As fotos de vovó Raquel

Os dados utilizados neste texto me foram passados por uma conhecida
minha, a quem me reservo o direito de omitir o nome. As personagens
são verdadeiras, ainda que seus nomes sejam fictícios. Os eventos aqui
relatados são a mais pura verdade.

Ano de 1959. Rua Catumbi, no bairro do Belenzinho em São Paulo. Lá,
sempre é festa no casarão denominado “Ponderozza”.
A família Spinnelli mora em Ponderozza! No total são quinze pessoas,
entre os familiares do proprietário e as empregadas, as quais tinham o
duro dever de fazer com que Ponderozza esteja sempre limpa, decorada e
festiva; elas têm que cozinhar para esse grupo enorme de pessoas,
lavar, arrumar, passar e administrar a casa; inclusive fazer as
compras para que a casa continue funcionando.
A matriarca da família, vovó Raquel, nos seus bons tempos administrava
o casarão com mãos de ferro. Ela era rígida quanto à disciplina, à
higiene, à moral e à ordem. Não havia uma só empregada que não teve
descontado de seu salário a xícara quebrada, o móvel arranhado com a
vassoura, a roupa rasgada durante a lavagem ou ao desaparecimento de
uma jóia ou fruta de cima do armário da cozinha. Vovó Raquel a tudo
vigiava; com olhos de lince. Era astuta, decidida, voluntariosa e
tirana, além de um pouco malvada.
Dos outros dez familiares, vovó Raquel vigiava os quatro filhos
solteirões, que comandavam um a padaria que estava em nome dela; um
filho casado, emprestando o suor de seu rosto e toda astúcia possível,
aplicando dinheiro no mercado de ações, na compra e venda de bens
duráveis,nos aluguéis das cinco casas da vovó, na administração
financeira da padaria dos Spinnelli e na atenção à Concheta; a
espanhola com quem se casou e que era a vítima preferida da vovó
Raquel, nas questiúnculas diárias. Ainda havia as três filhas
solteironas: a Hercília, a Constanzza e a Ângela; cuja principal
atividade dentro de casa era de exigir obrigações não ortodoxas dos
criados e fazer fofocas dos parentes, dos criados, dos vizinhos e etc.
Elas não trabalhavam, não estudavam, não ajudavam na faina diária;
nada!

Certa feita, a vovó Raquel contratou um pintor de paredes para pintar
todo o casarão. O rapaz, de origem gaúcha, descendente de italianos,
caiu em graça pelos moradores da casa; especialmente da empregada
Gilda (Hermenegilda), uma linda mineira de cabelos escuros e ondulados
e corpo exuberante. E, a partir de certo momento, o namoro foi
inevitável.
Afinal, o gaúcho trabalhava sozinho e a casa era muito grande. Por
isso, a pintura do casarão se estendeu por longos seis meses! O rapaz
tinha certo ar senhoril, vestia-se bem, dentro do possível. Usava
roupas velhas para trabalhar, mas sempre chegava com roupa bem passada
e limpa, era bem articulado e gentil, além de respeitoso. Gilda, que
lhe servia o café da manhã, o almoço e a merenda da tarde, foi aos
poucos se apaixonando pelo gaúcho. Um gracejo aqui, uma prosa ali, um
cochicho acolá; foram se entendendo. Até que a Gilda, quando da
conclusão do serviço do gaúcho, anunciou aos patrões (vovó Raquel,
filhas e filhos e nora), que iria se casar como gaúcho. Qual não foi o
espanto da vovó Raquel e família, quando a Ângela saiu aos soluços da
sala onde acabava de ouvir a notícia da boca da Gilda e correu até o
quarto, onde se trancou por toda uma tarde uma noite inteira, sem
cessar o choro. Obviamente ninguém sabia de que a Ângela também
gostava do gaúcho. Vovó Raquel se apercebeu do fato e ficou enfurecida
com a empregada Gilda e com a filha Ângela. Ela foi pessoalmente bater
à porta do quarto da Gilda e lhe falar umas verdades; não sem antes
demitir a Gilda, que toda feliz, abraçou-se ao gaúcho e foram embora
de Ponderozza, para sempre.

Quanto à Ângela, com medo da vovó Raquel, resolveu cometer suicídio,
tomando todo um vidro de 150 mililitros de GUTALAX, um laxante
poderoso.
O fato é que a Ângela foi vítima de forte diarréia, que a deixou
hospitalizada por um mês.
Quanto à Gilda, ela enviou um cartão, por ocasião do natal de 1960.
Morava em Bento Gonçalves, lá no Rio Grande do Sul, com a família do
gaúcho, numa fazenda com produção de queijos e vinhos.
Já quanto à Ângela, desde o triste episódio passou a ser chamada de
GUTA; até pelos criados. E os anos se passaram.
Ano de 1970. Rua Catumbi, no bairro do Belenzinho em São Paulo. Lá,
sempre era festa no casarão denominado Ponderozza.
A família Spinnelli continua morando em Ponderozza! No total são oito
pessoas, entre os familiares do proprietário e as empregadas, as quais
tinham o duro dever de fazer com que Ponderozza esteja sempre limpa,
decorada e festiva; elas têm que cozinhar para esse grupo enorme de
pessoas, lavar, arrumar, passar e administrar a casa; inclusive fazer
as compras para que a casa continue funcionando.

A matriarca da família, vovó Raquel, que nos seus bons tempos
administrava o casarão com mãos de ferro, agora depois de dois
derrames e um infarto, pouco sabe do quê está acontecendo ao seu
redor. Está apoplética, abobalhada. Não há uma só empregada que tenha
sido maltratada por ela, que não têm lhe dado o troco. Quando a vovó
Raquel está comendo uma fruta com gosto, uma das empregadas retira a
fruta de suas mãos e ainda lhe dá broncas por comer demais ou por
estar sujando o chão. Uma das funções das empregadas a essa época era
colocar a vovó Raquel na cadeira de rodas e deixá-la ao sol, de manhã,
retirando-a ao meio-dia. Enquanto isso as empregadas ficam falando com
os transeuntes e dando broncas e castigos na vovó Raquel.
Certa feita, uma das empregadas percebeu que a vovó só tinha guardado
para si um pouco de vaidade; apesar dos derrames e infarto e suas
seqüelas. Uma vez, uma empregada a vestiu nos melhores trajes, com
jóias, colares, brincos e pulseiras, maquiou a vovó, perfumou-a e a
levou na cadeira de rodas dizendo-lhe que ia tirar fotos dela. Todas
elas perceberam o sorriso no rosto daquela outrora megera.
– Ah, ela gosta de se vestir e tirar foto!!!! Pois então vamos lá;
dizia uma delas.
E a vovó fazia poses em sorriso infantil, enquanto a serviçal
disparava flashes sobre flashes; naturalmente a máquina fotográfica
não tinha filme.
É de notar que as filhas que ainda estavam vivas, como a Guta e a
Hercília, também faziam essa pequena maldade com a vovó Raquel.
Sempre que uma das filhas estava triste ou ansiosa por algum motivo,
vestiam a vovó, a maquiavam e a convidavam para tirar fotos.
E assim passaram os anos. Em 1975 faleceram a Guta e a Hercília e um
dos dois solteirões ainda vivos. A vovó Raquel os acompanharia em
1977. Morreu calmamente em plena Rua Catumbi, no Belenzinho, na
calçada do casarão Ponderozza, bem vestida e maquiada; certa de que ia
posar para mais uma sessão de fotos.
Em 1980 o casarão foi demolido, para que uma linha do Trem
Metropolitano passasse pelo Belenzinho.
– Pena que não haja nenhuma foto da vovó Raquel, para ilustrar este texto.

      ACAS/Antônio Carlos Affonso dos Santos