Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Comunicação

    Entre chuvas e esquecimento

    Entre chuvas e esquecimento Há um rio secreto ao longo do tempo que passa mesmo quando o pensamento claudica, falece a memória e a história abdica de seu trono: Inez é morta, a tarde morreu e um país ancestral ninguém sabe onde se meteu. Eram sete caciques à testa de sete nações Confederação neotropical de […]

    POR: Redação

    5 min de leitura

    Entre chuvas e esquecimento

    Há um rio secreto ao longo do tempo que passa
    mesmo quando o pensamento claudica,
    falece a memória
    e a história abdica de seu trono:
    Inez é morta, a tarde morreu
    e um país ancestral ninguém sabe onde se meteu.

    Eram sete caciques à testa de sete nações
    Confederação neotropical de povos cujas águas
    lhe roubaram a terra
    diz o padre Antônio Vieira
    na “História do Futuro”:
    mas que futuro haverá ainda
    esta brava gente nativa,
    trezentos e tontos anos depois,
    quanto o gentil
    Presidente da República federativa
    entregou títulos de terra a sobreviventes
    ribeirinhos daquele horroroso tempo?

    Nós dissemos bem, sobreviventes!
    Isto é que são os descendentes dos Nheengaíbas
    falantes da língua travada,
    desdenhada,
    desgraçada,
    lesada,
    desterrada,
    apagada à força de palmatória…

    Desde as Bahamas, Porto Rico, Cuba,
    Haiti – aí de ti!
    Jamaica, Marajó de minha avó:
    circo Caribe uma metáfora por fora
    da História.

    Quando o pau chichou dentro do Xingu,
    pela terra adentro dos Tucujus,
    hoje o Estado do Amapá,
    as ilhas do Pará filhas da Pororora em pé de guerra;
    isto é, em arcos, braços e remos de peleja…

    Era na verdade o apocalypso prometido
    pelos pajés caraíbas: ajuste de contas
    entre Tupinambás e os ditos Nheengaíbas:
    Claro!
    Os brancos pensando que a guerra era lá deles:
    holandeses dum lado, portugueses de outro.

    Estes uns pelejavam por causa do tal rio
    das Almazonas;
    mas porém a gente lutava
    a ver quem era o melhor dos melhores guerreiros:
    tupinambá pela demanda da Terra sem males;
    nheengaíba pelo país do Arapari;
    a terra-firme do Cruzeiro do Sul;
    a chamada América do Sol agora…

    Trint’anos de guerra pra valer! Eita pau pirera!
    Até não se saber mais quem era quem.
    Então o chamado padre grande viu
    o que os cegos conselheiros d’el-rey não viam:
    a tal guerra das Almazonas era impossível
    de vencer…

    Do lado nheengaíba,
    Paresque, o comandante Piié – o mais ladino de todos
    era de mesmo aviso!
    O tempo era já de fazer as pazes…
    Os portugueses cegos confiados tão-só
    nos velhos e frios canhões que nunca deram tiro,
    de fato nos arcos tupis mato adentro
    e ainda queriam mais sangue, fumo, mortes…

    sorte desta esgotada gente que os padres tinham tino:
    duas luas somente foram dadas para buscar a paz
    e evitar uma quarta expedição bélica
    no rabo de três últimas perdidas
    diante da grande ilha-labirinto inexpugnável.
    Duas escassas luas e dois índios escravos
    em ingrato papel de embaixadores da paz.

    O que as armas falharam, uma inacreditável carta
    antes falada de viva voz em língua travada
    do que lida diante da fogueira do conselho dos caciques
    obrou a maior conquista das Almazonas que já houve
    em todos os tempos: pena que o mundo esqueceu…

    Primeiro o cacique Piié dos Mapuá em pessoa
    com flotilha que meteu medo a Cidade
    veio ao convento de Santo Alexandre se queixar
    dos portugueses e dos índios aliados destes,
    aliás grandes comedores de gente há tantas e tantas luas…
    Daí ficou combinado receber os padres na ilha grande.

    Era pelo dia 22 de agosto do ano de mil 9centos e 59
    Quando as canoas saídas de Cametá
    Começaram a entrar pela boca do rio dos Mapuá
    (está lá até hoje, já como reserva extrativista:
    um mundo novo se abriu a quem um dia viera do velho,
    coração na boca com maus presságios na cabeça.
    Não é fácil topar com o Outro em sua própria casa…

    Mas, medo e sustos à parte, vieram chegando índios
    de todas partes para ver e participar daquele inacreditável acordo.
    Enfim, no dia 27, na improvisada igreja da floresta do Santo Cristo
    Rixentos tupinambás à direita, tropa portuguesa ao meio,
    Nheengaíbas à esquerda;
    Sermão do payaçu traduzido simultaneamente em nheengatu
    e nuaruaque…

    Eram sete caciques Anajás, Aruãs, Cambocas, Guaianases,
    Mamaianás, Mapuás e Pixi-Pixi;
    Prestaram vassalagem de praxe a Sua Majestade Fidelíssima
    Menos Piié que disse que as juras deviam ser dos portugueses
    causadores de tropeços daquela guerra sem pé nem cabeça:
    que os chamados Nheengaíbas (que nem nheengaíbas eram)
    sempre viveram em paz e só por esta ansiavam.

    Nada mais foi dito nem perguntado:
    então caiu a costumeira chuva
    e com ela um enormíssimo esquecimento até hoje.

      José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da amazônia marajoara".

    autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica" e "Amazônia latina e a terra sem mal", blog http://gentemarajoara.blogspot.com

    Notícias Relacionadas