Transcorreu em 7 de novembro o 85º aniversário da Revolução de Outubro. A efeméride parece um oxímoro – um evento ocorrido em outubro comemorado em novembro. O paradoxo, porém, é apenas aparente, dado que na época a Rússia não usava o calendário gregoriano adotado no mundo ocidental.

Para os formadores de opinião dominantes, o problema reside na própria essência do fato em tela. Comemorar a Revolução de Outubro seria, para tal ponto de vista, o mesmo que celebrar acontecimento antediluviano, de época já prescrita e proscrita pela historiografia oficial, não só a da direita, mas também a de certa esquerda. Comemorar Outubro, mais de uma década depois do final do ciclo aberto por aquela Revolução, quando fracassou o modelo a partir daí implantado e seus valores foram submetidos à demolidora crítica dos proclamadores do “fim da história”, parece uma deriva saudosista e dogmática dos que anacronicamente resistem a sair de cena e permanecem protestando do lado de fora do palácio.

Nada há de paradoxal ou a-histórico, porém, em abrir espaço na atribulada agenda dos nossos dias para celebrar aquele que ainda hoje é o maior acontecimento da História da humanidade.

Celebramos Outubro porque temos memória

Os que defendemos um mundo de liberdade, paz, justiça e igualdade social, valores realizáveis apenas numa sociedade liberta da opressão e da exploração capitalistas e da dominação imperialista; os que aprendemos – desde as priscas eras do movimento estudantil ou dos embates de classe em Osasco, Contagem, ABC paulista e selvas do Araguaia –, que a história das lutas sociais desde 1848 é perpassada por um fio vermelho de coerência; e encontramos nos escritos de Marx, Engels, Lênin e outros expoentes do pensamento revolucionário a fonte – embora não a única –, de nosso saber sobre a sociedade e a história, formamos com legítimo orgulho, desde 1922 e com maior razão, desde 1962, quando rompemos com o oportunismo kruschevista, um partido com memória. Por isso temos sobejas razões para celebrar os 85 anos do grande Outubro.

O começo dos anos 90 do século passado trouxe para nós, os comunistas deste Partido com memória, momentos amargos, porque testemunhamos, não através dos livros, mas na qualidade de contemporâneos do fenômeno, a derrocada do socialismo como sistema mundial. E sofremos ainda hoje os seus efeitos.

Quantos de nós, deste Partido que tem memória, nos perguntamos se loucos ou idiotas éramos os que defendêramos, com tanto ardor, paixão e até com desavisado dogmatismo, a experiência, o modelo, o regime inaugurado naquele glorioso Outubro de 1917. Fizemos nossa catarse autocrítica no Congresso de 1992, no plúmbeo e chuvoso fevereiro do planalto central. Em conclusão, não éramos stalinistas. E nem anti-stalinistas, forma de que se revestiu certo anticomunismo desde meados dos anos 50 e percorreu os 60, os 70, os 80, os 90… Mas tivemos o discernimento de compreender que os detritos do muro de Berlim caíam também sobre nossas cabeças, o que nos impôs reinterpretações sobre a experiência de construção do socialismo e inevitáveis adaptações à nova realidade.

Nessa mesma época, tornavam-se nítidas duas outras posturas em formações da esquerda brasileira. O antigo PCB, seguindo a trilha de outras experiências no Velho Continente, proclamava seu corte final com o passado iniciado em 1917 e 1922. Aboliu símbolos e mudou de nome, atropelando um setor do partido que ainda hoje reivindica a legenda e se atém a posições comunistas. Outra, originada de agrupamentos diversos do trotsquismo, do catolicismo e do sindicalismo espontaneísta, descobria no PT uma expressão da “nova esquerda socialista”, sem vinculação com o marxismo-leninismo nem com o “socialismo real”. Era o sopro de criação de uma força política social-democrata, com suas peculiaridades e que anos depois se tornaria num dos mais importantes fenômenos políticos de massas do nosso país e da América Latina, agora com posições de comando no governo.

A necessária autocrítica dos comunistas e o corte com o dogmatismo vieram a par com duas atitudes metodológicas decisivas para a manutenção da bandeira do socialismo revolucionário e científico erguida em nosso país, malgrado as vicissitudes da época. Descobrimos que não há modelo único de socialismo, que a fixação de um modelo a ser seguido ou mesmo sua imposição pela força, não só é uma atitude anticientífica, como uma perversão, responsável por grandes tragédias. A exportação forçada do modelo soviético para países do Leste europeu criou regimes grotescos e monstrengos caricaturados de partidos comunistas. A outra postura metodológica resultou da descoberta de que na revolução social, mormente em países como o nosso, de capitalismo dependente, e em épocas como a atual, em que a globalização capitalista se desenvolve em meio a uma ofensiva geopolítica tendente a liquidar as soberanias dos países, o fator nacional é decisivo, a tal ponto que a condição sine qua non para vingar um projeto socialista liderado pelo partido comunista e seus aliados, é a elaboração de uma estratégia e uma tática que tenham na emancipação nacional o seu aspecto primordial.

Destarte, ao comemorar o aniversário da Revolução Russa, não nos move o dogmatismo nem o filo-sovietismo. Aliás, muitas vezes, na trajetória de 80 anos de movimento comunista no Brasil, tanto um quanto outro, ligados a um estilo de trabalho subserviente, serviram de refúgio para justificar táticas e estratégias políticas não revolucionárias.

Celebramos Outubro porque temos princípios

Não é ocioso repetir. A Revolução de Outubro não foi ainda superada na história da humanidade como acontecimento político. Outubro de 1917 assinalou o advento de uma nova época. Foi a primeira tentativa vitoriosa de banir da sociedade toda a opressão e exploração. Apoiada na aliança entre os operários e os camponeses russos, a revolução dirigida pelos bolcheviques, transcorrida no calor de uma crise mundial que resultou na eclosão da I Guerra Mundial, tinha profundo caráter internacionalista. Libertando a classe operária russa, tinha também um sentido emancipador de toda a humanidade, pois fizera seu o lema marxista “Proletários de todos os países, uni-vos!”

Celebramos a Revolução de 1917 porque temos princípios. A revolução, que revelou ao mundo o gênio político de Lênin, comprovou o caráter científico do marxismo-leninismo e a aplicabilidade histórica de seus conceitos fundamentais. Nesse sentido, foi uma revolução fundadora dos princípios que deram origem aos partidos comunistas nos anos 20 e 30 do século passado, inclusive o Partido Comunista do Brasil. A Revolução Russa foi para a ciência da história moderna o que foram na Antiguidade as Musas de Heródoto. Comprovou que a luta de classes é o motor dos acontecimentos, que toda luta de classes é política, o que se traduz na luta pelo poder político, em revolução política e que do exercício revolucionário do poder político depende a evolução ulterior da sociedade. O proletariado russo derrubou um dos bastiões da reação mundial, implantou sua ditadura revolucionária de classe e deu início à construção da nova sociedade. Outubro de 1917 deixou como legado a noção até hoje irrefutável de que somente com transformações revolucionárias que sacudam a sociedade desde as suas raízes, é possível abrir caminho ao desenvolvimento e à justiça social. A Revolução de outubro de 1917, aliás, ocorreu no calor da luta teórica e política de Lênin contra os oportunistas da II Internacional, que apregoavam o caminho reformista, quando a história, em trabalho de parto, amadurecia soluções revolucionárias para dar à luz o novo. Outubro de 1917 foi o “laboratório” que deu aos revolucionários daquela geração os elementos para a elaboração de conceitos fundamentais e universais, ainda hoje válidos e vigentes, sobre o estado, o partido, a estratégia e a tática.

Grandezas e misérias, esplendores e sombras

Muito já se discutiu e muito se discutirá sobre o significado da Revolução de Outubro e do socialismo soviético que com suas grandezas e misérias, esplendores e sombras, marcou o século 20. Não sabemos se o movimento comunista será capaz de fazer uma avaliação precisa e compreensiva de uma experiência em torno da qual se dividiu no passado em campos antagônicos. Tal avaliação é tarefa necessária, porque das lições do passado poderemos retirar importantes indicações para o futuro.

Celebrando a maior revolução jamais vista na história da humanidade, sabemos tratar-se de acontecimento irrepetível na sua forma e caminho próprio, porque é original, única e irrepetível a circunstância. Mas já acumulamos experiência e conhecimento para recusar avaliações unívocas. Rejeitamos o liquidacionismo e nos afastamos do dogmatismo. Reivindicamos o esplendor das conquistas da Revolução Russa e mergulhamos fundo na análise de seus desvios e perversões.

Ainda hoje nos deparamos com o niilismo contido em afirmações como a de que a Revolução Russa e tudo o que dela decorreu foram uma seqüência de erros colossais, uma tentativa de desviar a história de seu caminho natural, agora retomado depois da grande derrocada dos anos 90 – o caminho que conduziria a humanidade ao fim da História. A derrota do socialismo e seu desaparecimento como sistema mundial, no apagar das luzes do século 20, abriram espaço a tal leitura liquidacionista. É o mesmo espaço em que se tentam equilibrar as forças da “nova esquerda”, com suas diferentes versões de social-democracia reciclada ou de um indefinido “neocomunismo”, que busca na exumação do stalinismo e na identificação deste com toda a experiência da luta e da construção do socialismo o inimigo a combater.

Deparamo-nos também com a recusa a analisar a vida como ela é, a buscar a verdade nos fatos, um apego e uma apologia acrítica àquilo que se convencionou chamar de “socialismo real”, revelador de um inconsistente dogmatismo que nos mantém cegos e incapazes de retirar lições da História.

No conjunto contraditório de glórias e tragédias, a Revolução de Outubro e a luta pela construção do socialismo que se lhe seguiu têm conteúdo e forma de acontecimentos épicos e não há propaganda negativa nem leitura niilista, nem mesmo a renúncia capitulacionista a seu legado que apaguem essa epopéia da memória dos povos ou esgotem sua força inspiradora nos atuais e futuros embates revolucionários.

Essa força inspiradora provém dos seus grandiosos feitos e de sua repercussão internacional. A Revolução Russa fez saltar pelos ares um império reacionário, que Lênin chamava de “prisão dos povos”. Sobre seus escombros, surgiu ao cabo de uns poucos anos uma nova civilização humana, uma economia desenvolvida, um povo culto e digno. Sob a influência soviética cresceu o movimento operário nos países capitalistas, desenvolveu-se a luta anticolonial nos países dependentes. A Revolução Russa soergueu um Estado soberano e instrumentalizou um Exército poderoso que se constituiu na força capaz de derrotar o mais feroz inimigo da humanidade – o nazi-fascismo. A Revolução Russa e o socialismo soviético estiveram presentes como inspiração, influência indireta e apoio moral na grande Revolução chinesa, na Revolução cubana, na Resistência vietnamita. Até mesmo a adoção, pelos países capitalistas, do Estado de “bem-estar” resultou, a par das lutas sindicais e políticas nos países capitalistas, da influência da Revolução de Outubro e do socialismo na URSS.

A compreensiva e precisa avaliação do significado da Revolução de Outubro e da construção do socialismo que ali se inaugurava deve fazer passar pelo crivo de uma ácida crítica os erros, as perversões e os crimes que pontilharam o percurso dos povos soviéticos e do Partido Comunista na luta pela construção de uma sociedade progressista. A luta pelo socialismo, como fenômeno histórico, é fruto também de suas circunstâncias. Na Rússia o novo poder defrontou-se com a guerra civil em que as classes derrocadas contaram com o apoio de 14 exércitos estrangeiros numa ação contra-revolucionária durante três anos. Os primeiros tempos da construção do novo regime conheceram o comunismo de guerra e a NEP – Nova Política Econômica. Seguiram-se a coletivização do campo e a industrialização acelerada, em meio a uma luta de classes exacerbada e a tumultuadas lutas políticas nos órgãos de governo e no partido dirigente. Enquanto promovia a industrialização acelerada, o país viu-se diante da circunstância de preparar-se para a guerra, num quadro mundial em que a revolução, depois de um período de ascenso e de vitórias parciais na Alemanha, Hungria e Sérvia, entrava em refluxo.

O Período de industrialização acelerada, de fins dos anos 20 do século passado até o começo da Segunda Grande Guerra, foi o mais florescente do ponto de vista econômico e social, de um impressionante, incomparável e irrepetível desenvolvimento, em que se exigiu tudo das massas trabalhadoras e do partido, período de mobilização total, quando se trabalhava e vivia em permanente campanha e em ambiente de cerco. Por outro lado, talvez residam nesse período – marcado por uma acerba luta de classes, por atos de sabotagem e ameaças de agressão, em que se exigiu também centralização absoluta no comando da vida econômica como na política –, as causas estruturais para que o regime soviético assumisse as características que assumiu. O heroísmo da façanha soviética, e a urgência do esforço de edificação somado à inexperiência, levaram a direção comunista a atuar com a noção do socialismo pleno e mesmo do comunismo imediato e ao apagamento de qualquer idéia de transição longa que pudesse estar contida nas idéias leninistas que informaram o lançamento da NEP na fase anterior. A mentalidade de cerco e a necessidade de comando ultracentralizado para garantir a mobilização total e permanente do povo fecharam o regime, que não chegara a desenvolver a institucionalidade democrática socialista – a democracia de massas, popular, dos sovietes, essência da proclamada ditadura do proletariado, segundo a formulação clássica de Marx, posteriormente desenvolvida por Lênin, o que acabou por alienar as massas populares, o único sujeito criador e transformador da História. Não se equacionou satisfatoriamente a antinomia desenvolvimento extensivo versus desenvolvimento intensivo, com repercussões negativas na produtividade e no atendimento de demandas básicas das massas populares quanto a bens e serviços.

Cada período da construção do socialismo teve sua importância e história próprias. Foram circunstâncias que para o bem e o mal fizeram as grandezas e misérias do esforço criador da nova sociedade.

Uma nova luta para um novo tempo

A derrota do socialismo, para a qual concorreram também fatores externos ligados à pressão e ao cerco dos países imperialistas, criou uma situação inteiramente nova no mundo. Como já assinalamos, no terreno das idéias deu azo à negação dos valores fundados pela Revolução de Outubro. No terreno político ensejou o surgimento de uma correlação de forças extremamente desfavorável aos que lutam por uma sociedade liberta da exploração capitalista. Hoje é corrente a visão de que o socialismo foi definitivamente derrotado e saiu da cena histórica como realidade e perspectiva.

Não comungamos essa visão. O socialismo continua sendo uma necessidade objetiva da evolução da civilização humana. E, nessa ótica, o socialismo e a sociedade sem classes são o ideal supremo a justificar a existência e a atividade do Partido Comunista. Ao reafirmarmos os princípios e os ideais de Outubro de 1917, simultaneamente nos aferramos à realidade da época e à do país em que atuamos. Hoje parece claro que está sepultada a idéia do “comunismo súbito”. O exame atento da História indica que a construção do socialismo e o alcance de uma sociedade tão avançada quanto o comunismo – sociedade sem classes, reino da abundância, liberdade triunfante sobre a necessidade – é tarefa para muitas gerações que atravessará diferentes épocas históricas.

A saída para os graves impasses por que passa a humanidade, a superação da crise de civilização que atravessamos, o impedimento da barbárie, exigirão das forças progressistas e revolucionárias a capacidade de elaborar novas estratégias para enfrentar os novos desafios próprios da época contemporânea. A correlação de forças extremamente desfavorável, decorrente do desaparecimento do socialismo como sistema mundial implica adaptar o pensamento das forças revolucionárias a uma luta de novo tipo por um socialismo renovado. Trata-se, pois, de construir novos padrões e empreender novos passos de um novo processo de acumulação revolucionária, inclusive no que diz respeito à afirmação, revigoramento e consolidação do Partido Comunista. Comemorar Outubro de 1917 é compreender que nesse mister estarão presentes os valores e ideais daquela grandiosa Revolução.

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[*] Jornalista, membro do Conselho Editorial da revista Princípios, vice-presidente e secretário de Relações Internacionais do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.