anuncia que um novo ator terá papel decisivo nesse processo: o mundo em desenvolvimento. Dentro dele o Brasil ocupa lugar de destaque.
Desde o final dos anos 70, quando a União Europeia conquistou sua autossuficiência agrícola, a segurança alimentar e a cooperação para o fomento agrícola perderam progressivamente a centralidade que haviam conquistado no pós-guerra.
Não foi apenas um eclipse da solidariedade internacional ou uma imposição exclusiva dos mercados desregulados. Uma parte da responsabilidade deve ser buscada no interior das próprias nações pobres e em desenvolvimento. Ainda que muitas vezes de forma involuntária e tangidas por pressões comerciais, creditícias e financeiras externas, elas tiveram que sancionar o recuo da agricultura local.
Podemos ajudar onde temos sabida liderança: a luta contra a carência alimentar e as técnicas agrícolas
A dinâmica implantada pela estratégia brasileira de segurança alimentar trilhou o caminho inverso. Deu certo. E essa experiência pode – e deve – ser compartilhada com outros países.
Compreender porque o país foi vitorioso na candidatura à sucessão da FAO é um primeiro passo que orienta os demais. O principal divisor de águas na eleição não foi a disputa Norte-Sul mas o debate sobre o peso que a FAO deveria dar à função de assistência aos países em matéria de políticas públicas. A posição vitoriosa foi a de que a FAO tem um importante papel a cumprir nessa área.
O consenso entre as distintas visões está em que precisamos de uma FAO mais eficiente e efetiva para cumprir suas funções.
Isso tem direta implicação sobre o Brasil, ator cada vez mais relevante no cenário internacional e que reafirma seu compromisso em canalizar a cooperação Sul-Sul pelo sistema multilateral.
Mas para ser a ponte entre dois mundos, o Brasil precisa fixar as estacas institucionais no espaço global que desbravou.
O mundo escuta a sua voz; quer enxergar também os desdobramentos cooperativos de uma capacidade de catalisar e unir comprovada na eleição da FAO.
Nossa candidatura foi abraçada pelos países latino-americanos e caribenhos, e ancorada, ademais, em apoios na África, Ásia, Pacífico e Europa.
Tal abrangência reflete a expectativa naquilo que se disseminou como sendo "o modelo brasileiro", um arcabouço bem sucedido de reconciliação entre crescimento e inclusão social que inspira dezenas de povos e nações.
A singularidade dessa receita, desdobrada das diretrizes do plano de segurança alimentar brasileiro, o Fome Zero, deve orientar agora a política de cooperação de um país que vive importante travessia internacional: de receptor, o Brasil se transformou em doador na comunidade das nações.
Para que essa atribuição adquira a centralidade e a abrangência correspondente às expectativas materializadas na eleição da FAO, é preciso ir além dos esforços dispersos. Assim como temos políticas agrícola, industrial e tecnológica, chegou a hora de ter uma política de cooperação internacional de governo.
O passo a ser percorrido pode ser mensurado por um número: enquanto a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) tem orçamento da ordem de US$ 60 milhões/ano, agências similares de países desenvolvidos investem de US$ 6 bilhões (como Espanha e Holanda) a US$ 30 bilhões (EUA) em cooperação internacional.
No entanto, a cooperação que o Brasil pode oferecer não se trata apenas de ação financeira, mas, sobretudo, de intensificar a transferência de conhecimento e ajudar países a implementar políticas públicas nas áreas onde temos reconhecida liderança: a luta contra a fome e o impulso ao desenvolvimento agrícola.
Precisamos de um conjunto de ações e um foco específico já dado pelo governo: priorizar a cooperação com países da America Latina, Caribe, África e ilhas do Pacífico.
A ABC precisa ganhar musculatura condizente com a novo desenho geopolítico de um país que figura entre 10 maiores economias do mundo.
O fortalecimento das assessorias internacionais dos ministérios é parte da musculatura necessária para dar suporte à essa transição de receptor a doador e superar a "cooperação bolero" (dois para lá, dois para cá), que se limita ao intercâmbio de experiências de uns poucos técnicos.
A Embrapa, por sua vez, deve acelerar a ramificação internacional que cabe ao maior banco de tecnologia e pesquisa em agricultura tropical do planeta.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) tem outra missão intransferível nesse processo. Trata-se de compartilhar sua experiência naquele que é o principal lastro da luta contra a fome: a participação ativa da cidadania em torno dessa causa.
Desdobramentos na esfera da cooperação reclamam ainda um novo patamar de sintonia entre setor privado e setor público no comércio e desenvolvimento agrícola. Países árabes que buscam acordos de compra de alimentos com o Brasil, por exemplo, pedem contratos de 99 anos. Quem no setor privado o faria sem um fiador estatal? Trata-se de atribuição para uma diretoria internacional da Conab, associada a um "Eximbank", capaz de financiar o setor privado e a cooperação governamental.
Renovar o olhar sobre a cooperação brasileira não é uma agenda lateral à crise. Trata-se de um esforço de sedimentação indispensável para superar seu principal impulso reprodutor: a ausência de institucionalidade, que contraste a turbulência do presente com diretrizes solidárias para hoje e amanhã.
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José Graziano da Silva é Representante Regional da FAO para América Latina e Caribe e diretor-geral eleito da organização, cargo que assume em 1º de janeiro de 2012.
Fonte: Valor Econômico